Todo mundo que gosta de carros já sonhou um dia ser piloto de testes. A possibilidade de isso acontecer na prática, porém, é quase a mesma de ganhar na loteria sozinho. Mas, assim como há novos milionários eventuais, também acontece de alguém ser “sorteado” para fazer desse sonho uma profissão, ainda que seja algo raríssimo.
Pois esse é justamente o caso de Alexandre Silvestre, mais conhecido pelo apelido de Careca. O curioso é que ele, hoje com 51 anos, sendo os últimos 18 na Autoesporte, nunca se imaginou como um piloto de testes — tudo foi realmente uma feliz obra do acaso, como ele mesmo revela nesta entrevista, que compõe uma série especial produzida para retratar alguns personagens que fizeram (ou ainda fazem) a história da marca ao longo de seus 60 anos, que se completam neste 2024.
Mas será que a profissão de piloto de testes é tão glamourosa e empolgante assim? Careca diz que não. As razões você confere agora, lendo a conversa que tivemos com ele.
Autoesporte: Como você começou sua carreira de piloto de testes?
Alexandre Silvestre: Foi totalmente por acaso. Eu trabalhava como motorista, mas estava desempregado. Mesmo assim, andava à procura de um cachorro para adotar, que fosse pelo menos de tamanho médio. Acabei pegando um que era mistura de Pastor, Fila Brasileiro e Galgo, o Bud.
Acontece que a pessoa que me doou esse cachorro era esposa do Marcus [Vinícius Gasques, então editor-chefe de Autoesporte]. Ficamos conversando um tempo, e eu contei que estava procurando emprego. No dia seguinte ela me ligou dizendo que precisavam de um motorista para um trabalho, e perguntou se eu topava. Eu disse que sim, mas depois não explicaram muita coisa — ou, aliás, quase nada do que era para fazer. Achei estranho.
AE: E era o quê?
AS: No dia combinado, fui à editora e entendi o mistério: eu tinha que dirigir um carro que seria usado para caçar um segredo, que era o [Honda] New Civic. Isso foi em 2005. Foi comigo o fotógrafo, o Vadeco [Oswaldo Palermo]. Ficamos meio de tocaia nos arredores da fábrica da Honda, em Sumaré [SP], um tempão, conversando. De repente ele me fala: "Vai, vai, vai, segue aquele carro ali!". Eu meio sem saber o que fazer, o New Civic entrou na rodovia e a gente acompanhando.
Ele foi me orientando e, de repente, estava pendurado pra fora do carro, eu só escutando o tlec-tlec-tlec-tlec alucinado dos disparos da câmera... Foi uma adrenalina alta, uma coisa emocionante mesmo, que eu nunca tinha vivido. Ele conseguiu tirar as fotos, mas mesmo assim me mandou acelerar bastante. Quando já estávamos bem à frente do Honda ele disse pra parar. Descemos e ele fez mais algumas fotos do carro andando na rodovia, quando passou por nós.
AE: Mas que bela aventura logo no primeiro trabalho!
AS: Foi mesmo. Eu não sabia nada de revista, não entendia como funcionava, como aconteciam as coisas. Depois desse, fiz outros trabalhos como motorista no mesmo estilo, caçando segredos, algumas vezes com o Vadeco e outras com o Ivan Carneiro, outro fotógrafo da revista.
Tivemos até problema com uns seguranças: primeiro nos ofereceram propina para apagar umas fotos e depois, diante da nossa negativa, passaram a nos ameaçar. O Ivan jogou a máquina dentro do carro e me disse para ir embora... Mas no fim deu tudo certo, conseguimos voltar para a redação inteiros e com as imagens.
AE: E como foi que, de motorista dos caçadores de segredos de Autoesporte, você chegou a piloto de testes?
AS: Eu passei a prestar outros serviços, como retirada e devolução de carros de teste e auxílio na produção de fotos, até que um dia, em 2009, fui acompanhar a produção de um teste com o Hairton [Ponciano Voz, então editor de Autoesporte]. Ele foi meu grande mestre, me ensinou tudo.
Aos poucos ele foi me explicando como os testes eram realizados, por que eram de um jeito X e não Y, as técnicas de pilotagem, o que poderia dar diferença, como preencher a planilha de resultados etc. Tudo que eu sei, aprendi com ele. Em resumo, fui prestando assistência e ajudando cada vez mais [nesse trabalho] até que passei eu mesmo a fazer os testes.
AE: Nessa época, os testes de Autoesporte eram realizados em que local?
AS: No campo de provas da GM em Indaiatuba, no interior de São Paulo. Alugávamos a pista e, quando subia a cancela autorizando nossa entrada, os “cifrõezinhos” já começavam a tilintar, então era necessário ser ágil e preciso ao mesmo tempo. Isso o Hairton também me ensinou.
AE: Vocês usavam a pista circular?
AS: Dependia do dia e do teste, mas usamos muito essa pista também, entre outras.
AE: Dizem que ali, pela inclinação, se você estiver na faixa mais alta e soltar a mão do volante a partir de uma determinada velocidade, o carro continua reto. Daí, aliás, o apelido de reta infinita. Isso é verdade?
AS: Realmente dizem isso, mas eu nunca tentei para saber se é verdade mesmo.
AE: E você começou a participar dos testes lá em Indaiatuba?
AS: Não, foi depois, quando Autoesporte já usava uma pista de testes em Tatuí, a TMT, que hoje se chama Rota 127. Muita gente confunde por ser na mesma cidade, mas não é o campo de provas da Ford, é mais adiante.
AE: Você sabe que o seu trabalho é provavelmente o mais invejado do Brasil, não?
AS: Sim, eu sei. Muita gente comenta isso quando eu conto [o que faço]. Pensam que é uma coisa glamourosa, que é só acelerar carrão... mas, na verdade, não é nada disso.
AE: Vamos tentar desmistificar um pouco essa profissão, então. Você pode contar como é a rotina de um teste?
AS: Uma das coisas mais importantes é que tudo é baseado em uma rotina muito criteriosa, detalhista e repetitiva. Todos os carros são testados exatamente da mesma forma, para não haver distorções. Então, basicamente, eu sempre tenho de fazer tudo do mesmo jeito, no mesmo local, não pode mudar nada. Por exemplo: não se faz teste de pista quando está chovendo, pois altera as condições do piso e, portanto, o resultado. Várias vezes eu saí de São Paulo com tempo limpo, cheguei em Tatuí e estava chovendo. Aí é preciso ir embora e voltar no dia seguinte.
AE: Acho que você está fazendo charme. Pode explicar em mais detalhes como é o seu trabalho?
AS: São basicamente quatro testes feitos com os carros: consumo, retomada, aceleração e frenagem, sempre nessa ordem. O de consumo é o único feito fora da pista [de testes]. Nos carros flex, todos os testes são feitos com 100% de etanol no tanque, mas nem sempre recebemos o carro abastecido com esse combustível. Então, a primeira coisa que faço é “limpar” o tanque: pego um galão com 5 litros de etanol e vou rodando com o carro até dar pane seca. Coloco o etanol, volto no mesmo posto, na mesma bomba, pego mais 5 litros e faço a mesma coisa outra vez.
Depois abasteço o carro de novo no mesmo posto, na mesma bomba e, de preferência, com o mesmo frentista. Aí existe um circuito determinado na cidade para aferir o consumo urbano, ou seja, tenho de fazer sempre o mesmo caminho, no mesmo horário. Ah, e sem ar-condicionado, independentemente do calor que estiver fazendo. Imagine eu no trânsito paulistano, com um carro importado caríssimo, suando e só com uma fresta da janela aberta... ninguém entende nada quando vê. E depois faço a medição do consumo rodoviário no deslocamento de São Paulo a Tatuí, sempre percorrendo exatamente o mesmo trajeto.
AE: E depois, chegando à pista?
AS: Eu uso um aparelho que funciona por GPS, chamado VBox, que me dá os números reais do que estou fazendo na pista. Primeiro vem o teste de retomada. São três: de 40 a 80 km/h, de 60 a 100 km/h e de 80 a 120 km/h. Cada um deles é feito três vezes e o resultado é a média desses três. Depois vem o de aceleração: fazemos o teste de zero a 100 km/h e o de zero a mil metros pelo menos quatro vezes. Na sequência, o de frenagem, de 100 km/h a zero, de 80 km/h a zero e de 60 km/h a zero, também três vezes cada. Todos são feitos sempre nos mesmos pontos da pista, no mesmo horário, exatamente da mesma forma. É uma rotina muito repetitiva e específica. E, de novo, com o ar desligado e as janelas fechadas.
AE: Agora, de fato, não está mais parecendo algo tão glamouroso assim...
AS: Também é um trabalho um pouco solitário, pois eu tenho que ficar sozinho no carro. Afinal, uma pessoa a mais aumentaria o peso e, é claro, alteraria o resultado. Bem, depois da pista vou para uma sala e analiso os dados colhidos pelo equipamento; se vejo alguma inconsistência, volto e refaço tudo. Quando está tudo ok, saio de Tatuí para voltar para São Paulo e só aí paro para almoçar. É que fazer os testes de barriga cheia não é uma boa ideia...
AE: Tem algum teste que você não gosta de fazer?
AS: O de porta-malas. Nesse, preciso pegar uns tijolinhos de isopor e ir encaixando um por um. Cada tijolinho equivale a um litro de capacidade, então você pode imaginar: em um carro que tem porta-malas de uns 500 litros, são 500 tijolinhos para colocar. Na editora, temos mil tijolinhos, mas quando é preciso medir também a capacidade com os bancos rebatidos, que geralmente passa disso, ainda preciso utilizar caixas, calculando antes quantos tijolinhos cabem em cada uma. E depois tenho que tirar tudo e guardar de volta. Ainda bem que hoje em dia esse teste só é feito em casos muito específicos.
AE: E houve algum teste em que algo deu errado ou muito errado?
AS: Sim, mas felizmente nunca por causa de um acidente ou algo parecido. De duas ocasiões me recordo bem: uma foi com um Ford Focus automático, em que o câmbio estourou sem explicação e “lavou” a pista de óleo e peças. A outra foi com um JAC J3, cujo pedal de freio entortou no teste de frenagem. Na época, nós brincamos que ele era tão tímido que se escondeu atrás do pedal do acelerador...
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