Talvez seja bom jogar na loteria: o número 700 está por toda parte na Autoesporte. Além da edição impressa de abril, no fim de março a publicação alcançou 700 vídeos postados em seu canal no YouTube. Em muitos deles está a jornalista Michelle Ferreira, repórter e editora que foi fundamental para moldar o estilo da revista nessa plataforma — dos 13 vídeos de AE mais assistidos do canal, todos acima de 1 milhão de visualizações, ela apresentou oito.
Lançado em 2007, o canal de Autoesporte no YouTube já acumula mais de 97 milhões de visualizações e soma quase 560 mil inscritos. Ainda que recente, representa uma importante passagem dos 60 anos da publicação. Por isso, Michelle Ferreira, atualmente coordenadora de mídias sociais e influenciadores do banco BTG Pactual, conta nesta entrevista um pouco da evolução desse processo e de sua experiência pessoal na apresentação dos vídeos.
Autoesporte - Como e por que você se tornou repórter de Autoesporte?
Michelle Ferreira - Eu me formei em Jornalismo pelo Mackenzie em 2013. Um ano antes, entrei na Editora Globo como estagiária. Fui efetivada como repórter na revista Época Negócios em 2013 e, no começo de 2015, mudei para Autoesporte, ficando até 2021. Foi engraçado, porque minha família sempre gostou muito de carros, desde o meu avô, e isso passou também para minha mãe e meu pai — que, inclusive, trabalha nesse meio até hoje. Aliás, quando entrei na Autoesporte, acho que minha mãe ficou até mais feliz do que eu mesma. Quando saí, ela também ficou mais triste do que eu...
AE - Além das reportagens para revista e site, você trabalhou muito nos vídeos para o YouTube. Tornou-se, inclusive, a "cara" de Autoesporte nos vídeos. Como isso aconteceu?
MF - O primeiro vídeo de que participei foi no quadro Qual Carro Eu Compro?, em que os leitores indicavam qual tipo de modelo estavam procurando, a faixa de preço e outros detalhes, e dávamos nossa escolha. Isso foi ainda em 2015. Esse quadro era gravado na própria redação. O primeiro vídeo em externa, com um carro, foi com o Volkswagen Jetta, três anos depois, quando passamos a investir mais nos vídeos. Eu nunca tive dom para falar com a câmera, ainda que fosse um desejo: era algo que eu queria fazer, mas sentia muita dificuldade. Tinha vergonha, tanto que nos primeiros vídeos estou com uma fisionomia dura, tensa, gaguejando. Não nasci para isso, mas fui aprendendo. Fiz diversos cursos, inclusive de locução, para me aprimorar. Com o tempo, tornou-se algo mais natural, foi dando certo. Recebia muitos comentários positivos, e isso também me incentivou.
AE - A diferença de linguagem entre uma matéria escrita e um vídeo é brutal, mesmo tratando-se de um mesmo assunto — no caso, carros. Como você lidou com isso?
MF - Escrever sempre foi importante para mim, mas na época o conceito dos vídeos estava começando a aparecer com maior força, era um período de transição para as publicações especializadas. Havia muita conversa de “vídeo é o futuro, YouTube é o futuro”. Pensei: ainda sou jovem, preciso me atualizar, do contrário vou ficar para trás. Então procurei me adaptar. Nesse processo, assisti a muitos vídeos de outros canais, principalmente estrangeiros, para buscar referências, tentar descobrir essa nova linguagem, o que era interessante e o que não era, do que gostávamos, o que estava mais próximo do que queríamos.
AE - E o que vocês queriam, exatamente?
MF - Nosso objetivo era alcançar uma linguagem mais próxima de quem está assistindo, como se fosse um domingo à tarde e você estivesse mostrando o carro para um amigo. Não podia ser uma coisa fria, travada... Tinha que ser divertida, prazerosa e, ao mesmo tempo, informativa.
AE - A apresentação é um elemento muito importante de um vídeo, é claro, mas a parte de produção também envolve roteiro, edição, luz, cenário, áudio, equipamentos etc. Como vocês conseguiam administrar todos esses detalhes e novidades?
MF - Dentro da redação, a parte de vídeos era minha e do Guilherme [Muniz, atualmente apresentador da rádio CBN]. Éramos responsáveis por todo o processo. Tirando a operação da câmera e a parte técnica da edição, fazíamos praticamente tudo: locação, roteiro, apresentação, escolha das cenas e até a publicação. Tínhamos o controle de tudo, a apresentação em si era só uma parte. Dava muito, mas muito trabalho mesmo, porque tínhamos de gravar tudo em um dia e, muitas vezes, lidávamos inclusive com o imponderável, como chuva, problemas técnicos etc. Mas com certeza era a parte mais divertida do meu trabalho.
AE - Autoesporte também fez cobertura especial em vídeo de algumas edições do Salão do Automóvel, inclusive com entradas ao vivo. Aí a coisa ficou bem mais complicada, não?
MF - Eu amo o Salão do Automóvel, sentia uma felicidade imensa todo dia de manhã ao entrar no centro de exposições e ver todos aqueles carros juntos, encontrar os executivos das fábricas passando pelos corredores... Era muito cansativo, mas foi quando aumentou a aposta de Autoesporte nos vídeos. Fizemos ao todo cinco lives, uma por dia, no salão de 2018. Era uma loucura, até porque em alguns casos ainda nem tínhamos informações sobre os carros que estavam sendo mostrados pela primeira vez, falávamos sobre o que estávamos vendo ali, na hora mesmo. A interação com o pessoal que estava assistindo era muito grande e tentávamos responder às perguntas que surgiam aos montes. Era divertido. Mas não foi a primeira vez que fizemos live: havia um programa chamado Drive, que era apresentado ao vivo toda sexta-feira, com meia hora de duração.
AE - E com isso colocaram você e o Guilherme para apresentar o evento do Carro do Ano...
MF - A experiência com os vídeos ajudou muito, mas eu prefiro mil vezes falar para uma câmera do que para uma plateia. Com certeza foi mais difícil do que apresentar os vídeos do YouTube. O que ajudou muito foi que o roteiro da apresentação do evento também foi feito por mim e pelo Guilherme, e ensaiamos bastante. Na edição 2020, a cerimônia foi tradicional, com a presença de público das marcas concorrentes e convidados, mas na de 2021 havia a pandemia e o evento foi transmitido ao vivo do estúdio, com pouquíssimas pessoas presentes de fato.
AE - Falando nisso, como foi gravar os vídeos para o YouTube durante a crise da covid-19?
MF - Tivemos que nos adaptar. Gravamos, por exemplo, o Audi e-tron apenas eu e o cinegrafista nas tomadas externas. Nas internas, colocamos câmeras fixas que foram acionadas por mim mesma. Durante a pandemia, as pessoas ficaram mais em casa e isso ajudou a aumentar muito as visualizações e também a permanência dos espectadores nos vídeos. Sem querer, estávamos bem preparados para esse momento, para esse boom, pois já tínhamos boa experiência tanto na produção de material gravado quanto ao vivo.
AE - A interatividade com quem assistia também aumentou nessa época?
MF - O grande prazer de gravar um vídeo em vez de escrever um texto é esse: você tem a resposta praticamente em tempo real. Cinco minutos depois de o vídeo estar no ar, já tem alguém comentando algo. Esse lado sempre me fascinou, era uma espécie de pós-produção e nos dava um rico retorno do que fazer nos próximos, de como melhorar. O que acredito que também nos ajudou é que não fazíamos uma abordagem tão técnica quanto outros canais. O enfoque era mais em mercado, no preço, nos concorrentes, no tipo de comprador daquele carro e no que mais interessaria a ele. Com isso, acabamos criando uma espécie de nicho dentro do YouTube.
AE - É um tanto arcaico abordar esse tema, mas ao mesmo tempo inescapável: você chegou a enfrentar algum episódio de machismo, sexismo ou misoginia pelos vídeos de Autoesporte que apresentou no YouTube?
MF - Sim, muito. No começo era pior. Esse era o lado ruim dos comentários. Os primeiros vídeos receberam comentários pejorativos apenas pelo fato de uma mulher estar falando sobre carros. Com o passar do tempo, isso foi diminuindo, mas nunca parou totalmente. Porém, foi interessante notar que, a partir de certo momento, outras pessoas que assistiam aos vídeos começaram a publicar espontaneamente críticas a esse tipo de comentário. Criou-se uma espécie de comunidade dos espectadores dos vídeos de Autoesporte que refutava esse tipo de atitude.
AE - Qual foi seu último vídeo?
MF - Gravei com a Ferrari Roma, em maio de 2021. Foi uma bela despedida, mas aconteceu por acaso. Sempre pedíamos ao importador para gravar com um modelo da marca, mas nunca recebíamos sinal verde. Um belo dia, nos chamaram em cima da hora — e acabou sendo supercorrido. Claro que fiquei nervosa por andar na rua com um carro que só tinha uma unidade no Brasil e que custava mais de R$ 3 milhões. Inclusive, dá para perceber esse meu nervosismo no vídeo. Até há vários comentários que mencionam isso, mas de uma forma positiva.
AE - Esse vídeo já está com mais de 800 mil visualizações...
MF - É verdade, mas o melhor vídeo que gravei em termos de audiência foi o do BMW X6, que está atualmente com 3,5 milhões de visualizações. Confesso que não sei dizer exatamente a razão disso... É claro que o produto ajuda, mas não é a única explicação. Só sei que explodiu.
AE - Para finalizar: como é ser entrevistada em vez de entrevistar?
MF - É estranho. Bem estranho. Mas é bom lembrar daquela época, sinto muita falta.
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