Quantas vezes você já não deve ter lido histórias de fabricantes que surgiram do nada prometendo lançar um carro elétrico nacional de volume e revolucionar a indústria automobilística brasileira? O sonho vem desde os tempos do Gurgel Itaipu e, mais recentemente, foi reacendido pela paranaense Kers, que anunciou para o começo de 2022 um triciclo elétrico chamado Wee, que custaria menos de R$ 100.000 e, passados dois anos do prazo, ainda não virou realidade.
A bola da vez está agora com o empresário capixaba Flávio Figueiredo Assis. Formado em Direito e Contabilidade, Assis foi um dos fundadores da Le Card, uma administradora de cartões de benefícios a trabalhadores como vale-refeição, vale-alimentação e cartão-combustível. Em 2022, vendeu sua parte no empreendimento para fundar uma companhia de nome parecido, a Lecar. O objetivo é ousado: ser o responsável pelo primeiro carro elétrico produzido em série por um fabricante nacional.
Para não fazer como outras empresas que nasceram e sucumbiram diante da mesma promessa, a Lecar afirma que só começou a divulgar seu projeto quando este chegou a um estágio avançado de desenvolvimento. Ele se chama Model 459. Trata-se de um modelo de visual excêntrico que nasceu como um sedã elétrico, mas, segundo a própria empresa, será posicionado como uma espécie de “sedã SUV cupê”. A Lecar afirma que o modelo terá autonomia estimada em 400 km e estará disponível para venda já em dezembro de 2024. Até um preço foi estabelecido para ele: R$ 279 mil.
Segundo Assis, o Model 459 passará por testes de homologação e segurança, no Brasil e no Reino Unido, entre os meses de fevereiro e outubro, para que esteja pronto para ser fabricado em série no fim deste ano. O motor elétrico e as baterias serão fornecidos pela chinesa Winston. Da China, aliás, virão importados cerca de 35% dos componentes do veículo. O restante será fornecido por empresas locais. A carroceria, por exemplo, virá da Polirim, uma empresa italiana especializada em plásticos polímeros que tem uma filial em Caxias do Sul (RS).
Justamente por isso, a fábrica da Lecar ficará na mesma cidade gaúcha. Em dezembro do ano passado, um protótipo do Model 459 foi montado por cerca de 30 funcionários que trabalham na empresa hoje. Muitos deles tiveram passagens por outras fabricantes do setor, como Gurgel, Troller, JPX, Ford, Toyota, Nissan e Marcopolo.
O protótipo exibia uma receita já conhecida da indústria nacional e nunca aprovada pelo consumidor brasileiro: estrutura tubular e estamparia em fibra de vidro. No entanto, Flávio Assis garante que a versão de produção terá carroceria monobloco e uma carroceria mais sofisticada. Mas com um detalhe que abordaremos mais adiante.
Quando comparado a outras pretensas fabricantes nacionais de automóveis que nunca tiverem êxito, o empresário do Espírito Santo acredita que terá sorte diferente.
Pelo menos é o que ele garante em entrevista à Autoesporte: “Toda transição tecnológica no mundo gera novos protagonistas. Só ver a Tesla e a BYD. O carro elétrico não é um modismo. É uma lei. As legislações [de emissão] estão inviabilizando o carro a combustão no mundo inteiro. Até o fim da década, não vai mais ter carro só a combustão. Por isso. acredito que estamos [entrando] no momento certo”, resume o fundador e CEO da Lecar, que completa: “Meu desafio é o mesmo que o de uma Volkswagen ou Toyota. Todo mundo está correndo atrás dessa nova tecnologia. Se eles têm a tradição, eu tenho a vantagem de ser muito mais leve e ágil nas soluções, como uma startup”.
Inspiração em Elon Musk
Qualquer semelhança entre a Lecar e a Tesla, aliás, não é mera coincidência. Todos os passos de Flávio Assis parecem ter sido cirurgicamente inspirados nos de Elon Musk, o criador da marca americana de veículos elétricos. Tanto que, nos primeiros materiais de divulgação e imprensa sobre a futura fabricante nacional, os assessores de Flávio Assis fazem questão de chamá-lo de “Elon Musk brasileiro”.
E o empresário aprecia a comparação. “Como eu saí do ramo financeiro para investir na fabricação de automóveis, surgiu essa expressão. Gosto muito dela. Me sinto lisonjeado O Elon Musk é fonte de inspiração para qualquer um. Cada nação merecia ter o seu Elon Musk”, filosofa. Até o nome do carro, Model 459, faz referência aos Model 3, S, Y e X da Tesla. Mas não só isso: segundo Assis, remete também ao Ford Model T, outro ícone da indústria automobilística mundial. Já o número 459 é uma homenagem ao cientista Nikola Tesla, cujo sobrenome foi aproveitado para batizar a empresa de Musk. “O [Nikola] Tesla acreditava muito na força do número 9. E como 4+5 = 9, decidi usar essa numeração. Já está até patenteada no INPI [Instituto Brasileiro de Propriedade Industrial]”, conta, enquanto me envia o certificado da patente em PDF pelo WhatsApp.
Investimento bilionário
Para tirar o Lecar Model 459 do papel, Flávio Assis estima um investimento de mais de R$ 1 bilhão, inicialmente financiado com recursos próprios. “Serão R$ 500 milhões para construir a fábrica, outros R$ 500 milhões para viabilizar a produção e mais R$ 80 milhões para desenvolver e homologar o veículo”, calcula o empresário. A meta da companhia é fazer, no primeiro semestre de 2025, após lançar o Model 459 ao mercado, o IPO (oferta pública inicial) da companhia da Bolsa de Valores, a fim de atrair novos investidores e aumentar o capital de giro.
De acordo com Assis, as vendas começarão pelo Estado de São Paulo, em um raio de 100 km da capital. E serão feitas em lojas temáticas aos moldes da… Tesla, claro. “O conceito tradicional de concessionária fica inviável com o carro elétrico, que quase não demanda manutenção ou revisão”, analisa. A meta é produzir 300 unidades por mês no primeiro ano de operação da fábrica. Para isso, Assis espera ter 600 funcionários trabalhando na operação até o fim deste ano.
Voltando a falar do Model 459, embora as projeções e até o protótipo construído em Caxias do Sul sugiram um sedã, o CEO da Lecar afirma que o modelo da vida real será uma espécie de “sedã SUV cupê” de porte médio. Segundo a Lecar, a versão final do modelo terá 4,60 metros de comprimento, 1,76 m de largura e 1,60 m de altura, sendo 18 cm de vão livre do solo. “É um carro que será todo pensado para a realidade das ruas brasileiras”, garante.
O motor elétrico da Winston será traseiro, com 115 kW ou 156 cv de potência. O banco de baterias de íons de lítio terá 66 kWh de capacidade e, segundo Flávio Assis, permitirá um alcance de cerca de 400 km já convertido para a rigorosa homologação do Inmetro. Isso porque o veículo não será construído com chapas de aço, mas sim com SMC (compósito de polímero reforçado com fibra de vidro). Esse componente tem se tornado comum na indústria, sendo usado na estamparia de alguns carros elétricos ou esportivos modernos a fim de aliviar peso, como Ford Mustang Mach E e BMW M3, porém em componentes agregados, como para-lamas ou tampa do porta-malas.
Porém, no caso do Model 459, o SMC estará presente em praticamente toda sua carroceria, dividido em 33 partes. Sim, é um composto mais sofisticado do que a fibra de vidro usada no protótipo. Ainda assim, consumidores brasileiros costumam torcer o nariz para soluções do tipo. Tanto que outras empresas que se aventuraram por aqui em projetos que usavam materiais alternativos ao aço estampado não foram bem-sucedidas.
Questionado se não considerava essa solução arriscada demais, Flávio Assis demonstrou confiança na escolha. “É um material dez vezes mais resistente e 20 vezes mais leve do que o aço. Com o SMC, vamos aliviar o peso final do veículo em mais de 200 kg. Isso para a autonomia de um carro elétrico, com o peso das baterias, é um número importante”, argumenta. “Não é algo obsoleto. Pelo contrário: estamos apostando em uma tecnologia de ponta, mais avançada do que o aço”, assegura.
Produção de células de bateria
Para erguer a fábrica da Lecar em Caxias do Sul, Assis está em negociação de contrato com a Comau, uma empresa especializada em automação industrial e robótica que ajudou a projetar algumas das fábricas da própria Tesla. Depois de construir suas plantas industriais no Brasil (no plural, porque sua ideia é ter mais de uma), o empresário quer que a Lecar invista também na produção local de células de bateria.
“Estamos elaborando um plano de viabilidade desse projeto. Estou tentando iniciar conversas com o governo, porque, para essa etapa, precisaremos de algum tipo de incentivo. [Mas a ideia é] produzir células de bateria em grande escala para viabilizar carros elétricos a preços mais populares”, diz. “O Brasil produz 93% dos minerais de uma bateria de íons de lítio. Não sei por que ainda não produzimos aqui”, questiona.
Tesla x Gurgel
Em paralelo, Flávio Assis planeja expandir a participação da Lecar até regiões como Estados Unidos e Europa. Perguntado se não tem medo de mirar no ídolo Elon Musk, mas terminar como Amaral Gurgel, o fundador da Lecar é enfático. “Também me comparam muito com o Amaral Gurgel e isso me dá orgulho, pois era um cara empreendedor e que não teve o sucesso que merecia”, afirma.
Por fim, o intitulado “Elon Musk brasileiro” afirma que o ambiente para empreender no Brasil é menos desfavorável do que as pessoas pintam. “A Gurgel sucumbiu por uma combinação de fatores, mas não porque foi sabotada, como muitos dizem. Ela foi muito ajudada pela Volkswagen, por exemplo. Eu, até agora, tenho encontrado um ambiente colaborativo, com outras empresas contribuindo para que dê certo. Além disso, quase todo brasileiro que fica sabendo do projeto manda mensagens de incentivo, de torcida, comemorando a possibilidade de termos uma marca nacional de carros elétricos”, celebra, demonstrando todo seu otimismo com o sucesso da Lecar.
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