Quando o avião estava prestes a aterrissar em Cuiabá, capital do Mato Grosso, por problemas de estabilidade, a aeronave arremeteu e ficamos mais uns 20 minutos no ar. Durante a manobra de retorno, era possível ter uma visão tristemente privilegiada dos focos de incêndio que tomam a região.
Já em terra, o caminho de 220 km entre Cuiabá e a cidade de Cáceres, no coração do Pantanal, foi marcado pelas cinzas e cheiro de fumaça. Os animais mortos, infelizmente, faziam parte do catastrófico cenário que revela uma das maiores tragédias ambientais da história do Brasil.
O fogo já devastou uma área de mais de 3 milhões de hectares em todo o Pantanal, entre o Mato Grosso e o Mato Grosso do Sul. Milhões de animais já perderam a vida. Para que a extensão da destruição não seja ainda maior, há uma enorme mobilização voluntária.
Uma das principais tarefas é resgate dos animais feridos pelo fogo, com médicos veterinários e biólogos constituindo a linha de frente desse trabalho.
Direto do Pantanal, Autoesporte traz os relatos da difícil missão de quem é responsável por tentar preservar o frágil equilíbrio ambiental e salvar milhares de animais feridos, que protagonizam as tristes imagens que circulam na internet nas últimas semanas.
Se não houve mobilização significativa do governo federal diante da tragédia, voluntários vieram do Brasil inteiro, e até de outros países, para ajudar a combater o fogo e salvar a fauna e a flora. Ou o que ainda resta delas.
Pantanal Sul
No Pantanal Sul, as equipes usam suas picapes particulares para realizarem os resgates dos animais feridos. Modificações mecânicas nos modelos são necessárias para conseguirem acessar os locais mais remotos, como conta a veterinária e bióloga especialista em serpentes Paula Helena, que está no Parque Estadual Nascentes do Rio Taquari, cobrindo uma área de mais de 50 mil hectares.
“Eu trabalho com vida selvagem há muito tempo, então meus carros sempre foram adaptados. Se não for assim, tem lugar em que não se chega. Hoje tenho uma Mitsubishi L200 Outdoor 2008 e é com ela que eu estou fazendo os resgates. Para levar as armadilhas e capturar os animais feridos, precisamos chegar o mais próximo possível da área, então o carro tem que ser adaptado e preparado para ir até o limite”, conta. O motor da picape é um 2.5 turbodiesel de 141 cv e câmbio manual de 5 marchas.
A picape da veterinária tem suspensão modificada para ficar mais alta, reforço do chassis e um sistema e iluminação de trator, para auxiliar nas saídas noturnas.
Ela conta que além de sua picape, há outra L200, do IMASUL (Instituto de Meio Ambiente de Mato Grosso do Sul), uma Chevrolet S10 e uma Ford Ranger. Todos os modelos são de versões mais recentes de fabricação.
“Tem muito lugar que a minha picape chega e as outras, não. Semana passada, fizemos uma armadilha para capturar uma anta ferida. E de todas, adivinha qual chegou? A minha. A L200 é mais compacta e as outras são muito largas e compridas, o que dificulta a chegada em locais mais remotos para fazer os resgates. E as modificações ajudam muito também”, explica Paula.
A equipe que trabalha com ela nos resgates é formada por dois técnicos do IMASUL, um membro do CRAS (Centro de Reabilitação de Animais Silvestres) e membros do GRAD (Grupo de Resgate de Animais em Desastres), que foi criado depois do desastre de Mariana, em Minas Gerais, em novembro de 2015. Além de outra veterinária e alunos que estão no último ano da faculdade de medicina veterinária.
A logística do trabalho desses profissionais depende de muita disciplina e cuidado na hora de realizar o resgate. Uma equipe sai logo cedo em duas picapes para identificar as áreas vulneráveis durante o dia e fazem as marcações dos pontos onde há maior risco de ter animais feridos. Além disso, também levam alimentos para ir deixando pelo caminho para os animais que estão passando fome.
Por volta das 16h, a primeira equipe retorna e sai a equipe da noite, que tem a função de capturar animais. A veterinária ressalta que a equipe da manhã também realiza resgates se for preciso, principalmente de animais domésticos, como bezerros, mas a principal função é mapear os locais para que as equipes da noite se concentram no resgate das espécies.
“Quando compro um carro, já mando direto para o meu mecânico fazer as modificações. Meus carros são sempre modificados. Não compro carro por beleza e a última coisa que eu penso é se vai ser bom para a cidade, se vai ser difícil de estacionar, quantas vagas vai ocupar, essas coisas. Penso em funcionalidade para o trabalho no resgate de animais”, explica Paula.
A primeira picape dela foi uma Volkswagen Saveiro. Depois, por ser fã de Ford, comprou uma Ranger. Nos dois casos, fez aquelas modificações no chassis, na suspensão e no sistema de iluminação. Depois de ficar cinco anos com a Ranger, usou a L200 de um amigo para uma operação e achou mais funcional para os terrenos do Pantanal e do Cerrado.
“A L200 Outdoor é um carro forte, compacto, aguenta o tranco e nunca me deixou na mão. Posso falar que mesmo sendo mais antiga, já deixou muita picape mais moderna para trás”, brinca a bióloga.
Pela demanda de resgate estar muito alta durante os incêndios, a equipe sai com algumas gaiolas que comportam os respectivos grupos de animais. Um caso especial é o da onça.
Quando uma saída é programada para capturar uma onça machucada, o grupo já sai todo com equipamentos especiais. “A gaiola da onça só sai nesses casos quando é um resgate programado, porque ela é grande, ocupando muito espaço na caçamba, é pesada, e o resgate do felino é mais complicado que dos outros animais” ressalta.
Se por acaso houver uma operação de emergência durante as saídas, sem programação de resgatar uma onça, eles passam um rádio para uma base de comando que fica 24h disponível para atender as equipes.
No caso da onça, a equipe que está em campo fica monitorando a situação enquanto o reforço chega. Em alguns casos, o deslocamento precisa ser feito de helicóptero.
A médica veterinária e bióloga diz que a pior situação, mesmo trabalhando dias ininterruptos longe da família, é não conseguir salvar um animal ferido.
Transpantaneira
Já no Mato Grosso, outra equipe de resgate de animais feridos trabalha na região da Transpantaneira, que vai da cidade de Poconé até a cidade de Porto Jofre, na beira do Rio Cuiabá. Lá, os incêndios estão bem intensos. A equipe do médico veterinário Jorge Salomão trabalha no resgate de animais selvagens.
Salomão também tem uma Mitsubishi L200, mas a Savana com motor 3.2 turbodiesel de 180 cv e câmbio manual de 5 marchas, ano 2014. Assim como no caso da Paula, há modificações na suspensão e um engate reforçado. A equipe dele é formada por cinco profissionais.
“Ficamos o dia todo no mato e as áreas por aqui são de difícil acesso, com terrenos muito irregulares, e pontes em más condições. E com o fogo a dificuldade é ainda maior. Ontem a gente saiu para resgatar uma anta e saímos 6h de um dia e voltamos às 5h15 do outro dia”, explica o profissional.
Salomão, que trabalha principalmente com onças, diz que a maior dificuldade no resgate das antas é por conta do seu tamanho e peso. No caso da operação citada, oito pessoas tiveram que participar para conseguir a locomoção do animal e houve reforço da Força Nacional para o deslocamento do mamífero.
Rio Paraguai
Na descida do Rio Paraguai, saindo de Cáceres, percorri mais de 200 km entre ida e volta e ajudei e apagar alguns focos de incêndio. Conversei com voluntários da região e guardas florestais.
Nos depoimentos, a tristeza foi grande porque na área atingida pelo fogo, assim como em diferentes locais do Pantanal, muitos animais não resistiram às chamas e morreram.
Porém, muitos voluntários, com seus carros particulares, conseguiram salvar principalmente animais de porte pequeno e médio, como quatis, tamanduás, tatus e aves.
Para onde vão os animais?
Os animais são classificados em diferentes níveis quando são capturados. Quando o animal está ferido, mas o veterinário determina que não é preciso intervenção, ele é liberado.
Pois a intervenção, a contenção e o manejo geram um nível de estresse muito alto que pode ser pior do que a lesão em si.
Outro nível é quando o animal tem uma leve queimadura ou uma pequena lesão. Nesse caso, o atendimento é feito no local e ele já é liberado, sem a necessidade de remoção. Os níveis mais graves, classificados como 4 e 5, dependem de uma remoção do local.
O atendimento é prioritário, de acordo com a lesão, e os médicos dão todo o suporte nos primeiros atendimentos. Posteriormente, os animais são enviados para hospitais mais estruturados com cuidados intensivos.
Normalmente, vão para a UFMT (Universidade Federal de Mato Grosso), em Cuiabá, ou para a UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul), em Campo Grande. O deslocamento é feito de helicóptero, na maioria dos casos.
Situação do Pantanal
Os incêndios no Pantanal foram muito intensos entre o final de agosto e os primeiros 20 dias de setembro. A região não tem uma chuva forte há meses e a estiagem é uma das piores já registradas na história, por conta disso, a vegetação seca torna-se o principal combustível para alastrar as chamas.
Mesmo com os índices caindo, há muito fogo, e inclusive estão chegando às reservas ecológicas da Serra das Araras e de Taiamã, que até então não tinham sido atingidas.
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