O lançamento de um carro novo é algo fascinante – especialmente para quem está de fora. Para quem trabalha na montadora é um tsunami de problemas a resolver, prazos apertados, recursos controlados, stress, aflição e ansiedade. Geralmente funciona a regra de que se algo puder dar errado, dará.
Isso sempre ocorre porque a apresentação de um novo modelo requer esforço conjunto de várias áreas da montadora, como engenharia, manufatura, marketing, imprensa, propaganda, diretoria etc.
Isso é assim até hoje, mas imagine como era o processo antes da informática. Hoje as comunicações entre essas áreas ocorrem de forma bem mais rápida e fluida graças a e-mail, WhatsApp e outros recursos, mas antigamente exigiam um monte de papéis, assinaturas e carimbos, de forma que ao fim do processo havia pastas e mais pastas de arquivo com centenas de páginas acumuladas.
Uma destas pastas, refere ao Projeto Onça, como era chamado internamente o Corcel II, chegou ao acervo do MIAU, o Museu da Imprensa Automotiva, por meio de uma doação anônima. Esse material traz informações, à época, estritamente confidenciais.
Por exemplo: só de cachê a Roberto Carlos, que fez um show exclusivo durante o lançamento do carro, a Ford pagou, na época, nada menos do que US$ 2,4 mil.
A papelada mostra que a ideia inicial era apresentar o carro em São Paulo, mas os planos mudaram para o Rio de Janeiro. Primeiro problema: não havia quartos disponíveis em um único hotel para os cerca de 150 jornalistas e mais 50 concessionários convidados. A solução foi dividi-los entre o Nacional e o InterContinental.
A lista de tarefas era enorme e envolvia desde a produção de discursos dos executivos até o menu do jantar, passando pelo aluguel do Autódromo de Jacarepaguá para um test-drive.
Para piorar: a matriz resolveu mostrar o carro simultaneamente nos Estados Unidos, aos correspondentes brasileiros que trabalhavam lá. E tome papelada e providências para embarcar um Corcel II. Tudo teria que funcionar sem a mínima falha, afinal estava prevista a presença de ninguém menos que o presidente global Henry Ford II.
Aí o financeiro reclamou que a previsão de gastos estava muito acima do orçamento. Só que o valor previsto originalmente, de cerca de R$ 1 milhão em números atuais corrigidos, era para o lançamento em São Paulo. O deslocamento de carros e pessoas para o Rio aumentava bastante a conta – que no final bateu em quase R$ 1,5 milhão, também em números de hoje.
Como problema pouco é bobagem, o test-drive previa oferecer 31 carros, para abarcar todas as versões e cores. A engenharia avisou em cima da hora que não conseguiria preparar todos os modelos, ainda pré-série, a tempo. Saíram então os modelos LDO e GT, diminuindo o total para 20 carros.
Uma curiosa lista de equipamentos a alugar para o evento apontava necessidade de dez máquinas de escrever, um telex (que tinha que ser solicitado somente à Embratel) e um telefoto – uma espécie de pré-fax.
Ah, não se podia esquecer a concorrência: a VW ia lançar na mesma época a Variant II, a GM o novo Chevette e a Chrysler o Dodge Polara com faróis retangulares. A chegada do Corcel II não podia coincidir com nenhum deles.
A produção das fotos de divulgação também não saiu como previsto. Alguns detalhes, como as lanternas traseiras, não foram registrados porque o modelo pré-série colocado à disposição tinha encaixes irregulares e desgastes de testes. O jeito foi arrumar outro carro melhor dias depois para produzir as imagens.
Só para demonstrar bem o que era a burocracia interna da época, somente para fazer aquela clássica foto de divulgação em que há malas junto à traseira do carro, para ilustrar sua capacidade de carga, a Ford precisou escrever uma carta solicitando essas malas à Primícia, que foi datilografada e depois passeou por três departamentos.
Mais tarde outra carta indicava o nome da pessoa responsável por retirar as malas na Primícia. E uma terceira carta foi escrita para autorizar outra pessoa a sair com essas malas vazias da fábrica da Ford rumo ao estúdio fotográfico!
E para dificultar um pouquinho mais a maioria destas comunicações tinha uma cópia enviada à matriz nos Estados Unidos, então ainda precisavam ser traduzidas para o inglês, mesmo que fossem simples convocações para uma reunião.
Apesar de tudo, o lançamento ocorreu sem problemas em 28 e 29 de setembro de 1977, abrindo caminho para o sucesso comercial do carro, hoje um dos mais conhecidos da história da nossa indústria.
Todos na Ford respiraram aliviados, mas ninguém teve tempo para comemorar ou descansar: já era hora de começar tudo de novo, desta vez para a Belina II...