07/12/2014 10h34 - Atualizado em 07/12/2014 16h07

Lança-perfume vira 'praga' em festas na periferia de São Paulo

Promotores de rolezinhos criaram campanha para alertar sobre perigos.
Inalante causa aceleramento cardíaco e lesões no sistema nervoso central.

Paula Paiva PauloDo G1 São Paulo

Valeska perdeu o filho Kauan, de 21 anos. A família fez uma homenagem e pintou seu rosto na porta do salão de beleza do pai, na Penha (Foto: Caio Kenji/G1)Valeska perdeu o filho Kauan, de 21 anos. A família fez uma homenagem e pintou seu rosto na porta do salão de beleza do pai, na Penha, Zona Leste de São Paulo (Foto: Caio Kenji/G1)

Nas noites de sexta, sábado e domingo, a Rua Herbert Spencer, na favela de Paraisópolis, Zona Sul de São Paulo, é fechada. Carros de som, barracas de bebida e jovens lotam o local para curtir o “Baile do 17”, tradicional baile funk de rua da região. Nas mãos, desde crianças de aparentemente 12 anos até adultos balançam pequenas garrafas de plástico e a levam à boca para aspirar o conteúdo. É o lança-perfume, droga que já foi moda nos carnavais do século passado, e que hoje é uma das mais usadas pela periferia de São Paulo.

O cenário visto pela reportagem do G1 não é exclusividade do local. “Está em todas as regiões da cidade, Zona Leste, Zona Norte, Zona Sul, está geral aqui em São Paulo, já é um problema de saúde”, disse o produtor e apresentador de bailes funk, José Ricardo de Souza, conhecido como Ricardo Sucesso, de 33 anos.

A receita original do lança-perfume é composta de clorofórmio, éter, e uma essência perfumada. No entanto, um jovem que não quis se identificar e que já vendeu o produto em bailes, disse que, atualmente, para a produção da droga, um dos produtos usados é o anti-respingo de solda sem silicone – que protege o metal da corrosão - ou o Thinner – um solvente de tintas.

A essência perfumada também é adicionada, e o produto é vendido em vidros de 5 mililitros por R$ 5. O conteúdo do vidro é colocado em garrafas de plástico ou latas vazias de cerveja ou refrigerante. O usuário balança o líquido, que evapora aos poucos, e o aspira pela boca.

Kauan da Silva Batista morreu aos 21 anos (Foto: Valeska Batista/Arquivo Pessoal)Kauan da Silva Batista morreu aos 21 anos
(Foto: Valeska Batista/Arquivo Pessoal)

Morte na balada
O jovem Kauan Rogério da Silva Batista, de 21 anos, morador da Penha, na Zona Leste de São Paulo, morreu em março deste ano. O laudo do Instituto Médico Legal (IML) aponta a causa da morte: insuficiência respiratória causada pela intoxicação de lança-perfume.

A mãe de Kauan, Valeska Valéria da Silva Batista, de 37 anos, perdeu o filho mais velho. Ela conta que o garoto começou a usar a substância com 16 anos. Até um pouco depois dos 18, Valeska ainda não havia percebido o uso, até quando ele começou a mudar o comportamento dentro de casa. Com o uso contínuo, o jovem tinha constantes dores de estômago e na coluna e muita coriza, além de ter perdido a vontade de tomar banho.

Valeska disse que chegou a encontrar os pequenos vidros de lança-perfume escondidos dentro da caixa da privada. Ela tentou buscar auxílio médico, mas os postos de saúde lhe diziam que poderiam ajudar apenas nos quadros de crise do rapaz, quando as dores estomacais pioravam.

Dentro da casa noturna
Na madrugada do dia 18 de março deste ano, Kauan foi a uma casa noturna na Zona Leste de São Paulo, o Cabral. No local, ele começou a usar a substância por volta das 2h30, disse o tio, Marcelo Arena, de 37 anos. Ele acompanhava Kauan naquela noite.

Por volta das 5h, o jovem começou a discutir com um rapaz, que acusava Kauan de ter derrubado o lança-perfume dele. Neste momento, Kauan passou mal. De acordo com o tio, o bombeiro da casa disse “para colocá-lo para fora para tomar um ar”.

Eu sei a dor que as mães estão sentindo e eu queria poder ajudar de alguma forma"
Valeska Batista, mãe de Kauan

O tio levou Kauan ao Pronto-Socorro do Tatuapé, mas ele já chegou morto. O laudo do IML aponta positivo para o álcool e para uma substância chamada tricloroetileno – usado como solvente, desengraxante, agente de limpeza e medicamento anestésico – e também usada na produção do lança-perfume.

Na conclusão sobre a causa da morte, o laudo diz que Kauan “apresentou morte súbita em decorrência de insuficiência respiratória aguda devido ao edema agudo de pulmão, provocado pela intoxicação exógena aguda (tricloroetileno).”

Procurada pelo G1, a casa Cabral informou que "o frequentador Kauan passou mal na madrugada e foi prontamente socorrido na enfermaria do local, por um funcionário especializado em primeiros-socorros com curso de bombeiro civil". O estabelecimento ainda disse que "lamenta profundamente o ocorrido, todavia não há conhecimento das razões que resultaram nesta fatalidade, restando à polícia investigar a ocorrência".

Mãe de outros três filhos, Valeska irá se mudar para Itanhaém, no litoral sul de SP, em busca de uma vida mais calma para o filho caçula, de 15 anos. Apesar da dor da perda do filho, ela disse que quis dar entrevista ao G1 para poder alertar outras famílias. “Eu sei a dor que as mães estão sentindo e eu queria poder ajudar de alguma forma”.

Valeska mostra a foto do filho Kauan, que morreu em março deste ano por intoxicação do lança-perfume (Foto: Caio Kenji/G1)Valeska mostra a foto do filho Kauan, que morreu em março deste ano por intoxicação do lança-perfume (Foto: Caio Kenji/G1)
Movimentos lançaram campanha para combater o uso da droga (Foto: Liga do Funk/Divulgação)Movimentos lançaram campanha para combater
o uso da droga (Foto: Liga do Funk/Divulgação)

Campanha
Para combater esse problema, a Associação Rolezinho A Voz do Brasil - criada após a polêmica dos encontros-, a Liga do Funk e a Produtora 3R lançaram a campanha “Diga Não ao Lança”. Além de compartilhar a mensagem em redes sociais, os integrantes tentam conscientizar a juventude durantes os eventos. Ricardo Sucesso conta que passou a ver muitos jovens baforando e com isso passou a questioná-los em seus shows: “Quem já perdeu amigo para o lança?” Alguns levantavam a mão. Ele então puxava o coro: “Lança”, e o público respondia “mata, mata, mata, mata”, em ritmo de funk.

O uso da droga não é exclusivo do gênero musical. Segundo Ricardo, que também apresenta outros tipos de evento, o lança-perfume está “em todos os tipos de baile, funk, forró, samba, bailes em geral”.

Integrante da Liga do Funk e apresentador de bailes funks de rua, conhecido como "fluxos", Duda Mel, de 28 anos, fala sobre o aumento do uso da substância. Segundo ele, “o lança virou febre nos fluxos de um ano para cá”.

“É uma praga da juventude, é fácil e barato o acesso”, disse Mel. O apresentador já presenciou jovens que tiveram problemas com o uso da droga. “Uma menina de 15 anos baforou, começou a se debater, caiu e teve um ataque epilético. Fiquei abanando e dando água”.

MC Xocolate disse que nunca falará de drogas em suas músicas (Foto: Paula Paiva Paulo)MC Xocolate disse que nunca falará de drogas em
suas músicas (Foto: Paula Paiva Paulo)

Cláudio Santos Celestino, de 21 anos, o MC Xocolate, da comunidade do Gato, região central de São Paulo, perdeu um amigo para a droga há três meses. “A gente estava num baile funk, ele baforando, a língua dele virou, ele não conseguiu respirar e foi 'fatality'.” Em suas músicas, o MC disse que não faz apologia ao lança-perfume. “Eu expresso minha realidade e meu sonho, você nunca vai me ver falando de droga”.

A Secretaria da Segurança Pública informou que, de janeiro a novembro, o Departamento Estadual de Prevenção e Repressão ao Narcotráfico (Denarc) apreendeu mais de 800 frascos dessas substâncias solventes ou inalantes.

Efeitos no corpo
O lança-perfume tem um efeito rápido, que dura de 10 a 15 minutos, o que faz com que as pessoas usem quantidades grandes para repor a substância. O efeito inicial é muito parecido com o do álcool, causa euforia e a pessoa fica mais agitada. A droga também provoca aceleramento cardíaco.

Alguns minutos depois, se a quantidade consumida for muito grande, pode haver uma depressão do sistema nervoso central e o relaxamento de funções vitais importantes, com risco de levar ao coma e até a morte, explica a psicóloga do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (USP), Cláudia Cristina de Oliveira Camargo. Usado junto com álcool, os efeitos e riscos são potencializados.

Tanto para as famílias quanto para os profissionais de saúde é importante mais atenção para o uso dessa substância. É um quadro de drogas subidentificado, mas que está levando as pessoas à morte"
Cláudia Camargo, do Instituto de Psiquiatria da USP

A longo prazo, o uso provoca perdas cognitivas importantes, com comprometimento de memória e de funções do cérebro importantes para tomadas de decisão, como o raciocínio lógico e abstrato.

Segundo a psicóloga, é a quarta droga mais consumida no Brasil, atrás do álcool, tabaco e maconha. A profissional disse que como não é detectada a dependência do inalante, as pessoas não vão aos serviços de tratamento, o que torna ainda mais perigosa a exposição. Pouco se fala disso e no serviço de atendimento especializado não se trata dessa demanda.

“Tanto para as famílias quanto para os profissionais de saúde é importante mais atenção para o uso dessa substância. É um quadro de drogas subidentificado, mas que está levando às pessoas a morte”, disse Cláudia.

Músicas falam sobre a droga; MC diz que retrata a realidade
Algumas músicas que tocam nos bailes falam sobre o uso da substância, como “É o lança de côco, baforo ficou louco”, do MC Bin Laden. A letra ainda diz “Quem não bafora aqui, aqui não transa”, e “olha o tuim”. “Tuim” é o som descrito por usuários que faz na cabeça durante o consumo do lança-perfume.

O MC também lançou uma segunda versão, chamada "Lança de côco 2". Nesta, a letra fala "Qual foi, qual é, o lança de côco faz você gelar o pé". Um dos efeitos da substância é a sensação de estar com o pé gelado.

Apesar das letras, o MC Bin Laden disse ao G1 que não usa a substância e que apenas retrata a realidade que vê. "Por frequentar alguns fluxos de rua, passei a observar mais as pessoas e o modo como ficavam então resolvi me expressar citando-as", disse.

O músico ainda contou que já perdeu um amigo muito próximo para a droga e que lamenta muito por ele não estar aqui hoje e ver que ele se tornou um MC.

Questionado se ele considera que estimula o uso com suas músicas, Bin Laden diz não saber. "Não sei, só sei que bem antes de eu cantar sobre, já estava acontecendo".

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