A suposta revelação da verdadeira identidade da escritora best-seller italiana Elena Ferrante, um dos maiores e mais misterioros fenômenos da literatura internacional contemporânea, causou polêmica e acusações de invasão de privacidade. Embora dê entrevistas para falar de sua obra, Ferrante sempre se apresenta anoninamente e sem divulgar fotos – por isso o mistério. Não se sabia sequer se por trás do pseudônimo estava um homem ou uma mulher.
O que havia eram somente suspeitas, e é justamente uma delas que se comprova na reportagem "Elena Ferrante: Uma resposta?" publicada neste domingo (2) na revista americana "The New York Review of Books". No artigo reproduzido por publicações na Itália, na França e na Alemanha, o jornalista italiano Claudio Gatti escreve que a autora da cultuada "Série Napolitana" é na verdade a tradutora Anita Raja, de 63 anos. No Brasil, a Biblioteca Azul já publicou dois dos quatro volumes da série de Ferrante: "A amiga genial" e "História do novo sobrenome".
Nos últimos anos, por conta do estilo das obras que costuma traduzir (ela é especializada em verter obras do alemão para o italiano), Anita Raja já vinha sendo apontada frequentemente como um dos possíveis autores por trás de Elena Ferrante. Franz Kafka é um dos escritores que ela já traduziu.
O marido de Raja, o escritor Domenico Starnone, também era mencionado por aqueles que especulavam sobre a identidade da célebre Elena Ferrante.
'Meses de investigação'
A reportagem de Gatti – que escreve regularmente para o diário de economia e negócios italiano "Il Sole 24 Ore", que também reproduziu a reportagem na versão dominical – baseia-se em documentos que registram a movimentação financeira de Anita Raja.
O texto recorre tanto a pagamentos feitos à tradutora quanto a imóveis que ela e o marido registraram recentemente. De acordo com Gatti, o casal comprou nos últimos anos dois grandes apartamentos em Roma e uma propriedade na Toscana, todos em áreas valorizadas – o custo total teria sido de milhões de euros.
"Depois de meses de investigação, agora é possível construir um caso sólido a respeito da verdadeira identidade de Ferrante. Longe de ser a filha de uma costureira de Nápoles descrita em 'La frantumaglia', as novas revelações no patrimônio e nos registros financeiros apontam para Anita Raja, uma tradutora que mora em Roma e cuja mãe, nascida na Alemanha, fugiu do Holocausto e mais tarde se casou com um magistrado napolitano", escreve Gatti no artigo.
O "La frantumaglia" que ele menciona é um volume de crônicas lançado em 2003 no qual Elena Ferrante fala sobre seu ofício e suas origens.
Raja 'frila' na editora de Ferrante
De acordo com o artigo de Gatti, Anita Raja presta serviços há muitos anos traduzindo literatura alemã para a pequena editora romana Edizioni E/O. É a mesma casa que publica a obra de Ferrante.
Além disso, Raja coordenou por um breve período um selo da editora. O mesmo que, de acordo com um porta-voz da casa, lançou um total de "três ou quatro livros, incluindo o primeiro romance de Ferrante", na década de 1990.
O porta-voz da editora teria ainda descrito o trabalho Raja como "simples freelance de tradução", informando que ela "absolutamente não" era uma empregada com registro em carteira. Apesar disso, conclui Gatti, "os pagamentos que ela [Anita Raja] recebeu cresceram dramaticamente em anos recentes e parecem fazer dela, disparado, a maior beneficiária do sucesso de Ferrante – primeiro na Itália e depois internacionalmente".
Em 2014, a Edizione E/O registrou um aumento de arrecadação de 65%. O período coincide com aquele em que os livros de Elena Ferrante se tornaram best-sellers.
Editor fala em 'jornalismo repugnante'
Em nota enviada ao jornal italiano "Il Sole 24 Ore", a editora comenta: "Estamos muito irritados com a violação da privacidade, tanto da editora como de Ferrante. Não faremos nenhuma declaração".
Editor de Ferrante, Sandro Ferri falou ao jornal britânico "The Guardian" sobre o episódio e se disse chocado com a tentativa de desmascarar uma mulher que propositalmente evitou os holofotes e sempre alegou querer apenas escrever seus livros.
Ferri é um dos poucos a conhecer a verdadeira identidade da escritora. Sem desmentir a conclusão do artigo, ele afirmou ao "Guardian": "Nós achamos que esse tipo de jornalismo é repugnante. Fuçar na carteira de um escritor que decidiu não ser 'público'".
Já Claudio Gatti, autor da suposta descoberta, defende-se dizendo que os leitores têm o direito de saber, afinal, quem é Elena Ferrante.
Uma das proprietárias e fundadoras da da Edizione E/O, Sandra Ozzola Ferri, afirmou ao jornal americano "The New York Times": "Se uma alguém quer ser deixado em paz, deixe-o em paz. Ela não é membro da [máfia] Camorra ou o Berlusconi. Ela é uma escritora e não está fazendo mal a ninguém".