01/09/2016 07h31 - Atualizado em 01/09/2016 07h31

'Aquarius' faz reflexão poderosa, mas tem vilão simplista; G1 já viu

Briga entre bem e mal em conflito principal tira densidade da história.
Com atuação grandiosa, Sonia Braga vive mulher de 65 rara no cinema.

Carol PradoDo G1, em São Paulo

Ao finalmente chegar aos cinemas nesta quinta-feira (1º) após a série de polêmicas que ajudaram a transformá-lo no filme brasileiro mais falado do ano, "Aquarius" entrega a poderosa reflexão humana e política que prometeu, com técnica impecável e a grandiosa atuação de Sonia Braga. Peca, no entanto, ao reduzir a uma briga entre bem e mal circunstâncias que, na realidade, são bem mais complexas.

Clara, personagem de Sonia, é a quase perfeita representação do bem. Uma "burguesa tranquila" (como define o diretor, Kleber Mendonça Filho), honesta, afável, determinada, contemporânea, sem preconceitos, que mantém uma vida saudável e transita bem entre outras classes sociais - embora as tensões raciais e econômicas, temas caros ao cineasta, estejam presentes na relação com a empregada Ladjane (Zoraide Coleto).

Importunada por uma construtora decidida a transformar o Aquarius, prédio onde vive e último representante de estilo antigo na praia de Boa Viagem, no Recife, em um suntuoso empreendimento de luxo, ela não abre mão do apartamento onde criou os filhos e viveu com o marido já falecido.

Mas seria injusto dizer que não há mais camadas na protagonista. A crítica de música aposentada, que hoje se dedica a uma vida simples em meio à sua coleção de discos e álbuns de fotos antigas, mostra uma profunda e sensível relação com o passado, as memórias, e as marcas do seu tempo. Elas estão cravadas no próprio corpo - como canta Taiguara na música tema "Hoje", que caiu como uma luva à história (aliás, vale destacar a excelente trilha sonora do filme).

Sonia Braga em cena de 'Aquarius' (Foto: Victor Juca/Divulgação)Sonia Braga em cena de 'Aquarius' (Foto: Victor Juca/Divulgação)

Avó sem bengala
Admirável também é a construção de Clara, uma mulher de 65 anos, como alguém com uma vida ativa, que se diverte com as amigas, tem desejos sexuais e sem ideias ultrapassadas. Uma avó sem bengala, óculos ou dor nas costas, é uma protagonista rara no cinema e demonstra a coragem do diretor.

A figura central da trama reflete, todo o tempo, sobre a relação entre o velho e o novo, seja quando vai ao cemitério levar flores ao marido e se depara com coveiros retirando restos de uma outra cova para desocupá-la ou quando diz, em uma entrevista a duas jovens repórteres, que gosta de discos, mas também de MP3 e streaming. Para ela, o antigo e o moderno podem conviver em harmonia.

Humberto Carrão em cena de 'Aquarius' (Foto: Victor Juca/Divulgação)Humberto Carrão em cena de 'Aquarius' (Foto: Victor Juca/Divulgação)

Coxinha clássico
O oposto é representando por Diego (Humberto Carrão), ávido por substituir o que já lhe parece ultrapassado. Ganancioso e arrogante, o "vilão" da história, um funcionário de alto escalão da construtora, é construído para ser deliciosamente odiado.

Demonstra suas falhas de caráter em todas as suas aparições, com frases chavões como "você não me conhece", e vira chacota dos espectadores graças ao humor sarcástico de Mendonça Filho, que o transforma em um "coxinha" clássico. Basta dizer que ele estudou "business" (leia com sotaque afetado) no exterior e pensou no nome Atlantic Plaza Residence para o condomínio que tentava levantar.

Não é de se duvidar que personalidades assim existam aos montes no mercado voraz das incorporadoras, mas desenhar o rapaz de forma menos simplista daria mais densidade ao conflito. Há ainda a filha de Clara, Ana Paula (Maeve Jinkings), que se soma a Diego no lado "mau" da história ao tentar convencer a mãe a deixar o apartamento, com o argumento de que ela é a única moradora de um prédio sem segurança. Uma preocupação justificável na vida real, minimizada no filme em nome da inquestionabilidade da protagonista. O personagem acaba retratado como chato e insensível.

Maniqueísmo à parte, "Aquarius" certamente vale (e muito) a ida ao cinema. Seu debate sobre especulação imobiliária, pressões econômicas, tensões de poder e resistência não poderia ser mais atual. Seu ensaio sobre a nostalgia, os laços familiares e a relação entre gerações é cativante, especialmente em momentos que fogem ao embate principal.

Quem viu "O som ao redor" (2012), ótimo longa de estreia de Mendonça Filho, deve reparar em semelhanças, como o suspense latente na trama e o destaque aos barulhos do cotidiano, mas também em uma narrativa menos ousada e sutil, mais popular. Seja como for, com "Aquarius" (e a ajuda de um punhado de controvérsias), o diretor se consolida de vez como um dos principais nomes do cinema brasileiro.

Sonia Braga em cena de 'Aquarius' (Foto: Victor Juca/Divulgação)Sonia Braga em cena de 'Aquarius' (Foto: Victor Juca/Divulgação)
Cena de 'Aquarius' (Foto: Victor Juca/Divulgação)Cena de 'Aquarius' (Foto: Victor Juca/Divulgação)
Julia Bernat, Pedro Queiroz e Sonia Braga em cena de 'Aquarius' (Foto: Victor Juca/Divulgação)Julia Bernat, Pedro Queiroz e Sonia Braga em cena de 'Aquarius' (Foto: Victor Juca/Divulgação)
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