- Assista ao trailer de 'Aquarius'
- 'Aquarius': Sonia Braga dança e fala de personagem em cena inédita; veja
- 'Aquarius' ganha classificação indicativa de 18 anos no Brasil
- Sônia Braga é homenageada em exibição de 'Aquarius' em Gramado
- Luciano Trigo: 'Aquarius' explora as culpas e contradições da classe média
- 'Filme está com muita energia', diz diretor de 'Aquarius' perto da estreia
- 'Aquarius', estrelado por Sonia Braga, disputará Palma de Ouro em Cannes
- Diretor de 'Aquarius' diz estar nervoso com indicação para Cannes
- Equipe de 'Aquarius' protesta em Cannes contra impeachment de Dilma
- Atuação de Sônia Braga em 'Aquarius' recebe elogios em Cannes
- 'Aquarius vai fazer você querer morar no Brasil': As reações ao filme
- Brasil está dividido, lamenta diretor Kleber Mendonça Filho em Cannes
Ao finalmente chegar aos cinemas nesta quinta-feira (1º) após a série de polêmicas que ajudaram a transformá-lo no filme brasileiro mais falado do ano, "Aquarius" entrega a poderosa reflexão humana e política que prometeu, com técnica impecável e a grandiosa atuação de Sonia Braga. Peca, no entanto, ao reduzir a uma briga entre bem e mal circunstâncias que, na realidade, são bem mais complexas.
Clara, personagem de Sonia, é a quase perfeita representação do bem. Uma "burguesa tranquila" (como define o diretor, Kleber Mendonça Filho), honesta, afável, determinada, contemporânea, sem preconceitos, que mantém uma vida saudável e transita bem entre outras classes sociais - embora as tensões raciais e econômicas, temas caros ao cineasta, estejam presentes na relação com a empregada Ladjane (Zoraide Coleto).
Importunada por uma construtora decidida a transformar o Aquarius, prédio onde vive e último representante de estilo antigo na praia de Boa Viagem, no Recife, em um suntuoso empreendimento de luxo, ela não abre mão do apartamento onde criou os filhos e viveu com o marido já falecido.
Mas seria injusto dizer que não há mais camadas na protagonista. A crítica de música aposentada, que hoje se dedica a uma vida simples em meio à sua coleção de discos e álbuns de fotos antigas, mostra uma profunda e sensível relação com o passado, as memórias, e as marcas do seu tempo. Elas estão cravadas no próprio corpo - como canta Taiguara na música tema "Hoje", que caiu como uma luva à história (aliás, vale destacar a excelente trilha sonora do filme).
Avó sem bengala
Admirável também é a construção de Clara, uma mulher de 65 anos, como alguém com uma vida ativa, que se diverte com as amigas, tem desejos sexuais e sem ideias ultrapassadas. Uma avó sem bengala, óculos ou dor nas costas, é uma protagonista rara no cinema e demonstra a coragem do diretor.
A figura central da trama reflete, todo o tempo, sobre a relação entre o velho e o novo, seja quando vai ao cemitério levar flores ao marido e se depara com coveiros retirando restos de uma outra cova para desocupá-la ou quando diz, em uma entrevista a duas jovens repórteres, que gosta de discos, mas também de MP3 e streaming. Para ela, o antigo e o moderno podem conviver em harmonia.
Coxinha clássico
O oposto é representando por Diego (Humberto Carrão), ávido por substituir o que já lhe parece ultrapassado. Ganancioso e arrogante, o "vilão" da história, um funcionário de alto escalão da construtora, é construído para ser deliciosamente odiado.
Demonstra suas falhas de caráter em todas as suas aparições, com frases chavões como "você não me conhece", e vira chacota dos espectadores graças ao humor sarcástico de Mendonça Filho, que o transforma em um "coxinha" clássico. Basta dizer que ele estudou "business" (leia com sotaque afetado) no exterior e pensou no nome Atlantic Plaza Residence para o condomínio que tentava levantar.
Não é de se duvidar que personalidades assim existam aos montes no mercado voraz das incorporadoras, mas desenhar o rapaz de forma menos simplista daria mais densidade ao conflito. Há ainda a filha de Clara, Ana Paula (Maeve Jinkings), que se soma a Diego no lado "mau" da história ao tentar convencer a mãe a deixar o apartamento, com o argumento de que ela é a única moradora de um prédio sem segurança. Uma preocupação justificável na vida real, minimizada no filme em nome da inquestionabilidade da protagonista. O personagem acaba retratado como chato e insensível.
Maniqueísmo à parte, "Aquarius" certamente vale (e muito) a ida ao cinema. Seu debate sobre especulação imobiliária, pressões econômicas, tensões de poder e resistência não poderia ser mais atual. Seu ensaio sobre a nostalgia, os laços familiares e a relação entre gerações é cativante, especialmente em momentos que fogem ao embate principal.
Quem viu "O som ao redor" (2012), ótimo longa de estreia de Mendonça Filho, deve reparar em semelhanças, como o suspense latente na trama e o destaque aos barulhos do cotidiano, mas também em uma narrativa menos ousada e sutil, mais popular. Seja como for, com "Aquarius" (e a ajuda de um punhado de controvérsias), o diretor se consolida de vez como um dos principais nomes do cinema brasileiro.