Guia de carreiras

Por Ana Carolina Moreno, G1


Guia de Carreiras: medicina

Guia de Carreiras: medicina

A ligação entre "vocação" e medicina é uma certeza para a maioria dos que sonham com a carreira. Mas o sonho profissional vai além disso, e as dúvidas dos estudantes são muitas. O G1 selecionou cinco questões ou ideias normalmente associadas ao curso e ao mercado para descobrir com especialistas o que é fato na carreira:

  • É preciso muitos anos de cursinho para entrar em alguma faculdade boa?
  • Todo médico vai ser bem-sucedido?
  • Os profissionais cubanos vão ocupar todas as vagas?
  • Precisa saber lidar com a morte?
  • É verdade que não falta emprego para quem é médico?

O G1 ouviu profissionais e estudantes da área para responder às questões acima:

  • Henry Campos, reitor da Universidade Federal do Ceará (UFC)
  • Paulo Sérgio Ramos de Araújo, infectologista do Departamento de Parasitologia da Fiocruz Pernambuco e professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)
  • Valeska Holst Antunes, médica de saúde da família da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro
  • Miller Barreto, residente de cirurgia do aparelho digestivo na Universidade de São Paulo (USP)

Veja abaixo o que eles dizem:

É preciso fazer muitos anos de cursinho para conseguir passar em alguma faculdade boa?

A concorrência para uma vaga supera a de qualquer outra carreira. No Sistema de Seleção Unificada (Sisu) em 2016, cada uma das 2.255 vagas foi disputada por 52 candidatos. Na Fuvest, os cursos de medicina em São Paulo e Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP) tiveram concorrência de 63 e 75 candidatos por vaga, respectivamente.

A nota de corte das duas carreiras na Fuvest 2017 foi de 69 acertos em uma prova com 90 questões. Já no Sisu, a primeira nota de corte parcial mostrou que, com nota média abaixo de 727,44 pontos, ninguém entraria em um dos 83 cursos de medicina nas universidades estaduais e federais participantes.

Valeska Antunes, que hoje tem 37 anos, diz que passou na faculdade direto do colégio. "Era meio 'nerd', ia bem em tudo", lembra ela. Miller Barreto, de 28 anos, afirma que precisou de um ano de curso pré-vestibular para garantir uma vaga na UFC. "Tinha consciência de que era um negócio difícil, que era um desafio, mas no colégio eu sempre costumava ter boas notas, estava sempre entre os primeiros da turma." Como em sua primeira tentativa ele passou para a segunda fase de todos os vestibulares, e chegou perto da aprovação, o atual residente diz que conseguiu bolsa integral em um cursinho de Fortaleza.

Apesar da experiência de Miller e de Valeska, a concorrência em medicina vem aumentando ano a ano e exigindo notas cada vez mais altas dos candidatos. Isso acaba interferindo no número de tentativas no vestibular, antes da sonhada aprovação. Na Fuvest 2016, 53% dos estudantes matriculados no curso de medicina na Capital paulista afirmaram que precisaram de pelo menos dois anos de cursinho para conquistar a aprovação (veja abaixo):

Com ou sem cursinho pré-vestibular?
Só 9,7% dos aprovados na medicina da USP na Fuvest 2016 passaram direto no vestibular, sem cursinho
Fonte: Fuvest

"Em geral, os alunos egressos de escolas que dispunham de um melhor ensino ingressam em faculdades de medicina entre a primeira e a segunda tentativa", afirma Paulo Sérgio, da Fiocruz.

O professor Henry Campos, que é nefrologista e clínico geral, defende, porém, que os vestibulares passem por processos de aprimoramento para selecionar os calouros de medicina segundo outros critérios, além de uma prova. "Deveria incluir outros elementos, acho que precisa ter uma certa vocação", diz ele. Segundo Campos, na Inglaterra, um dos pré-requisitos para ser aceito no curso de medicina é ter desenvolvido trabalhos voluntários em instituições como asilos.

Ele também cita a necessidade de realizar entrevistas com os candidatos, pois "é importante ter uma motivação e querer salvar vidas, de querer assumir esse compromisso". Além disso, Henry afirma que, mais do que aptidão para matérias de biologia e química, um bom médico também deve ter uma sensibilidade para a arte.

"O médico precisa ter uma cultura ampla, precisa conhecer e saber penetrar, que a sensibilidade penetrar nos melindres da alma humana, conhecer o sofrimento, saber lidar com ele, ter compaixão." - (Henry Campos, professor de medicina e reitor da UFC)

Guia de Carreiras: Medicina tem salários mais altos, mas exige muitas horas de trabalho

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Todo médico vai ser bem-sucedido?

Para muitos, medicina é sinônimo de fortuna financeira. Embora em comparação com outros profissionais o salário do médico seja consideravelmente mais alto, quem atua no mercado afirma que o valor depende, e muito. "Acho que se a gente não usar esse conceito de bem-sucedido como 'quem faz medicina tem muita chance de ficar rico', eu diria não", diz Henry Campos.

"Eu acho que é uma profissão que dá muita satisfação, dá muita recompensa pessoal, é um privilégio. (...) Agora, fazer fortuna na medicina é cada vez menos provável, a não ser que você seja filho de médico que já é de um micro império."

Para Valeska, a ideia de que todo médico vai ser rico é "falaciosa", já que a profissão exige muitas horas de trabalho, estudo constante e problemas estruturais.

"Se manter um bom profissional exige dedicação para sempre, precisa estudar para toda a vida. As informações vão mudando e é muito importante se manter atualizado." Ela lembra que, na carreira, o conceito de "bem sucedido" pode também ter a ver com a satisfação profissional.

Laboratório da Fiocruz, em Pernambuco: medicina oferece ampla área de atuação, mas demanda muitos anos de formação e atualização constante — Foto: Divulgação/Ascom/Fiocruz PE

Os profissionais cubanos do Mais Médicos vão ocupar todas as vagas?

Esse é um mito que todos os profissionais ouvidos pelo G1 tentam derrubar com argumentos. Henry Campos, que faz parte de uma comissão de especialistas em medicina do Ministério da Educação, e ajudou a desenhar o programa Mais Médicos, explica que um dos problemas que o programa veio solucionar era a falta de médicos nos municípios mais afastados dos grandes centros, tanto pela escassez de profissionais formados quanto pela falta de interesse dos médicos brasileiros de morar nesses locais.

"Fizemos um desenho para que em 2020 não precisássemos mais importar médicos, com expansão de vagas nos cursos já existentes, e criandos novos cursos. Pode ser que não aconteça em 2020, mas bem próximo daí nós não precisaremos importar médicos. Mas o que a população não vai mais aceitar é não ter médicos", diz ele.

Valeska afirma, ainda, que o convênio com Cuba só foi firmado depois que as vagas foram oferecidas a médicos brasileiros, mas continuaram abertas.

"De fato tínhamos muitas vagas não preenchidas e sem previsão de serem preenchidas em poucos anos. Eles [médicos cubanos] são impedidos de permanecer por mais de três anos. Não apenas pelas regras brasileiras, mas pelas regras cubanas."

Paulo Sérgio, da Fiocruz, lembra que as vagas oferecidas ao médicos cubanos, "de forma geral, estavam disponíveis em localidades distantes das capitais e com condições precárias de atendimento".

Henry Campos afirmou, ainda, que os cubanos receberam, na grande maioria dos casos, uma boa aceitação da população atendida. "Uma das razões de aceitação desses médicos do sistema cubano é que eles praticam essa medicina que dá mais atenção à relação médico-paciente, que tem mais escuta, que tem mais proximidade com o paciente, que realmente realiza o exame físico, local. Isso é extremamente importante."

Precisa saber lidar com a morte?

Falando por experiência própria, os médicos ouvidos pelo G1 todos concordam que essa de fato é uma realidade da profissão.

"Nos não somos ainda treinados nas universidades para lidar com a terminalidade da vida e a morte. Somos durante todo o período acadêmico treinados para promover a saúde e a tentativa de curar doenças" - (Paulo Sérgio Ramos de Araújo, infectologista da Fiocruz)

Paulo Sérgio, que atua na equipe da Fiocruz em Pernambuco responsável pelos estudos sobre o Zika vírus, alerta que, caso os estudantes não estejam bem preparados para enfrentar essa realidade, isso pode levá-los a quadros de ansiedade e depressão.

Miller Barreto, que começou neste ano sua residência em cirurgia do aparelho digestivo, depois de seis anos de graduação e dois de cirurgia, afirma que, durante sua graduação na UFC, a aproximação dos estudantes aos cadáveres foi feita aos poucos, para dar a eles a chance de absorver a ideia, mantendo o respeito pelo ser humano.

"Na verdade é muito raro você ver alguém passando mal numa aula dessas, de ter pânico de ver um cadáver. Na hora você está tão no ambiente acadêmico, naquela coisa de estudar, que acaba sendo uma coisa muito natural."

Para Henry Campos, que é formado há 41 anos também na UFC, é professor da universidade há 35 anos, saber lidar com a morte significa não perder a sensibilidade, e não encarar a morte como algo que não possa ser habitado.

"A gente tem que ter uma ponderação muito grande, saber qual é o momento de parar, mas, em princípio, a nossa obrigação é lutar pela vida do paciente. É uma frustração muito grande para o médico, tem que ter a humildade de reconhecer que chegou a hora, que entregue os pontos. Agora, não pode perder a sensibilidade. Para mim não vai deixar de doer nunca a perda de um paciente, vai ser sempre muito presente."

Valeska, que tem como foco principal de sua atuação a promoção de qualidade de vida e a prevenção de doenças, lembra ainda que uma parte fundamental da formação do médico é "acolher o paciente e sua família, inclusive no processo da preparação para morte, com o menor sofrimento possível".

Valeska Antunes é médica de família e de comunidade em Manguinhos, no Rio, e afirma que a carreira de medicina, apesar de trazer muita gratificação, é bastante exigente e, frequentemente, desafia os profissionais por causa das condições precárias de trabalho — Foto: Andressa Gonçalves/G1

É verdade que não falta emprego para quem é médico?

Sim, mas talvez não por muito tempo, dizem todos. O residente Miller Barreto é um bom exemplo de como os médicos ainda têm muitas oportunidades de emprego no Brasil. Assim que terminou a graduação em medicina, ele afirma que imediatamente conseguiu um emprego em um posto de saúde no interior do Ceará.

"Chegava a ser engraçado, as pessoas te ligavam já sabendo o seu nome, já sabendo tudo, te oferecendo emprego. Não sabia nem de onde eles tinham conseguido meu celular. Quando a gente formou já apareceu oferta. Colei grau no dia 4, dia 10 já estava trabalhando. Foi o tempo de me regularizar no CRM", lembra ele.

De acordo com o médico, quanto mais afastada, maiores são os salários, para atrair os profissionais. "A grande questão continua sendo estrutura física, porque não dá para fazer medicina só com papel e uma caneta. Tem toda uma estrutura de exame, medicação, que continua sendo o grande problema da medicina no país."

"Apesar de muitos avanços, ainda é preciso defender aumento dos investimentos no SUS. Não apenas pela questão dos salários, mas pelas condições de trabalho", concorda Valeska. "No momento podemos dizer que médico não passa fome. Vivemos ainda uma situação de pleno emprego. Mas a idéia de ser rico é sim falaciosa", diz a médica de família, que vive em Niterói e trabalha no Rio.

"O salário é acima da média das profissões, mas aquela ideia de ficar rico em consultório particular já caiu. Hoje a maior parte dos médicos retira a maior parte da sua renda em trabalho fixo ou pelos planos de saúde." (Valeska Holst Antunes, médica de saúde da família)

Henry Campos lembra que "a população que pode pagar um tratamento médico é relativamente pequena. Hoje, menos de 40% da população brasileira tem plano de saúde".

Segundo ele, a estrutura de ensino da medicina precisa se organizar para garantir a empregabilidade da profissão.

"O normal é que o processo de formação seja combinado com as necessidades da população. Eu formo especialistas em função do que eu preciso naquele momento. Hoje temos no Brasil uma sociedade muito diferente que tínhamos 20 anos atrás. Com pessoas vivendo mais, frequência maior de doenças crônicas. Com problemas de países desenvolvidos, como a obesidade e, ao mesmo tempo, problemas de países subdesenvolvidos, como doenças infecciosas. Para isso precisa de planejamento."

Paulo Sérgio de Araújo, infectologista da Fiocruz de Pernambuco e professor da Universidade Federal de Pernambuco — Foto: Arquivo pessoal/Paulo Sérgio de Araújo

De acordo com Paulo Sérgio, da Fiocruz, há dois fatores que podem acabar com a abundância de vagas no mercado.

"Com a crise econômica que o pais enfrenta nos últimos anos, muitos postos de trabalhos foram fechados, como unidades de saúde da família em municípios do interior, além de serviços de pronto atendimento públicos e privados tiveram que rever seu capital humano. Além deste fator, tem havido um aumento no número de escolas médicas em todo o país, com uma maior disponibilidade de jovens médicos a cada ano. Estes dois fatores certamente determinarão maior oferta de profissionais, aliada à maior escassez de postos de trabalho."

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