2021: ano do início da Década do Oceano
2021 é um ano ímpar para a agenda global do oceano. É nele que se inicia, efetivamente, a “Década do Oceano”, orquestrada pela Organização das Nações Unidas (ONU). Neste ano, também, já será possível analisar os resultados dos primeiros cinco anos da Agenda 2030 (2016-2030), cujo Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 14 – “Vida na água” –, sobretudo, possui estreita relação com a agenda de mares e oceanos. Além disso, ao que tudo indicava, em 2020 ocorreria a segunda Conferência do Oceano da ONU (Lisboa, Portugal), adiada desde então, em decorrência da atual pandemia e ainda sem data confirmada.
Diante da relevância do começo da década, cujos esforços já começaram internacionalmente desde 2017 (a fase preparatória para a década compreendeu o período 2017-2020), o presente artigo busca contemplar como o Brasil tem se engajado na temática e quais suas repercussões para a Marinha do Brasil (MB).
Afinal, o que é a “Década do Oceano”?
Em 5 de dezembro de 2017, a ONU declarou a “Década da Ciência Oceânica para o Desenvolvimento Sustentável”, que compreenderia o período 2021-2030. Destacando a relevância da ciência e a necessidade de engajamento político, ela busca aprimorar a disponibilidade de dados e fortalecer a gestão sustentável do oceano. Devido à extensão do seu nome, é frequentemente chamada de “Década do Oceano da ONU”. Seu slogan é “a ciência que precisamos para o oceano que queremos”.
Encarregada pela Assembleia Geral da ONU, a coordenação internacional é realizada pela Comissão Oceanográfica Intergovernamental (COI) da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO). Tendo como visão “desenvolver o conhecimento científico, construir infraestruturas e promover parcerias para um oceano sustentável e saudável”, busca como principais resultados um oceano: 1. limpo, 2. seguro, 3. saudável e resiliente, 4. produtivo e explorado sustentavelmente, 5. previsível, 6. transparente, e 7. conhecido e valorizado. Destes, pode-se claramente ver interconexões com interesses da MB.
Chama a atenção que no escopo da década, há apenas um único oceano – sempre no singular. Como consequência, a cooperação internacional é essencial para viabilizar o desenvolvimento de pesquisas científicas e tecnologias inovadoras capazes de associar a ciência oceânica às necessidades humanas do século XXI - incluindo todas as vertentes de monitoramento, conhecimento e segurança, por exemplo, tão afetas à Defesa. Para tal, envolve uma série de atores em diferentes níveis, como países, ONU, demais organizações internacionais, indústria, academia, doadores e investidores, assim como sociedade civil, organizações governamentais e organizações não-governamentais (ONGs).
Como tem sido gerida a discussão nacional dessa década?
No Brasil, a condução central da “década” tem sido gerida pelo Programa Ciência no Mar, do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI). O MCTI é o representante científico na COI/UNESCO, sendo responsável por coordenar a agenda visando a alcançar seus resultados esperados.
Em 2019 (presencialmente) e 2020 (virtualmente), o MCTI realizou uma série de atividades preparatórias à década. Destacam-se duas oficinas nacionais (agosto e dezembro de 2020) e cinco oficinas subnacionais – regionais – (de agosto a novembro de 2020) e a MB se fez partícipe nessas articulações. Estas contaram com momentos assíncronos de atividades prévias, como a leitura de materiais indicados, além de 10 horas de atividades ao longo da semana de cada evento. Nelas, participaram representantes selecionados de diferentes setores da sociedade (civis e militares), tendo sido divididas em discussões orientadas com base em cada um dos sete resultados esperados (citados na introdução).
Outro engajamento crescente tem ocorrido pela comunidade acadêmica. Programas já bastante estruturados, como o “Ciências do Mar” – nucleado na Comissão Interministerial para os Recursos do Mar, já vinham articulando parcerias acadêmicas, de pesquisas na temática e serviram de suporte ao incremento
dessa interlocução. Diversos eventos têm sido realizados e cita-se como exemplo o Workshop Regional para o Atlântico Sul, organizado pela MB (Diretoria de Hidrografia de Navegação), em novembro de 2019, nas instalações da Escola de Guerra Naval (EGN). Várias iniciativas também têm sido nucleadas pela USP. Outro exemplo, o Programa da Pós-Graduação em Estudos Marítimos (PPGEM) e a Revista da EGN, no momento, têm aberta a chamada para edição temática especial sobre a década, em 2021. A princípio, pode transparecer que a ciência oceânica seria apenas a discussão das chamadas hard sciences (ou ciências exatas e da terra), entretanto, essa é a inovação; o debate tem incluído as questões estratégicas e de interesse nacional, o que aproxima a discussão da Defesa. Esse debate mostra que a temática tem sido cada vez mais absorvida pela agenda acadêmica nacional, como instrumento de fortalecimento da Mentalidade Marítima.
Por que essa discussão tem repercussões na MB?
Em que pese, a princípio, a relevância das discussões sobre medidas internacionalmente adotadas ao longo da década pareça guardar majoritária relação com aspectos científicos relacionados às questões da preservação da biodiversidade marinha, há aspectos com direta relação com decisões geopolíticas e estratégicas, bem como com a capacidade operacional das Marinhas de Guerra. Esse debate não é novo no pensamento estratégico naval. Algumas dessas implicações são evidentes. Por exemplo, a discussão das mudanças climáticas e suas consequências na elevação de temperatura global (e dos oceanos) impacta a questão da dimensão congelada do Ártico e, com isso, interesses geopolíticos na região e o fluxo mercantil, incluindo segurança marítima e indústria de Defesa adaptada. Outra evidência dessa alteração de temperatura (e também de PH) da água do mar guarda direta relação com a propagação do som no mar e, consequentemente, em toda a ciência ligada à operação submarina, incluindo sistemas de comunicação, dentre outras. Várias outras consequências ainda podem ocorrer, como propagação ionosférica, sistemas de navegação, etc.
O debate em torno de medidas mitigatórias da poluição marinha também será, certamente, incrementado e há tendência de nascimento de demandas e acordos que podem impactar duplamente a MB. Por sua atuação como Autoridade Marítima, portanto, responsável pela regulação do tráfego marítimo, podendo surgir limitações às características dos meios marítimos que afetem a operacionalidade do fluxo mercantil nacional. Enquanto Marinha de Guerra, algumas dessas eventuais novas medidas também podem impactar na operacionalidade de meios navais. Por exemplo, foi decorrente de decisão da Organização Marítima Internacional (IMO), fruto de pressão internacional, que surgiu a obrigatoriedade de casco duplo para navios-tanque, e tal medida resultou em necessidade de ajustes estratégicos da MB.
Ou seja, a MB tem, por princípio, três protagonismos nesse debate, o mais abrangente deles, como particular indutora da mentalidade marítima nacional – por exemplo, com a alavancagem do conceito de Amazônia Azul. O segundo, decorre das responsabilidades inerentes à Autoridade Marítima Nacional, exercida pelo Comandante da Marinha, e de todos os setores da MB que labutam permanentemente em apoio a essas responsabilidades. O terceiro, emana da necessidade de acompanhamento do debate que pode afetar ações de monitoramento, vigilância, áreas protegidas, uso de tecnologias inovadoras (especialmente com a crescente pesquisa no uso de meios navais autônomos), dentre outras, que podem impactar seu pensamento estratégico-operacional.
*Professor do Programa de Pós-Graduação em Estudos Marítimos da Escola de Guerra Naval (PPGEM/EGN) e Coordenador do Grupo Economia do Mar (GEM)
**Capitão de Mar e Guerra (RM1) e Professor do Programa de Pós-Graduação em Estudos Marítimos da Escola de Guerra Naval (PPGEM/EGN) e Coordenador do Observatório de Políticas Marinhas (OPM)