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Paulo Cruz

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A liberdade é um direito radical. Coluna semanal

Educação

Sobre proibir celulares nas salas de aula…

celular na sala de aula
Proibição do uso de celular nas escolas foi aprovada em São Paulo. (Foto: Marcio Antonio Campos com Midjourney)

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“As repúblicas estão repletas de jovens civis, que acreditam que as leis fazem a cidade; que grandes modificações na política, nos modos de vida e nos empregos da população, bem como no comércio, na educação e na religião, podem ser votadas para serem implantadas ou removidas; e que qualquer medida, por mais absurda que seja, pode ser imposta a um povo, contanto que se obtenham votos suficientes para transformá-la em lei. Mas os sábios sabem que uma legislação tola é como uma corda de areia, que se desfaz ao ser torcida.” (Ralph Waldo Emerson)

O leitor já deve saber que sou professor de escola pública no estado de São Paulo e que leciono para turmas do ensino médio. Com a adoção do Novo Ensino Médio (NEM) – sobre o qual já falei aqui –, a carga horária de minha disciplina de formação, Filosofia, diminuiu sensivelmente, por isso tenho de completar minha carga horária com os chamados “Itinerários Formativos”. De modo que, atualmente, leciono cinco disciplinas correlatas: Filosofia e Sociologia, da Formação Geral Básica; Filosofia e Sociedade Moderna, Oratória e Projeto de Vida, que fazem parte dos Itinerários Formativos.

No estado de São Paulo, além da implementação do NEM, ainda houve uma total plataformização da educação. Há pelo menos 15 plataformas digitais que os alunos e professores devem utilizar atualmente e sem as quais se tornou praticamente impossível cumprir o currículo e o cronograma escolar. Algumas delas são: Tarefas SP, Materiais Digitais, Redação Paulista, Sala de Aula Virtual, Leia SP, Me Salva, Alura, Khan Academy, Matific, Elefante Letrado, Multiplica, Efape (Escola de Formação e Aperfeiçoamento dos Profissionais de Educação) e Apoio Presencial.

Os alunos têm, por semana, dezenas de atividades a serem realizadas on-line – e muitas são feitas durante as aulas, pois a maioria não faz em casa

A prática de leitura, antes realizada com livros físicos, foi substituída por e-books disponíveis na plataforma Leia SP. Sem contar o sistema de Business Inteligence (BI), que monitora a utilização das plataformas e cobra – leia-se pressiona – diretamente os diretores de escola com a possibilidade de transferência compulsória para outras escolas caso não cumpram as metas de utilização. A cada aula ministrada e registrada pelos professores na Secretaria Escolar Digital (SED), é gerada uma atividade (geralmente questões de múltipla escolha) para os alunos, que têm 48 horas para respondê-las numa plataforma. Ou seja, os alunos têm, por semana, dezenas de atividades a serem realizadas on-line – e muitas são feitas durante as aulas, pois a maioria não faz em casa.

Diante desse cenário, o governo do estado de São Paulo acabou de sancionar a Lei 293/2024, que “proíbe o uso de celulares e outros dispositivos eletrônicos pelos alunos nas unidades escolares da rede pública e privada de ensino, no âmbito do estado de São Paulo”. O governador Tarcísio de Freitas comemorou efusivamente, em sua conta no X:

“AGORA É LEI! Sancionamos a restrição para o uso de celulares nas escolas públicas e privadas do estado de São Paulo. Uma inovação que começa no nosso estado e que vai impactar positivamente tanto no aprendizado como na melhora da convivência entre os alunos. A partir do diálogo com pais, estudantes e professores vamos definir as normas que orientem o dia a dia do ambiente escolar. A tecnologia permanece no processo educacional com regras aliada a uma boa estrutura didática e pedagógica. Seguimos trabalhando na construção do futuro dos nossos alunos.”

Curiosamente, a direita bolsonarista, ávida por comprar as brigas mais inúteis, mirando no mero engajamento (a sua única preocupação, aliás), foi contra a lei por um motivo que eu afirmo – como já escrevi aqui mesmo, nesta Gazeta do Povo, no quarto e último artigo de uma de minhas várias séries sobre educação – não ser, nem de longe, o maior problema da educação brasileira, a famigerada doutrinação. O deputado Nikolas Ferreira, presidente da Comissão de Educação, encabeçou essa diatribe, dizendo, por exemplo, num pronunciamento feito nesta quarta: “não sou [...]  inocente de acreditar – e falo aqui, agora, sim, de forma ideológica, uma posição minha – que a esquerda não se utilizaria disso para, simplesmente, proibir todos os celulares em sala de aula e impossibilitar que o celular fosse um instrumento de defesa contra a doutrinação”. Algo que só pode ser dito, sem corar, por pessoas que desconhecem completamente a educação – sobretudo a educação pública – e só estão preocupados com sua “posição ideológica”.

Já tratei disso no artigo linkado acima, de modo que não me estenderei, mas é bom que se saiba que os alunos, sobretudo da escola pública, atualmente encontram-se num estado de indoutrinabilidade. É uma enorme e ridícula contradição em termos a preocupação com a doutrinação, uma vez que a própria lei surge justamente por causa da reclamação de que a utilização sistemática de celulares em sala de aula configura uma distração, pois eles usam o aparelho para jogar, ver vídeos, trocar mensagens – ou seja, tudo, menos estudar. Eles simplesmente não prestam atenção às aulas. Como serão doutrinados?

Ou seja, toda essa grita da direita bolsonarista em relação à lei não passa de firula, pose, encanação, fruto do costumeiro moralismo inócuo, estético, e do desejo por lacrar nas redes sociais. Mas, olhando a letra da lei, ficam algumas perguntas:

1. No artigo 1.º diz: “Fica proibida a utilização de celulares e outros dispositivos eletrônicos pelos alunos nas unidades escolares da rede pública e privada de ensino, no âmbito do estado de São Paulo”. No entanto, o artigo 3.º diz: “O uso de dispositivos eletrônicos será permitido em unidades escolares exclusivamente nas seguintes situações: I – quando houver necessidade pedagógica para utilização de conteúdos digitais ou ferramentas educacionais específicas; II – para alunos com deficiência que requerem auxílios tecnológicos específicos para participação efetiva nas atividades escolares”. (grifo meu)

Quem fiscalizará o uso indevido? O professor? O que fazer quando um marmanjo for pego utilizando o celular indevidamente?

Diante disso, a meu ver, um problema gravíssimo se impõe: Se absolutamente tudo que os alunos têm de fazer atualmente, durante as aulas, envolve o uso das famigeradas (e milionárias) Plataformas Digitais, e as escolas não têm computadores ou tablets suficientes para o uso pedagógico, a que horas eles não poderão usar o celular, uma vez que o usam (ou deveriam usar) para fazer as tarefas em sala de aula? E, mesmo que não tenham a intenção de utilizar para realizar as tarefas, podem simplesmente alegar que “sim” e reclamarem caso o professor se negue a dar-lhes o aparelho.

2. Nos parágrafos 1.º e 2.º do artigo 3.º está escrito que: “o uso dos dispositivos autorizados nos termos do inciso I deste artigo deve ser restrito exclusivamente ao período da atividade pedagógica que justifique sua utilização, devendo ser armazenados e mantidos inacessíveis aos alunos até uma nova autorização; o uso dos dispositivos autorizados nos termos do inciso II deste artigo poderá ser utilizado de forma contínua, desde que comprovada a necessidade do referido uso”.

Quem fiscalizará o uso indevido? O professor? O que fazer quando um marmanjo for pego utilizando o celular indevidamente? Um aparelho pequeno, que pode ser escondido em qualquer lugar. Como proceder se a lei não prevê sanção alguma a quem for pego utilizando o celular fora dos horários previstos no artigo 3.º?

Ou seja, se a escola não fornecer dispositivos que permitam o acompanhamento das aulas e a realização das tarefas – e nada me indica que isso ocorrerá, pois, nesses dez anos de docência, essa sempre foi uma promessa não cumprida –, parece-me que o celular será retirado com uma mão e devolvido com a outra, com todo o ônus do controle recaindo nas mãos dos professores, que certamente serão punidos caso algum aluno disser que está sendo prejudicado em sua aprendizagem pela falta do aparelho. A deputada Marina Helou, autora do projeto de lei, que estudou na Escola Waldorf e formou-se na Fundação Getúlio Vargas (FGV), me parece desconhecer completamente a realidade das escolas públicas de São Paulo – e do Brasil –, numa aventura semelhante àquela protagonizada pelos liberais do bolso alheio durante a pandemia.

Sou o primeiro a defender que os celulares sejam retirados das salas de aula – minha preocupação foi manifesta aqui, inclusive –, mas sou prudente o bastante para saber que leis sancionadas às pressas, sem a propedêutica necessária e a estrutura adequada, são mero estetismo e diversão política (e eleitoral), sem preocupação real. Repetindo a epígrafe basilar de Emerson: “uma legislação tola é como uma corda de areia, que se desfaz ao ser torcida”.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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