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Por que a recuperação do agronegócio será lenta no RS

13 de junho de 2024

Perda de solos férteis após enchentes é desafio para setor. Com agravamento da crise climática, restauração ambiental deve entrar no plano, dizem especialistas.

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Visão aérea de plantação destruída
Plantação arrasada pelas cheias no Rio Grande do SulFoto: Amanda Perobelli/REUTERS

Na vizinhança de Sérgio Renato de Freitas, em Santa Maria, Rio Grande do Sul, propriedades rurais inteiras estão arrasadas. As perdas provocadas pelas chuvas extremas do fim de abril vão muito além da atual colheita: grandes extensões de solo fértil foram varridas pela água. No lugar, ficaram pedras e enormes rasgos na terra.

Freitas, produtor de médio porte, perdeu entre 20 mil e 24 mil sacas de soja. Os grãos apodreceram com a umidade e não terão uso. Para reconstruir tudo, ele fará empréstimos no banco e calcula que em cinco anos estará bem novamente.

"A tragédia aqui foi algo que a gente nunca imaginou que pudesse acontecer. Eu tive sorte, não perdi máquinas e não tive muita erosão. Mas se a gente conta como está o entorno, as pessoas nem acreditam", narra Freitas à DW.

Por onde anda desde as inundações, Guilherme Passamani, engenheiro agrônomo da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater), vê desolação. Muitas famílias de pequenos produtores perderam tudo – casa, animais de criação, hortas, cultivos. Em muitos locais, por enquanto, não há esperança de recuperação.

"Muitas famílias não vão ter a capacidade de recomeçar e provavelmente sairão da atividade agropecuária, promovendo um êxodo rural que é imensurável", diz Passamani sobre os prejuízos materiais, sociais e os traumas psicológicos que a tragédia deixou.

As enchentes levaram uma camada muito importante do solo em algumas propriedades, que foi trabalhado por milhares de anos até se tornar arável, diz Passamani. Apesar de uma avaliação mais detalhada ainda estar em andamento, o especialista afirma que, em algumas localidades, plantar e colher será impossível por muitos anos.

Cifras do prejuízo

O primeiro levantamento feito pelo Emater e governo do estado estima que 206.604 propriedades foram impactadas. Isso equivale a quase a metade de todos os imóveis rurais no Rio Grande do Sul – atualmente 536.510 estão registrados no Cadastro Ambiental Rural (CAR).

"Se nós formos trabalhar só a correção de solo, por exemplo, levando em conta esses 270 milhões de hectares impactados, estamos falando tranquilamente de um custo de R$ 16 bilhões. Os números são bem impactantes", estima Ronaldo Santini, secretário estadual de Desenvolvimento Rural, em entrevista à DW.

É como se uma área equivalente a 54 vezes a cidade de Porto Alegre precisasse de algum tipo de intervenção para voltar a ser fértil. Em muitas dessas terras estavam os animais de criação perdidos – foram mais de 14 mil suínos e 2.400 cabeças de gado mortos.

Em Bento Gonçalves, maior polo de processamento de uvas no estado e segundo maior produtor da fruta, a maioria das vinícolas passou praticamente ilesa. O  município tem cerca de 4.600 hectares de cultivo da fruta e a estimativa, por enquanto, é que entre 180 e 200 hectares tenham sido atingidos – menos de 5%.

Nas poucas propriedades afetadas, os estragos foram severos. "Dos quatro distritos, dois foram atingidos. Lá os impactos são tão fortes que os produtores vão precisar de apoio para continuar na propriedade. O que sobrou dos vinhedos vai ser de difícil manejo em virtude dos destroços que estão no entorno", avalia Tompson Didione, da Emater.

O setor sofreu 30% de queda na produção no ano passado. O motivo também está ligado ao clima: o inverno registrou temperaturas mais altas que o normal. Quando o frio tardio chegou, ele travou o crescimento das plantas. E depois foi o excesso de chuva de setembro e novembro de 2023 que atrapalhou.

O que aconteceu com a soja

No estado, a maior perda de produção foi na cultura da soja: 2,71 milhões de toneladas. A estimativa pré-catástrofe era de uma colheita de 22,24 milhões de toneladas, que agora caiu para 19,5 milhões de toneladas.

A safra de 2024 marcaria o retorno da pujança do setor no estado depois de dois anos consecutivos de seca no Sul. Se tudo saísse como o planejado pelos produtores, o aumento na colheita seria de 71,5% em relação ao ano anterior. Mas a chegada do El Niño intenso com a influência das mudanças climáticas, como mostrou uma pesquisa recente, dobrou a chance de um evento climático extremo de chuvas acontecer.

Para Irineu Orth, senador e atual presidente da Aprosoja do Rio Grande do Sul, a próxima safra do grão é uma incógnita.

"Não vai ter condições de recuperar tudo numa safra só. O estado é muito grande, não tem nem fornecedores que vão ter os insumos suficientes para fazer isso. E o maior problema: os agricultores não vão ter dinheiro para bancar isso", diz à DW.

Apesar dos anos em série de perdas por conta de extremos de seca ou de chuva, as mudanças climáticas ainda não entraram na pauta do representante do setor no estado – e no Congresso.

"Tem esse pessoal que fica levantando essas hipóteses, é a atividade deles. Mas eu não acredito nessa questão desse pessoal ambientalista aí, que tem outros objetivos", responde Orth quando questionado sobre os impactos das mudanças climáticas.

Diálogo difícil

Todo este solo fértil varrido apareceu na investigação das causas e extensão da catástrofe feita por Eduardo Vélez, pesquisador que integra a rede Mapbiomas. "A gente tem registros fotográficos, e a própria cor da água mostra que teve uma perda de solos muito grande. Toda essa lama é solo agrícola que foi varrido pelas enxurradas", explica à DW.

O biólogo diz que o impacto do volume extremo de chuva poderia ter sido menos severo se os limites exigidos pelas leis ambientais tivessem sido respeitados. Em algumas bacias hidrográficas, como a do alto Jaqui, sobrou menos de 20% de vegetação nativa. Pelo Código Florestal, incluindo área de preservação permanente e reserva legal, essa taxa teria que ser em torno dos 30%.

"Se a vegetação nativa estivesse em maior quantidade e melhor distribuída, com todas as propriedades respeitando a área mínima de preservação, a enchente teria menos velocidade. Haveria mais tempo para fugir, achar mecanismos de resposta, menor altura da linha d'água e menor quantidade de solo perdido", diz Velez à DW.

A ciência mostra que a vegetação nativa (florestas, campos, brejos e pântanos, entre outros) garante uma boa infiltração da água no solo e, consequentemente, retarda inundações nos rios. Ela também protege o próprio solo, evitando que ele seja arrastado com as águas.

No Rio Grande do Sul, o Pampa tem enfrentado grande pressão. A maior perda tem sido para grandes cultivos de soja nas últimas décadas, aponta o levantamento anual do MapBiomas. Conservado, este bioma ajuda na infiltração de água, na retenção dos sedimentos e impede erosão.

Heinrich Hasenack, doutor em agronegócios e professor no Instituto de Biociências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), pontua que um mosaico de áreas com vegetação nativa, onde a água demora mais pra escoar, com áreas de lavoura, onde ela corre mais rápido, já teria grande efeito.

Homem em meio a plantação destruída, segura plantas estragadas por cheia
Agricultor em plantação de milho destruída. Primeiro levantamento de Emater e governo do RS estima que mais de 200 mil propriedades foram impactadasFoto: Amanda Perobelli/REUTERS

"Se a legislação fosse seguida o mínimo possível, já seria um grande avanço. Para aumentar a resiliência do estado frente às mudanças climáticas, a participação das propriedades rurais é vital, porque só as áreas de conservação, que são pequenas no estado, não são suficientes", afirma Hasenack.

Velez reflete se, neste momento de emergência climática, o que a lei diz hoje é suficiente para enfrentar o desafio. Mas a resistência dos produtores é grande.

"Sempre o tema ambiental é difícil de ser assimilado pelo setor do agronegócio, que tem dificuldade de reconhecer a importância da vegetação nativa. A gente produz os dados, mas o diálogo é difícil", argumenta o biólogo.

O custo de não preservar

Para recompor o setor, o secretário Ronaldo Santini espera que o governo federal mantenha linhas de crédito com juros subsidiados e perdoe dívidas passadas.

"É a terceira vez que o produtor perde tudo e reconstrói tudo. Então, a capacidade de endividamento já está comprometida. Sozinho, eles não vão conseguir", justifica, sem conseguir estimar os prejuízos dos últimos desastres.

Ao mesmo tempo, Santini reconhece que mudanças precisam entrar em definitivo para a agenda. Por muitos anos, diz, os produtores seguiram o conceito de que a ampliação da área plantada é garantia de sustento da família.

"Vamos trabalhar mais com o tema da sustentabilidade. Nós vamos incentivar programas de recuperação e preservação de nascentes, de florestas, de melhor manejo do pasto", comenta.

O reflorestamento teria que entrar neste planejamento desde o início, defende Sérgio Leitão, do Instituto Escolhas. Um estudo recente da entidade apontou que o estado tem 11.600 quilômetros quadrados de áreas de preservação permanente e reserva legal para recuperar.

"Seriam investidos cerca de R$ 20 bilhões neste plano, mas os benefícios são cinco vezes maiores", diz Leitão à DW, mencionando a geração de empregos para produção e plantio de cerca de um bilhão de mudas estimadas e a produção de até nove milhões de toneladas de alimentos em sistemas agroflorestais.

"Recuperar esta vegetação faz parte da recuperação econômica do estado e gera a infraestrutura verde necessária para enfrentar a crise climática que se agrava", conclui Leitão.