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Descaso deixa patrimônio brasileiro à beira da ruína

André Bernardo
15 de setembro de 2024

No mesmo Rio de Janeiro onde ardeu o Museu Nacional, casas que abrigaram Portinari e Carmen Miranda definham. Exemplos de Mário Quintana, em Porto Alegre, e Jorge Amado, em Salvador, mostram que não precisa ser assim.

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Incêndio no Museu Nacional
Há seis anos, fogo destruiu o Museu Nacional, no Rio, um dos mais importantes do paísFoto: picture-alliance/AP Photo/L. Correa

Passava das 21h30 quando o paleontólogo Alexander Kellner desembarcou no Santos Dumont e levou um susto ao dar de cara com o filho mais velho na saída do aeroporto. "Que coincidência!", escancarou um sorriso. "Você por aqui?". "Pai, temos um problema", avisou, com o semblante preocupado. "O que houve? Aconteceu alguma coisa com a sua mãe?", quis saber, temendo o pior. "Não, pai, fogo!", respondeu, apreensivo. "Ai, meu Deus! Meu apartamento pegou fogo? ", entrou em desespero. "Não, pai, o museu!", revelou, sem disfarçar a tristeza.

Na noite daquele domingo, 2 de setembro de 2018, o Museu Nacional foi destruído pelo fogo. Os bombeiros só conseguiram controlar as chamas na madrugada de segunda. "Se pudesse voltar no tempo, sabe o que eu faria de diferente? Nada!", responde Kellner. "É frustrante dizer isso, mas é a verdade. Não havia nada que eu pudesse ter feito naqueles seis meses de gestão que eu não tivesse feito. Não quero me eximir de culpa, mas a administração anterior tinha que ter gritado o que estou gritando agora: 'Sem dinheiro, não há museu!'"

Esqueleto de uma baleia Jubarte no Museu Nacional
Abertura simbólica do Museu Nacional com exposição de esqueleto de uma baleia Jubarte ocorre no final deste anoFoto: Felipe Cohen/Museu Nacional

No início deste mês, o incêndio do Museu Nacional completou seis anos. A previsão mais otimista para sua reabertura parcial, explica Kellner, é 2026. Mas, para isso acontecer, a instituição precisa de R$ 95 milhões. Parte desse dinheiro será usado na recuperação das 50 mil peças resgatadas no meio das cinzas. Algumas delas, como o meteorito Bendegó, que pesa 5,6 toneladas e foi encontrado na Bahia em 1784, estão em bom estado. Outras, como Luzia, o mais antigo fóssil humano da América do Sul, descoberto em Minas Gerais em 1975, nem tanto.

"Quando resgatamos Luzia, caímos no choro", recorda. "Amélia que me desculpe, mas a mulher de verdade é Luzia. Resistiu a 11 mil anos e, depois, a um incêndio de grandes proporções", brinca o cientista, numa alusão ao samba Ai que Saudades da Amélia (1942), de Mário Lago (1911-2002) e Ataulfo Alves (1909-1969).

Para o final deste ano, ele anuncia a abertura simbólica do museu, com a exposição do esqueleto de uma baleia Jubarte de 15,5 metros. Segundo o cronograma do projeto Museu Nacional Vive, a reabertura total está prevista para 2027-2028.

Risco de desabamento

No Rio de Janeiro, dois imóveis gritam por socorro. Não pegaram fogo, mas estão em ruínas. Um deles fica no Centro. É o número 13 da Travessa do Comércio. Lá, morou, em 1925, a atriz e cantora Carmen Miranda (1909-1955). Parte do telhado desabou na madrugada de 15 de julho. O outro imóvel fica na Zona Sul. O casarão na Rua Cosme Velho, 343, apresenta sinais de abandono. O endereço, citado no poema Estive na Casa de Candinho (1962), de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), foi a residência do pintor Cândido Portinari (1903-1962) entre 1943 e 1950. Ali, ele produziu, entre outras 1,6 mil obras, a série Retirantes (1944) e o painel Tiradentes (1948).

O curioso é que os dois imóveis, tanto o de Carmen quanto o de Portinari, são tombados pelo patrimônio histórico. "Os imóveis de propriedade privada, que são preservados ou tombados, devem ser mantidos em bom estado de conservação por seus proprietários", explica a arquiteta e urbanista Laura Di Blasi, presidente do Instituto Rio Patrimônio da Humanidade (IRPH). "O município fornece incentivos, porém, não cabe ao poder público, nem é permitido, investir dinheiro em propriedade privada." O que o município pode fazer, prossegue, é fiscalizar, notificar e multar, entre outras providências, sempre que constatar irregularidades.

Placa do Cais do Valongo
Prefeitura do Rio instalou 278 placas azuis em endereços históricos, incluindo o Cais do Valongo, onde ocorria o desembarque de africanos escravizadosFoto: Oscar Liberal

A prefeitura do Rio instalou 278 placas azuis em endereços históricos, entre bares, teatros, praças e prédios. Só na Nascimento e Silva, em Ipanema, há duas: uma no número 107 e outra no 378. No primeiro endereço, morou Tom Jobim (1927-1994), entre 1953 e 1962, e, no segundo, Renato Russo (1960-1996), entre 1990 e 1996.

"Tombar não é a única e nem sempre a melhor opção. A solução pode ser dar um novo significado ao imóvel. Um bom exemplo é o Edifício A Noite, na Praça Mauá. O imóvel, que antes abrigou a Rádio Nacional, dará lugar a um condomínio de luxo. Ganha um novo uso ao mesmo tempo que preserva a memória e a cultura locais", afirma Di Blasi.

Luta inglória

Filho único do pintor Portinari, o matemático João Cândido Portinari conta que o casarão onde morou seu pai foi comprado por um empresário em 2002 e doado ao Projeto Portinari para que fosse restaurado e transformado em centro de arte, educação, cultura e ciência. Há pelo menos uma década ele tenta realizar esse projeto, mas não consegue por falta de apoio, tanto do poder público quanto da iniciativa privada. O maior obstáculo, segundo ele, não é o restauro do imóvel ou a implantação do centro, mas, sim, sua manutenção institucional.

Fachada de antiga casa de Portinari
Antiga casa de Portinari é tombada pelo patrimônio histórico, mas sofre com a falta de recursos para sua manutençãoFoto: Renata Bernardo/DW

"Quando perguntaram a meu pai se ele tinha ficado triste por não ter sido eleito senador em 1947, ele respondeu: 'Na vida, cada um de nós tem uma tarefa. A minha é pintar'. Digo o mesmo: A minha missão é o Projeto Portinari. Manter o Projeto Portinari vivo e atuante durante 45 anos tem sido uma luta renhida que não deixa fôlego para outras lutas", afirma João.

Criado em 1979, o Projeto Portinari mantém um acervo de 9 mil cartas e 130 horas de gravação, de personalidades como Manuel Bandeira (1886-1968), Graciliano Ramos (1892-1953) e Cecília Meireles (1901-1964).

"Não é apenas uma casa"

Muito antes de Portinari, o Cosme Velho teve outro morador ilustre: Machado de Assis (1839-1908). Ele morou no número 18 da Rua Cosme Velho, de 1883 até 1908, quando morreu. Lá, escreveu seus últimos romances, como Dom Casmurro (1899), Esaú e Jacó (1904) e Memorial de Aires (1908). Infelizmente, o sobrado onde o 'Bruxo do Cosme Velho' – apelido dado por Drummond – viveu não existe mais: virou um edifício residencial.

Casa de Cultura Mário Quintana
Mário Quintana viveu no antigo Hotel Majestic, em Porto Alegre, hoje Casa de Cultura Mário QuintanaFoto: Júnior Evans

Destino parecido deve ter o número 12 da Rua Oscar Bittencourt, no bairro Menino Deus, em Porto Alegre. A antiga casa do escritor Caio Fernando Abreu (1948-1996) foi demolida em 18 de julho de 2022. O imóvel não era tombado. "Não sei os pormenores da demolição. Em tudo há interesses diversos, verdades múltiplas. Mas compreendo bem a sensação de luto. Em vez de transformado em local de culto e inspiração, seu retiro pessoal abrigará agora, talvez, 12 andares, 50 apartamentos, 130 pessoas entrando e saindo com pressa pela garagem", lamentou Martha Medeiros na crônica Não é Apenas Uma Casa.

Casa do Rio Vermelho, em Salvador
Jorge Amado morou na Casa do Rio Vermelho, em SalvadorFoto: Xico Diniz

"O tombamento não é uma decisão do Iphan, mas uma iniciativa da sociedade", explica o sociólogo Leandro Grass, presidente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). "Até onde se sabe, não houve solicitação de tombamento de nenhum desses imóveis."

Memória revisitada

Atualmente, o Iphan registra 1.265 bens tombados, desde móveis, como quadros, imagens e xilogravuras, até imóveis, como igrejas, teatros e museus. "Há quem diga que o patrimônio é um obstáculo para o desenvolvimento. Não é. Pode gerar receita e atrair turistas", acrescenta Grass.

Mário Quintana
Antigo quarto do poeta Mário Quintana é o mais visitado na Casa de Cultura Mário Quintana Foto: Centro Cultural Mário Quintana

É o que acontece, por exemplo, na Casa de Cultura Mário Quintana (CCMQ), em Porto Alegre, e na Casa do Rio Vermelho, em Salvador. A primeira funciona no antigo Hotel Majestic, na Rua dos Andradas, 736, onde o poeta Mário Quintana (1906-1994) viveu de 1968 a 1980. E a segunda na residência do casal Jorge Amado (1912-2001) e Zélia Gattai (1916-2008), na Rua Alagoinhas, 33, comprada com a venda dos direitos de Gabriela, Cravo e Canela (1958) para o cinema.

Objetos de Jorge Amado expostos na Casa do Rio Vermelho
Casa do Rio Vermelho virou museu em Salvador Foto: Xico Diniz

Na capital gaúcha, o espaço mais visitado é o quarto do poeta, que guarda, entre outros objetos pessoais, óculos, bengala e casaco. Na baiana, um dos itens mais pesquisados é acervo de cartas, que abrange correspondência com Monteiro Lobato (1882-1948), Dorival Caymmi (1914-2008) e Oscar Niemeyer (1907-2012).

"Em 2003, no aniversário de Jorge, Dona Zélia decidiu abrir a porta da casa para receber visitas. Foram distribuídas 600 senhas, que se esgotaram em menos de uma hora. Cerca de duas mil pessoas fizeram fila para visitar o local", relata a publicitária Maria João Amado, neta do casal. "Neste dia, ela decidiu que a única destinação possível para a Casa do Rio Vermelho seria transformá-la em um memorial dedicado à vida e obra de Jorge Amado."