Como vermelho escarlate descoberto por indígenas foi parar nas pinturas dos grandes mestres
- Author, Devon Van Houten Maldonado
- Role, BBC Culture
Embora escarlate seja a cor do pecado no Velho Testamento, a antiga aristocracia era ávida pelo vermelho, símbolo de status e riqueza.
Eles gastavam quantias fabulosas em busca de tons cada vez mais vivos, até que os conquistadores espanhóis liderados por Hernán Cortés descobriram um pigmento vermelho incrivelmente saturado nos mercados de Tenochtitlán (atual Cidade do México), então capital do Império Asteca.
O corante, feito a partir do inseto cochonilha, que também dá nome à tintura, projetou a Espanha em direção ao eventual papel de superpotência econômica e se tornou uma das primeiras exportações do Novo Mundo em um tempo em que a moda do vermelho tomou conta da Europa.
Uma exposição que estava em cartaz no Palácio de Belas Artes, na Cidade do México, mostrou a influência do pigmento na história da arte - do Renascimento ao Modernismo.
Como tudo começou
Na Europa medieval e clássica, artesãos e comerciantes da época corriam atrás de cores intensas duradouras e - em troca - riqueza, em meio a tecidos desbotados e sem vida.
Os tintureiros guardavam a sete chaves o segredo para tingir lã, seda e algodão - o que parecia um truque mágico de alquimia.
Eles usavam raízes e resinas para criar tons de amarelo, verde e azul razoáveis. O caramujo da espécie Murex, por exemplo, deu origem à tintura púrpura do tecido dos trajes imperiais, que valia mais do que seu peso em ouro. Mas o vermelho realmente vivo ainda era um desafio.
Durante muitos anos, o tom de vermelho mais comum na Europa vinha do Império Otomano. O chamado "vermelho-turco" era extraído da raiz de uma planta da família das rubiáceas.
Os tintureiros europeus tentaram desesperadamente reproduzir os resultados do Oriente, mas foram apenas parcialmente bem-sucedidos. O processo otomano demorava meses e envolvia uma mistura fétida de esterco de vaca, azeite de oliva rançoso e sangue de boi, conforme a escritora e historiadora americana Amy Butler Greenfield descreve no livro A Perfect Red ("Um Vermelho Perfeito", em tradução literak).
Eles também recorreram ao pau-brasil, à goma-laca (resina de inseto) e aos liquens (organismos formados por uma simbiose entre algas e fungos), mas os resultados costumavam decepcionar. Geralmente chegava-se a vermelhos amarronzados ou alaranjados que desbotavam rapidamente.
Para a realeza e a aristocracia da época, o St John's Blood e o Vermelho Armênio (que remontam ao século 8 a.C., de acordo com Butler Greenfield) eram os vermelhos mais vivos e saturados disponíveis na Europa até o século 16.
Mas, como eram feitos a partir de diferentes parasitas presentes na raiz da Porphyrophora, sua produção era árdua e a disponibilidade, escassa. Mesmo a preços mais altos.
Enquanto isso, os povos mesoamericanos do sul do México usavam o inseto cochonilha como fonte de corante desde 2000 a.C., muito antes da chegada dos espanhóis, segundo conta a especialista têxtil Quetzalina Sanchez.
A cochonilha - da espécie Dactylopius coccus - é um inseto parasita que vive principalmente em cactos nativos do México. O vermelho profundo, conhecido como carmim, vem do ácido que produz para afastar predadores.
Indígenas de Puebla, Tlaxcala e Oaxaca desenvolveram sistemas para reprodução e manejo da cochonilha em busca de características ideais. O pigmento era usado para criar pinturas em códices (manuscritos gravados em diversos materiais) e murais, para tingir tecidos e penas, e até mesmo como remédio.
Cochonilha no Novo Mundo
Quando os espanhóis chegaram à Cidade do México, sede do Império Asteca, a cor vermelha estava por toda parte. Vilarejos remotos pagavam dívidas ao império convertidas em quilos de cochonilha e rolos de tecido vermelho sangue.
"Escarlate é a cor do sangue, e o extrato da cochonilha dava origem a ela (...). A cor sempre teve um significado, às vezes, mágico, outras vezes religioso", afirmou Sanchez à BBC.
Cortés identificou de imediato as riquezas do México, relatadas em diversas cartas ao rei Carlos 5.
"Vou falar sobre algumas coisas que eu vi, que apesar de mal descritas, eu sei que causarão tanto espanto que será difícil de acreditar, porque mesmo nós, que estamos vendo aqui com nossos próprios olhos, não conseguimos crer na sua existência", escreveu.
Os primeiros relatos indicam que Cortés não se encantou de cara pela cochonilha - ele estava mais preocupado em saquear ouro e prata.
Ao contar sobre o mercado de Tenochtitlán, que era "duas vezes maior que o de Salamanca", ele escreveu:
"Eles também vendem novelos de diferentes tipos de algodão, tecidos de todas as cores, de modo que se parece bastante com os mercados de seda de Granada, embora seja maior; há ainda tantas cores diferentes para pintura quanto podem ser encontradas na Espanha, e de excelentes tons. "
Enquanto isso, na Espanha, o rei era pressionado a fazer face às despesas e manter o território dominado em relativa paz.
Embora não tenha se convencido à princípio da promessa de América, ele ficou fascinado pelos contos exóticos e enxergou na cochonilha uma oportunidade de engordar os cofres da coroa.
Em 1523, quando o pigmento chegou à Espanha, o rei escreveu para Cortés sobre a ideia de exportar o corante para a Europa, segundo relatou Butler.
"Por meio de leis absurdas e decretos (os espanhóis) monopolizaram o comércio da cochonilha ", diz Sanchez.
"Eles obrigavam os índios a produzir o máximo possível. "
Os indígenas mesoamericanos que se especializaram na produção do pigmento e não foram mortos por doenças ou abatidos durante o processo de colonização receberam como pagamento centavos de dólar - enquanto os espanhóis "tinham lucros enormes como intermediários".
Vermelho na arte
De acordo com Butler, a tintura proveniente da cochonilha era dez vezes mais potente que o St John's Blood e produzia 30 vezes mais corante por onça (28,35 gramas) que o Vermelho Armênio.
Sendo assim, quando os tintureiros europeus começaram a experimentar o pigmento, ficaram maravilhados com seu potencial. Era o vermelho mais vivo e concentrado que já tinham visto.
Em meados do século 16, a cochonilha já estava sendo usada em toda a Europa. E, na década de 1570, tornou-se um dos negócios mais rentáveis do continente - a comercialização passou de "50 mil libras (cerca de 23 toneladas), em 1557, para mais de 150 mil libras (aproximadamente 67 toneladas), em 1574", escreveu Butler.
Na exposição mexicana, a introdução da cochonilha na paleta dos artistas europeus é ilustrada em pinturas barrocas do início do século 17, depois que o pigmento já era uma indústria em expansão em toda a Europa e no mundo.
Obras de pintores barrocos como Cristóbal de Villalpando e Luis Juárez, pai de José Juárez, que trabalharam a vida toda no México (Nova Espanha), estão expostas ao lado de pinturas do espanhol Sebastián López de Arteaga e Peter Paul Rubens.
O quadro A Incredulidade de São Tomé, de López de Arteaga, parece tímido em comparação à versão do pintor italiano Caravaggio, na qual a expressão de consternação e espanto de São Tomé fica evidente nas rugas de sua testa franzida. Mas a bata vermelha usada por Cristo na obra de López de Arteaga, denotando sua santidade, praticamente salta da tela.
Ambos os artistas fizeram uso da cochonilha, que ajudou a estabelecer o contraste dramático característico do estilo barroco no mundo da arte.
A poucos metros, um retrato de Isabella Brandt (1610), de Rubens, mostra a versatilidade da tinta feita à base de cochonilha. A parede atrás da modelo é pintada com um vermelho profundo e brilhante, do qual ela surge em uma delicada aura de luz.
A Bíblia na mão de Isabella também foi representada com detalhes em vermelho escarlate, mostrando o claro domínio de Rubens sobre os pincéis, o que faz com que suas obras pareçam vivas.
Durante o Modernismo, os pintores impressionistas continuaram a usar os tons vermelhos importados do México - só em meados do século 19 que a cochonilha foi substituída por alternativas sintéticas.
No Palácio de Belas Artes, obras de Paul Gauguin, Auguste Renoir e Vincent van Gogh foram analisadas - e o resultado deu positivo para cochonilha.
Assim como Rubens, Renoir retrata temas que parecem estar vivos na tela. Mas, como impressionista, suas pinturas se dissolvem em intensas abstrações.
Gauguin também usou as cores, especialmente o vermelho, para criar uma tonalidade vibrante, mas não se compara à saturação alcançada por Van Gogh.
O quadro O quarto em Arles (1888), cedido pelo Instituto de Arte de Chicago, encerra a exposição, com um único e intenso ponto quente vermelho na cama.
Depois que os pigmentos sintéticos se popularizaram, a tintura vermelha passou a ser produzida em massa como corante alimentar industrial - seu principal uso atualmente.
Ao conquistar a independência, o México podia não controlar o valioso monopólio da cochonilha, mas recuperou algo de volta - o vermelho sagrado que havia sido saqueado e propagado pelos espanhóis mundo afora.
"Na Europa, como acontece em muitos casos, a história do povo nativo do México importa muito pouco", disse Sanchez à BBC.
Mas, segundo ela, no México "a cor continua a ser associada à magia ancestral (e) protege aqueles que usam roupas tingidas com cochonilha. "
- Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Culture.