'Voos da morte' na Argentina: como Justiça tenta fechar ferida aberta há 45 anos
- Author, Analía Llorente
- Role, Da BBC News Mundo
Os militares os chamavam de "transferências", mas na realidade eram "voos da morte".
Os aviões das Forças Armadas argentinas jogavam pessoas, a maioria delas vivas, ao Rio da Prata ou ao mar, depois de dopá-las.
Foi um plano sistemático de extermínio realizado durante o último regime militar argentino, entre 1976 e 1983.
"Os voos da morte foram a parte final de um ciclo repressivo que teve como característica o desaparecimento de pessoas. É a última faceta do processo de desaparecimento", sintetiza Valentina Salvi, socióloga e pesquisadora da história recente da Argentina no Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas (Conicet).
Demorou mais de quatro décadas para que a Justiça pudesse reconstituir como ocorreram aqueles voos e finalmente condenar essa prática.
E o trabalho ainda não acabou.
Em 2017, a Justiça condenou 29 ex-militares a prisão perpétua. Também houve outras 19 sentenças entre 8 e 25 anos pelos crimes de sequestro, tortura e desaparecimento de pessoas durante o último período militar. Essa decisão histórica ficou conhecida como "Megacaso da ESMA" — sigla de Escola Superior de Mecânica da Marinha.
Mas, no ano passado, um novo julgamento começou.
Agora, o Ministério Público busca comprovar a existência dos "voos da morte" operados a partir do Campo de Mayo, base militar no nordeste da província de Buenos Aires onde funcionava outro centro de detenção clandestino, para que aqueles que comandavam essa operação possam ser julgados e condenados.
"Vamos reparar, mesmo que seja o mínimo, todos os danos que foram causados às famílias das vítimas", diz à BBC News Mundo (serviço de notícias em espanhol da BBC) Mercedes Soiza Reilly, integrante da equipe do procurador-geral Marcelo García Berro.
Como funcionavam os "voos da morte"?
De 1976 a 1983, um dos maiores centros clandestinos de detenção do regime militar que governou a Argentina nesse mesmo período funcionou no prédio da ESMA, na zona norte da Cidade de Buenos Aires.
Embora o número exato de pessoas que foram alojadas ali contra sua vontade não seja conhecido, as organizações de direitos humanos afirmam que houve até 5 mil detentos.
No Megacaso da ESMA, para além dos abusos, torturas, furtos de bebês e homicídios, foi também possível comprovar a existência da organização dos "voos da morte".
Eles aconteciam de uma a duas vezes por semana, principalmente entre 1976 e 1977. Um grupo de reféns de 25 a 30 pessoas, cada uma delas meticulosamente selecionada, era conduzido para uma sala isolada da ESMA.
Lá, as pessoas recebiam injeções com uma substância — geralmente pentotal ou Ketalar — que as deixava sonolentas. Posteriormente, elas eram despidas.
E então eram transferidas por caminhão para o Aeroporto Metropolitano Jorge Newbery, da Cidade de Buenos Aires, embarcadas em um avião do Exército e depois, em pleno voo, atiradas no Rio da Prata ou no mar.
De todos os voos da ESMA — e acredita-se que também de outros centros de detenção clandestinos — não há sobreviventes.
"Tivemos uma ideia disso porque um colega foi levado por engano e depois voltou. E ele contou isso", disse em 2001 Miriam Lewin, jornalista e sobrevivente da ESMA, em depoimento do Arquivo Oral da Memória Aberta, parte de uma aliança de organizações de direitos humanos na Argentina.
Lewin se refere aos depoimentos de Emilio Assales Bonazzola, vulgo "Tincho", que tinha 34 anos e fora sequestrado em janeiro de 1977. Em seguida, também veio o depoimento de Lidia Batista, que tinha 36 anos, sequestrada em dezembro de 1978.
Ambos foram detidos na ESMA e retirados dos voos. Quando foram devolvidos ao centro clandestino, contaram a seus colegas o que havia acontecido com eles. É provável que mais tarde tenham sido "transferidos" novamente. Os dois estão desaparecidos até hoje.
"Em geral, não queríamos ouvir muito sobre isso, (...) pensamos que talvez tivesse acontecido apenas daquela vez, que não era a forma geral de eliminação", lembrou Lewin.
Mais detalhes arrepiantes
Alguns corpos destruídos de pessoas lançadas em "voos da morte" começaram a aparecer nas costas da Argentina e do Uruguai entre 1976 e 1977.
Em Buenos Aires, os cadáveres foram enterrados como NN, ou seja, sem nome, embora autópsias tenham revelado que a causa da morte era de colisão com objetos duros a partir de uma grande altura.
Roberto León Dios, um dos forenses que realizou várias autópsias, morreu misteriosamente alguns meses depois.
Outras pessoas começaram a falar do surgimento dos corpos, como o jornalista e autor Rodolfo Walsh, que em 24 de março de 1977, no aniversário do primeiro ano do governo militar, escreveu uma "Carta aberta de um escritor à Junta Militar" no qual denunciou esses fatos.
No dia seguinte, Walsh foi atingido por diversas balas em pleno centro de Buenos Aires. Seu corpo desapareceu.
O primeiro depoimento dos militares indicando que existiam "voos da morte" foi oferecido pelo ex-tenente-comandante Adolfo Scilingo em uma declaração ao jornalista Horacio Verbitsky publicada no livro O Voo em 1995.
"Foi uma Força Armada que se organizou para levar a cabo a última parte de um plano sistemático, que é o homicídio", detalha Soiza Reilly, da força-tarefa do Megacaso da ESMA. "Os voos da morte não foram a única forma que os militares usaram na Argentina para assassinar, mas foram amplamente utilizados na maioria dos centros de extermínio."
'Comida de peixes'
A Justiça argentina levou décadas para coletar os dados que se repetiam em relatos de sobreviventes, ex-militares e testemunhas.
Esses depoimentos falavam de seringas, frascos de remédios, vômitos, marcas no chão de corpos arrastados e dos eufemismos usados pelos captores para se referir aos "voos da morte": "transferências", "vão ser comida de peixe", "eles subiram" ou "as freiras voadoras" (em referência a duas freiras francesas, Alice Domond e Leonie Duquet, que foram sequestradas, torturadas e jogadas vivas no Rio da Prata em um desses voos, em 1977).
"Esses eufemismos significavam que algo estava acontecendo com as pessoas no ar", reflete o promotor.
'Os aviões da morte'
Ainda há muitas perguntas sem resposta.
Não se sabe quantos voos ocorreram, se se estenderam para além de 1977 e quantas pessoas foram jogadas dos aviões no rio e no mar.
"Nos tribunais só se comprovaram os casos em que os corpos foram encontrados. E este fato não é tão real. No centro clandestino de Campo de Mayo, passaram entre 3 mil e 4 mil vítimas, dizem, e há pouquíssimos sobreviventes. A maioria está desaparecida e há poucas descobertas de corpos", explica Soiza Reilly.
No novo julgamento em um tribunal de San Martín, iniciado em outubro de 2020, os réus são Santiago Omar Riveros, ex-chefe dos Institutos Militares do Campo de Mayo, e quatro de seus subordinados: Luis del Valle Arce, ex-comandante do Batalhão de Aviação 601; seu segundo oficial, Delsis Ángel Malacalza; o ex-oficial de operações Eduardo María Lance; e o então oficial de pessoal Horacio Alberto Conditi.
Eles são acusados de sequestro e tortura de quatro pessoas na base militar de Campo de Mayo, que posteriormente desapareceram em "voos mortais".
As vítimas são Rosa Eugenia Novillo Corvalán, sequestrada entre outubro e novembro de 1976 e cujo corpo foi encontrado no litoral da província de Buenos Aires em dezembro daquele ano; e Roberto Ramón Arancibia, sequestrado em maio de 1977, com seu corpo recuperado em fevereiro de 1978, também na costa de Buenos Aires.
Adrián Enrique Accrescimbeni e Juan Carlos Rosace foram privados de liberdade em novembro de 1976 e seus corpos foram encontrados às margens do Rio da Prata em dezembro daquele ano.
"Neste caso vamos provar a existência dos voos (de morte) no Campo de Mayo, a sua mecânica e as suas operações, e como este batalhão de operações forneceu aviões à força-tarefa que ali trabalhava para fazer a prática mortal", diz o promotor.
Ao contrário dos voos militares que partiam no final da década de 1970 do Aeroparque Jorge Newbery ou do aeroporto internacional de Ezeiza, o 601º Batalhão de Aviação de Campo de Mayo possuía pista de pouso própria, o que facilitava viagens a qualquer hora sem chamar atenção.
Promotores e integrantes da investigação sabiam que no Campo de Mayo havia aviões em desuso e que alguns poderiam ter protagonizado "os voos da morte". Mas quando eles fizeram uma inspeção em dezembro passado, eles ainda assim ficaram surpresos.
Dois dos aviões que foram usados para despejar pessoas no rio e no mar há mais de 40 anos ainda estavam lá, abandonados, mas impregnados de história.
São o Twin Otter com registro AE-106 e Fiat G-222 com registro AE-260, AE261 e AE-262.
"Em 1977, o exército trouxe aviões Fiat G222 da Itália e hoje eles estão abandonados no Campo de Mayo. São os aviões da morte. Fizemos uma inspeção e subimos nos aviões da morte", detalha Soiza Reilly.
Este modelo de aeronave tem a particularidade de possuir portas de correr em ambos os lados da fuselagem, que podem ser utilizadas para o lançamento de pára-quedistas.
Mas nos "voos da morte" eles as usavam para jogar pessoas.
Haverá justiça?
"Acho que sim", diz Soiza Reilly, que acredita que a sentença será conhecida no final de 2021.
"A Argentina é muito pró-ativa em matéria de direitos humanos e nunca ficou de braços cruzados. Do Ministério Público temos provas suficientes para que os responsáveis recebam a pena pelo que fizeram", afirma.
O procurador afirma que todas essas estruturas militares funcionavam como parte uma grande engrenagem, onde cada um cumpria a sua função. A Aeronáutica cumpriu seu papel de colaborar com a eliminação final das vítimas por meio do uso de aviões.
"Se entendemos essa sequência, esse é o plano sistemático de repressão", diz.
A pesquisadora do Conicet, Valentina Salvi, concorda que o caminho dos tribunais é o mais claro e contundente em termos de reparação às vítimas e de construção de uma verdade no país.
"Os voos da morte foram os mais secretos (do regime militar)", afirma.
"Na Argentina foram anos de impunidade. Existe uma grande dívida política e ética", conclui Salvi.
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