Quem é a vice de Milei, que defende revisar indenizações da ditadura na Argentina

Victoria Villaruel e Javier Milei durante a campanha

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, Victoria Villaruel e Javier Milei durante a campanha
  • Author, Marcia Carmo
  • Role, De Buenos Aires para a BBC News Brasil

A vice-presidente de Javier Milei, Victoria Villarruel, prometeu revisar a atual política de memória e direitos humanos do país, que indenizou milhares de vítimas da repressão provocada pelo Estado durante a última ditadura militar (1976-1983).

A proposta ainda não foi detalhada, mas a insistência da advogada de 48 anos nesta pauta representa uma guinada na política da Argentina, onde até então, de acordo com analistas, havia um relativo consenso na elite política sobre como tratar o regime comandado por militares.

O país costuma ser elogiado por especialistas internacionais em direitos humanos e historiadores por ter levado os ditadores militares ao banco dos réus, além de ter julgado e punido torturadores.

Perto do segundo turno das eleições, Villarruel ainda disse que a Argentina é um país "devastado" e apontou: "Como você acha que poderá resolver isso [a situação do país] se não for com uma tirania?"

Em setembro, um dos maiores centros militares de tortura daquele período, a Esma — já transformado no Espaço Memória e Direitos Humanos na década passada —, foi declarado Patrimônio Mundial da Unesco.

No entanto, para a vice de Milei, essa política implementada não é correta. Villaruel tem dito que defende “a memória completa”, que, segundo ela, deve considerar que havia "uma guerra" que colocava militares e forças de segurança de um lado e, do outro, guerrilheiros de esquerda a quem chama de "terroristas".

Em 2006, ela criou o Centro de Estudos Legais sobre o Terrorismo e suas Vítimas (Celtyv) para buscar reparação para as vítimas dos grupos Montoneros e Exército Revolucionário do Povo (ERP) — organizações guerrilheiras argentinas que agiram a partir do início dos anos setenta, antes do golpe militar de 1976. Os Montoneros eram de raiz peronista, ligada ao movimento criado pelo ex-presidente argentino Juan Domingo Perón; já o ERP era uma organização de orientação trotskista.

Filha, sobrinha e neta de militares, Vicky, como a chamam seus apoiadores, tem dito que a Argentina “escondeu” sua história.

“Nós estamos conseguindo abordar um montão de ideias que eram impensáveis, que eram intocáveis, que não podiam ser questionadas”, disse Villarruel, já na reta final da campanha do primeiro turno, em entrevista à rádio Cadena 3, da província de Córdoba.

O discurso de Villarruel é rechaçado por defensores de direitos humanos e ativistas que veem nele negacionismo histórico e falsa simetria ao comparar o uso do Estado para reprimir e matar inimigos políticos durante a ditadura e atividades guerrilheiras no período.

Analistas ouvidos pela BBC News Brasil afirmam que a proposta de reparação para vítimas de atos guerrilheiros é legítima, mas também dizem ver no discurso uma “defesa implícita” da ditadura e “um risco de retrocesso” na política de direitos humanos.

Javier Milei e Victoria Villarruel levantam bandeira da Argentina

Crédito, Reuters

Legenda da foto, Javier Milei e Victoria Villarruel, do partido La Libertad Avanza, em evento de encerramento da campanha antes das eleições presidenciais

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Villarruel decidiu criar em 2006 sua ONG para atender vítimas de atos dos grupos armados de esquerda nos anos 70. Na época, o governo de Néstor Kirchner tinha como bandeira a defesa da reabertura das investigações sobre os crimes cometidos durante a ditadura militar.

Para isso, Kirchner, que consolidava ali um braço próprio do peronismo, contou com o respaldo das entidades de direitos humanos Mães e Avós da Praça de Maio — reconhecidas internacionalmente pela busca de seus filhos e netos, sequestrados na ditadura.

A vice de Milei seguiu sem participação direta na política partidária até se juntar a seu companheiro de chapa. Victoria Villarruel só começou a ficar conhecida nacionalmente ao ser empossada como deputada federal em dezembro de 2021.

“Pelas vítimas do terrorismo”, disse ela, ao microfone, na cerimônia de posse no Congresso Nacional.

A declaração gerou críticas abertas do atual governo do presidente Alberto Fernández e de sua vice-presidente, a ex-mandatária Cristina Kirchner.

“Ela [Victoria Villarruel] reinvindica o terrorismo de Estado e nega a ditadura militar. E, nós, argentinos, temos um pacto forte contra a ditadura”, disse, na ocasião, o ministro da Defesa, Jorge Taiana.

Naquele dezembro de 2021, Victoria Villarruel e Javier Milei inauguravam a pequena bancada da A Liberdade Avança (LLA), movimento pelo qual agora venceram as eleições presidenciais após um crescimento meteórico.

Para a analista de opinião pública da consultoria Tres Punto Zero e professora da Universidade de Buenos Aires Shila Vilker, Villarruel e Milei conseguiram colocar como tema na campanha presidencial a memória da ditadura e a violência política da década de 1970.

“Foi um assunto que apareceu de forma inesperada na campanha", afirma ela. "Fico com a impressão que, por trás da demanda legítima por parte das vítimas das organizações armadas, isso signifique uma defesa implícita da ditadura”, diz Vilker.

Esta defesa, afirma a analista, não poderia ser feita “de forma explícita” porque na Argentina existe um “consenso social, acadêmico e judicial em relação ao que foi o terrorismo de Estado, dos crimes contra a humanidade, da história argentina”.

Para ela, o desinteresse pela democracia entre parte dos mais jovens, a crise econômica e os discursos da A Liberdade Avança podem ser “um risco de retrocesso” para a política de direitos humanos e para a condenação da ditadura.

“Entre os que têm 16 e 21 anos, seis de cada dez valorizam a democracia. Uma maioria, sem dúvida. Mas existem quatro de cada dez que não têm opinião formada, ou não estão interessados ou dizem ter questões mais urgentes, como a economia”, disse ela.

Autor de uma série de livros sobre os anos 1970 na Argentina, o jornalista Ceferino Reato descreve Villarruel como uma advogada “muito conservadora, católica, com moral de ultradireita". Ele diz que ela sempre trabalhou em nome das vítimas dos grupos armados de esquerda e que só passou a ganhar espaço nos meios de comunicação a partir do seu vínculo com Milei.

“Acho que ela se espelha nas próprias organizações de direitos humanos que defendem as vítimas dos militares e da repressão, da ditadura", afirma Reato, cujo livro mais recente se chama Masacre en el Comedor ("Massacre no Refeitório", em tradução livre), que relata um atentado a bomba do grupo do guerrilheiro Montonero, cem dias após o inicio da ditadura.

"Ela já disse, por exemplo, que quer implementar leis para indenizar as vítimas da guerrilha e para criar um monumento que as recorde. Se vai conseguir ou não, não sabemos”, seguiu.

Villarruel afirma que "existem 1.094 vítimas do terrorismo dos anos 1970" que "jamais foram reconhecidas pelo Estado”. De acordo com Reato, que conhece o tema por causa das pesquisas e entrevistas que realizou para seus livros, os familiares destes mortos “nunca receberam nenhuma indenização”.

No portal oficial Registro Unificado de Vítimas do Terrorismo de Estado (Ruvte) informa-se, por sua vez, que o programa reúne e atualiza dados sobre “as vítimas da repressão ilegal do Estado argentino”, sem referência às vítimas da guerrilha.

Procurada pela BBC News Brasil, Villarruel não atendeu aos pedidos de entrevista. A reportagem também buscou sem sucesso a legisladora Lucía Elena Montenegro, que é aliada de Villarruel na Legislatura de Buenos Aires.

Número de vítimas da ditadura

Villarruel tem sido questionada por ter ido visitar o ex-ditador Jorge Videla na cadeia, antes de sua morte em 2013. Em resposta, ela diz que foi entrevistá-lo para seus livros históricos sobre os anos 1970.

A vice de Milei não nega que foram cometidos crimes durante a ditadura. Quando perguntada em uma entrevista ao canal La Nación+ se negava o que aconteceu durante a ditadura militar, a vice de Milei respondeu: “Não”. E quando questionada se houve crimes contra os direitos humanos na ditadura, respondeu: “Sim”.

Mas ela tem repetido que, como vice-presidente, impulsionará uma revisão nas indenizações concedidas pelo Estado às vítimas que foram alvo da repressão do Estado.

A advogada não fala em números, mas em seus discursos cita que guerrilheiros mortos "em combate" ou militantes que ela disse que se mataram na cadeia em lealdade a seus movimentos não deveriam receber dinheiro do Estado.

As ideias de Villarruel também ecoam nas falas do líder da chapa. Em um dos debates presidenciais, há três semanas, Javier Milei questionou a quantidade de vítimas sequestradas ("desaparecidos") pela repressão organizada pela ditadura.

“Estamos absolutamente contra uma visão torta da história. Na nossa opinião, houve uma guerra nos anos 1970 e, naquela guerra, as forças do Estado cometeram excessos, mas também os terroristas dos Montoneros e do ERP mataram gente, colocaram bombas e cometeram crimes contra a humanidade”, disse o candidato libertário.

“Não foram 30 mil desaparecidos. Foram 8.753”, disse em outro momento.

"São 30 mil. Nunca mais. Nunca mais", rebateu, depois, o ativista de direitos humanos Adolfo Pérez Esquivel, usando a frase que simboliza o repúdio à ditadura. Esquivel ganhou o Prêmio Nobel da Paz em 1980 por denunciar as violações de direitos humanos cometidas por regimes militares no continente.

O questionamento da magnitude da repressão e do número de 30 mil vítimas, usado oficialmente pelo kirchnerismo e pelas organizações de direitos humanos como as Mães e Avós da Praça de Maio, não é um debate inédito na Argentina.

Em setembro de 1984, menos de um ano após o retorno da democracia, o então presidente Raúl Alfonsín recebeu do escritor Ernesto Sabato o relatório da Comissão Nacional do Desaparecimento de Pessoas (Conadep), que documentou 8.961 pessoas desaparecidas durante o regime militar, de acordo com informações disponíveis da época.

A lista nunca foi considerada final, de acordo com historiadores e ativistas, que afirmam que há outros documentos e testemunhos que falam de um número maior de vítimas.

Um desses documentos é um relatório militar argentino enviado aos aliados da ditadura de Augusto Pinochet em 1978, que fala em ao menos 22 mil vítimas. O documento foi obtido pelo jornalista John Dinges e aparece em seu livro Os anos do Condor (Companhia das Letras), que relata a aliança das ditaduras do Cone Sul para a repressão.

No mesmo ano, documento da embaixada dos Estados Unidos na Argentina, agora desclassificado, também fala em ao menos 15 mil vítimas citadas pelos militares argentinos nas conversas com Washington.

O jornalista e escritor Ceferino Reato diz que o número de 30 mil é "uma bandeira, um número simbólico, um mito".

"O massacre foi de tal magnitude que fica completamente refletido com o número de 7.300 vítimas", diz Reato que, em seus trabalhos, utiliza o número oficial do Registro Único de Vítimas do Terrorismo de Estado (Ruvte), criado com um ampla equipe na época do governo da ex-presidente Cristina Kirchner.

Em sua contabilidade feita a partir do Ruvte, o escritor cita um total de 7.300 vítimas. “O registro é atualizado permanentemente. São dados oficiais. Os últimos são de 2015. É impensável falar em 22 mil ou 23 mil pessoas desaparecidas sem que seus familiares os esteja buscando”, afirma Reato.

Entre estas vítimas, segundo entidades de direitos humanos e documentos oficiais, estão estudantes, professores, trabalhadores, jovens grávidas, bebês que nasceram no cativeiro e foram entregues a famílias de militares e pessoas confundidas com supostos guerrilheiros. O músico brasileiro da banda de Toquinho e Vinicius, Francisco Tenório Júnior, o Tenorinho, foi uma das vítimas nos anos 1970 na Argentina. Ele foi sequestrado, numa esquina movimentada de Buenos Aires, seis dias antes do golpe.

“Seja 30 mil ou 8 mil...O que houve foi uma barbárie”, disse a ex-senadora Graciela Fernández Meijide, que integrou a Conadep e é mãe de Pablo, jovem que integra a lista de desaparecidos.

A presidente da entidade Avós da Praça de Maio, Estela de Carlotto, repudiou as declarações de Milei e defendeu o total de 30 mil desaparecidos.

“Ele deu um número com tanta certeza [no debate] que parecia até que sabia o nome de cada um dos desparecidos”, disse Carlotto.

Adelina Lara Molina, integrante das Mães da Plaza de Mayo, ao lado de uma grande faixa com retratos de pessoas desaparecidas durante a ditadura militar argentina (1976-1983)

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, Adelina Lara Molina, integrante das Mães da Praça de Maio, ao lado de uma grande faixa com retratos de pessoas desaparecidas durante a ditadura militar argentina (1976-1983)

Apoio de Bulrrich

Villaruel provavelmente não ficará circunscrita à reivindicação das vítimas de grupos armados de esquerda. O presidente eleito já disse que pretende colocar sob responsabilidade de sua vice as áreas de Defesa, Segurança e Inteligência. Ou seja, no futuro governo Milei, a parlamentar deve responder pelas áreas das Forças Armadas e de segurança pública, algo que seria novidade no país, segundo especialistas.

Quando perguntado, sobre a possibilidade da liberação do uso de armas de fogo, Milei responde que esta será uma responsabilidade direta de Villaruel. A vice, por sua vez, diz que a legislação deve ser respeitada e rebate a acusação dos adversários de que facilitará a chegada de armas às escolas.

“A gestão de segurança dos últimos vinte anos fez um esforço enorme para demonizar os que usam uniforme e têm a função, por parte do Estado, de proteger os cidadãos, seus bens e sua liberdade”, disse Villarruel, em uma entrevista ao jornal El Tribuno, da província de Salta, na reta final antes do primeiro turno.

Para a analista Shila Vilker, todo o discurso busca captar o voto da “família militar”.

Neste terreno, a dupla disputava a preferência do grupo com a candidata da direita mais tradicional Patricia Bullrich, que costuma defender e elogiar as forças de segurança pública e ficou em terceiro lugar no primeiro turno, com pouco mais de 23% dos votos.

Nos debates, Milei chamou Bullrich de “montonera assassina”, pelo fato de ela ter sido guerrilheira nos anos 70. Bullrich negou acusação que ele lhe fez de ter colocado bombas "em jardins de infância" e anunciou que entraria na Justiça contra ele.

O candidato também disse, em uma entrevista durante a campanha do primeiro turno, que revisaria a suposta indenização que Bullrich receberia do Estado, referente aos anos 1970, e a chamou de “terrorista”.

Mesmo depois do duro ataque, Milei acenou a Patricia Bullrich logo após o primeiro turno.

Três dias após a derrota, Bullrich declarou apoio ao libertário no segundo turno. “Milei conseguiu capitalizar melhor do que nós o voto, principalmente o dos mais jovens. E nossa proposta é pela mudança, o que ele (Milei) passou a representar. Há 20 anos, o kirchnerismo mergulhou a Argentina na decadência e é por isso que defendemos a mudança”, disse a candidata.