'Nekonomics': o poder dos gatos na economia japonesa

Vários gatinhos em frente a um portal estilo japonês

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, A popularidade dos gatos segue tendência crescente há mais de duas décadas
  • Author, Fátima Kamata
  • Role, De Tóquio (Japão) para a BBC News Brasil

Além de cativar um número recorde de gateiros, os felinos ajudaram a aquecer a economia japonesa na pandemia da covid-19. De acordo com Katsuhiro Miyamoto, professor emérito da Universidade de Kansai, o fenômeno que ele batizou de "nekonomics" (efeitos econômicos dos gatos) movimentou 1,969 trilhão de ienes (cerca de R$ 68 bilhões) só no período de 2021.

Para chegar a esses treze dígitos, a pesquisa levou em conta gastos com alimentação, produtos essenciais e cuidados veterinários, além de empreendimentos gerados pela paixão japonesa por felinos. Mesmo quem não tem animal de estimação em casa costuma frequentar cafeterias temáticas e pontos turísticos, como as ilhas conhecidas pela alta concentração de felinos, só para fotografar e tocar nos bichanos.

No Japão, a onomatopeia para o miado é “nyan nyan nyan”, que se parece com o som de “ni” (dois em japonês). A partir do jogo de palavras e por sugestão da indústria de ração, em 1987 ficou estabelecido que 22 de fevereiro seria o Dia do Gato, criando assim mais um motivo para inflar a 'nekonomics'.

Para muitos japoneses, ignorar o olhar penetrante dos gatos e o seu ronronar é tão difícil quanto resistir aos inúmeros itens dotados de fofura com que a indústria de felinos costuma abastecer as prateleiras nessa época do ano.

Senhor japonês idoso sentado no sofá com um gato malhado amarelo e um gatinho branco e malhado

Crédito, Arquivo Pessoal

Legenda da foto, Yoichiro Matsushita com Kiki e Lara, os atuais membros felinos da família

De acordo com a Associação Japonesa de Produtores de Alimentos para Animais, a popularidade dos gatos segue tendência crescente há mais de duas décadas. A pandemia só fez esse interesse aumentar ainda mais quando as pessoas se viram obrigadas a ficar isoladas em casa.

A população atingiu recorde em 2021, com cerca de 489 mil felinos a mais em comparação ao período anterior, elevando o total para aproximadamente 8,94 milhões de gatos (contra 7,10 milhões de cachorros) no país.

O professor Miyamoto multiplicou esse contingente pela média mensal de 8.460 ienes (R$ 290) estimada como gastos com alimentação e cuidados básicos de um animal, e chegou ao total anual de 911,58 bilhões de ienes (R$ 31,3 bilhões).

A esse valor ele adicionou o efeito cascata de toda a cadeia e o que foi gerado pelo turismo doméstico felino, e o total foi dos 1,969 trilhão de ienes (cerca de R$ 68 bilhões) mencionados no início da reportagem.

A título de comparação, a "'nekonomics" em 2021 é um pouco superior ao que foi gasto para a realização dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos de Tóquio 2020, estimados em 1,69 trilhão de ienes (R$ 58 bilhões).

Família segrura três gatinhos no colo

Crédito, Arquivo Pessoal

Legenda da foto, Conrado Borelli e filhos com os três animais adotados recolhidos das ruas

O professor Miyamoto lembra que esses valores são altos, mas que, para cuidar de um gato pequeno, o custo é relativamente baixo para uma família.

A flexibilização das medidas de combate ao coronavírus e os recentes aumentos de preço de uma série de produtos e da tarifa de energia no país devem impactar na "nekonomics", porém é cedo para afirmar o quanto será menor.

O número de apaixonados por animais de estimação no Japão dificilmente diminuirá.

Cão ou gato, a escolha depende muito do espaço e do tempo disponível para os cuidados.

Casal segura um gatinho no colo

Crédito, Arquivo Pessoal

Legenda da foto, Elen Tanaka e Cássio da Silva cuidam atualmente de 100 gatos em um um apartamento que alugaram para abrigar os animais

Gatos abandonados

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No estudo, Miyamoto lista uma série de fatores para os japoneses preferirem os felinos. Cada vez mais pessoas se mudam para apartamentos urbanos que, além de apertados, geralmente não permitem cães - mas toleram a presença de gatos, que também são mais fáceis de manter e requerem menos atenção, como ter que ser levados para passear.

Porém, nem todo felino é bem-vindo ou bem acolhido. De acordo com levantamento feito pelo Ministério do Meio Ambiente do Japão, no ano fiscal de 2020, o número de gatos colocados para adoção chegou a cerca de 10 mil.

A Ong TNR Felinos Japan, mantida pelos brasileiros Elen Tanaka e Cássio Silva, em Iwata (província de Shizuoka), diz ter constatado um aumento no número de felinos sob seus cuidados.

Passado o clima de empolgação inicial, muitas pessoas abriram mão do bichano ao constatarem que cuidar de um animal - mesmo um filhotinho de gato - dá trabalho e custa dinheiro. Acabam por abandonar os animais, e a conta acaba sendo transferida para quem se dedica a dar abrigo aos animais.

Cássio diz que os gastos da Ong aumentaram muito. Eles arcam com os custos do aluguel de um imóvel para cerca de 100 gatos que foram resgatados, castrados e são cuidados por ambos enquanto aguardam adoção.

O aluguel é a parte menor das despesas com essa grande família de felinos. Além de absorver o salário de Cássio como operário em uma fábrica de autopeças, a Ong consome todo o tempo da esposa Elen para cuidados, pois muitos animais chegam debilitados da rua.

São cerca de 680 mil ienes (cerca de R$ 23,3 mil) de gasto mensal que precisa ser coberto com campanhas e a boa vontade dos amigos e apoiadores da causa. “Quando deixei o Brasil 22 anos atrás, eu disse que era para trabalhar e juntar dinheiro no Japão. Mas juntamos gatos! Hoje, são eles que dão sentido à nossa vida”, diz Cássio.

E quem quiser adotar algum dos gatos, terá que cumprir exigências da Ong e assinar um termo de compromisso - como forma de evitar a devolução ou novo abandono do animal.

Conrado Areco Borelli passou na seleção e adotou Tigrão e Pompom. Sua família cuida atualmente de três felinos, com os quais gasta em média 20 mil ienes (R$ 688) em ração, areia e produtos de limpeza. Quando precisa levar os bichanos ao veterinário, o valor dobra.

O fato de ter gatos teve impacto no aluguel. Muitos donos de imóveis passaram a ser flexíveis à presença de animais, porém cobram um pouco mais por isso. “Mas vale cada centavo ter os nossos gatos conosco, vivendo em tranquilidade.”

A empresa de finanças R&C Co. entrevistou 3 mil donos de gatos no final de dezembro de 2022 e concluiu que o custo médio para cuidar de um animal é de 2,64 milhões de ienes (cerca de R$ 90 mil) ao longo de 15,6 anos de vida (média estimada pela Associação Japonesa de Produtores de Alimentos).

"Com esta pesquisa, queremos ajudar a reduzir o número de gatos abandonados por razões financeiras. Sabendo com antecedência dos gastos futuros, as pessoas poderão decidir conscientemente ter ou não o animal", disse a empresa.

Jovem japonesa segura dois gatos cinzas no colo

Crédito, Arquivo Pessoal

Legenda da foto, A falta de espaço no Japão levou Sumirê Shimizu a migrar para a turma dos gatos

Na opinião da brasileira Sumirê Shimizu, o que mais impacta a 'nekonomics' nem é tanto a posse do animal. "São as coisas de gatos. Roupas, bolsas, acessórios, tudo com o tema gato", diz.

Desde o Brasil, Sumirê gostava de cachorro de porte grande, mas na impossibilidade de tê-los em seu apartamento em Tóquio, acabou adotando Harumaki e Dorayaki, dois gatos que ela batizou com nome de comida japonesa.

Acredita-se que os primeiros gatos tenham chegado no Japão trazidos da China durante o período Nara (Século 8) para caçar ratos. A partir do período Heian (séculos 8 ao 12) passaram a ser considerados animais de estimação, sendo retratados em obras de ukiyo-e (um gênero de xilogravura e pintura que prosperou no Japão entre os séculos 17 e 19) e clássicos da literatura japonesa, como o romance Eu sou um gato, do escritor Natsume Soseki.

Na mesma época chegaram os cachorros, sendo os primeiros da raça chin, trazidos como um presente dos governantes da Coreia. Devido ao seu pequeno porte e temperamento amável, logo se tornaram animais da casa.

Embora venham perdendo espaço físico nas casas para os gatos, os cães ainda são venerados pelo passado glorioso (como o cão do último samurai, Saigo Takamori, que aparece juntou ao dono em uma estátua em Tóquio) ou pela notável lealdade demonstrada por Hachiko, o cão imortalizado no cinema e em bronze esculpido na estação de trem de Shibuya, em Tóquio. Nesse mesmo local, o animal esperou mais de nove anos após a morte de seu dono.

O japonês Yoichiro Matsushita não se impressiona com essas características caninas. Sua paixão são os gatos, com sua natureza rebelde e independente. “Também não tenho o fardo de ter de passear com eles”, acrescenta.

O primeiro que chegou à casa de Matsushita era um gato abandonado que a esposa encontrou na frente da loja de um conhecido, 40 anos atrás. Depois disso, cada vez que um morria, alguém trazia um substituto.

Atualmente ele cuida de Lara e Kiki, que chegaram ainda filhotes e são reconhecidos como membros da família - “e não pedem roupa e nem preciso levá-los à escola”.