Sírios refugiados voltam para casa após queda de Assad; o que se sabe sobre tomada do poder na Síria

Legenda do vídeo, Guerra na Síria: A queda de Bashar al-Assad e à tomada de Damasco por rebeldes

O presidente deposto da Síria, Bashar al-Assad, foi para Moscou, na Rússia, após fugir de Damasco, a capital da Síria, segundo a mídia estatal russa.

A Rússia era uma aliada-chave do regime de Assad - o ex-presidente e sua família agora receberão asilo no país.

Assad fugiu quando o grupo rebelde Hayat Tahrir al-Sham (HTS) invadiu a capital neste fim de semana. No domingo, o Ministério das Relações Exteriores da Rússia confirmou que Bashar al Assad deixou o cargo e o país após negociações com "outros participantes do conflito armado" e que deu instruções para uma transferência pacífica de poder.

Fotos do início do domingo mostraram sírios no Líbano e na Jordânia entrando na Síria, poucas horas após a queda do presidente Bashar al Assad.

Na fronteira Líbano-Síria, um correspondente da agência de notícias AFP viu dezenas de carros alinhados na principal travessia de Masnaa, com multidões aplaudindo e gritando slogans anti-Assad.

Na travessia de Jaber da Jordânia, um homem disse à Reuters: "Estou na Jordânia há 12 anos. Quando ouvimos a notícia de que Bashar al-Assad caiu, nos sentimos melhor emocionalmente. Podemos retornar ao nosso país com segurança e proteção."

O líder rebelde Abu Mohammed al-Jawlani discursou para multidões animadas em uma mesquita de Damasco e fez um pronunciamento na TV estatal síria neste domingo (8/12) em que disse que não há espaço para voltar atrás e que "o futuro é nosso".

Jawlani também afirmou que a Síria era um "parque de diversões para o Irã" e que agora todos podem "respirar aliviados". Disse também que a vitória do grupo abre uma "nova página para a região" e é "uma vitória para toda a nação muçulmana".

Muitos sírios que estavam no Líbano e na Jordânia voltaram para casa

Crédito, Reuters

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Os repórteres da BBC disseram que multidões foram às ruas de Damasco para celebrar a queda de Assad. E registraram imagens do palácio presidencial de Assad, que foi invadido e saqueado. A BBC é a única organização de notícias ocidental com repórteres dentro da capital.

O grupo rebelde sírio HTS anunciou um toque de recolher em Damasco a partir das 16h do horário local (10h no horário de Brasília). O toque de recolher vai até 5h de segunda-feira (23h de domingo, no horário de Brasília).

Os repórteres da BBC noticiaram que as pessoas começaram a esvaziar as ruas quando o anúncio do toque de recolher foi feito. Segundo a repórter Lina Sinjab, ela ouviu alguns bombardeios de artilharia também, mas não sabe dizer de onde vieram.

Os repórteres da BBC também ouviram explosões em Damasco - relatos não confirmados diziam que Israel estava bombardeando a cidades, mas o país não comentou.

Pouco depois, o presidente americano Joe Biden afirmou que os EUA fizeram uma série de ataques aéreos direcionados contra alvos do Estado Islâmico na Síria. As Forças Armadas depois afirmaram que o número foi de 75 ataques.

Fotografia de julho de 2014 mostra Assad e Putin em encontro oficial

Crédito, EPA

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A repercussão internacional

O fim do regime de quase 25 anos de Assad foi comemorado nas ruas por sírios em países como França, Alemanha, Turquia e Líbano.

Líderes de vários países ocidentais receberam com satisfação a notícia da queda de Assad.

O presidente dos EUA, Joe Biden, disse que a queda de Assad é uma "oportunidade histórica" para o país e que nem a Rússia, nem o Irã e nem o Hezbollah poderiam ter salvo o regime.

Biden também afirmou que os EUA vão conversar com "todos os grupos sírios" agora que Assad caiu.

O primeiro-ministro do Reino Unido, Keir Starmer, disse que acolhe a queda do "regime bárbaro" de Bashar al-Assad e pediu "paz e estabilidade" no país.

"Os acontecimentos na Síria nas últimas horas e dias não têm precedentes, e estamos falando com nossos parceiros na região e monitorando a situação de perto", disse Starmer. "O povo sírio sofreu sob o regime bárbaro de Assad por muito tempo e acolhemos sua saída."

O ministro das Relações Exteriores da Ucrânia, Andriy Sybiga, disse nas redes sociais: "Assad caiu. É assim que sempre foi e sempre será para ditadores que apostaram em [o presidente russo Vladimir] Putin. Ele sempre trai aqueles que confiam nele".

Kaja Kallas, a Alta Representante da União Europeia para Relações Exteriores e Política de Segurança, escreveu no X: "O fim da ditadura de Assad é um desenvolvimento positivo e muito esperado. Também mostra a fraqueza dos apoiadores de Assad, Rússia e Irã."

"O processo de reconstrução da Síria será longo e complicado e todas as partes devem estar prontas para se envolver de forma construtiva."

A Casa Branca disse que o presidente dos EUA, Joe Biden, e sua equipe estavam "monitorando de perto os eventos extraordinários na Síria e mantendo contato constante com parceiros regionais".

Daniel Shapiro, um alto funcionário do Pentágono, disse que as forças dos EUA permaneceriam no leste da Síria para combater o Estado Islâmico que, segundo ele, poderia explorar as "circunstâncias caóticas e dinâmicas" para intensificar suas operações.

Já o ministro das Relações Exteriores da Itália, Antonio Tajani, pediu calma. A residência do embaixador italiano em Damasco foi invadida por rebeldes, que roubaram três carros. Ninguém foi ferido.

"Estamos pedindo uma transferência pacífica entre o regime caído e a nova realidade, portanto, uma transição pacífica em vez de militar. Parece-me que no momento as coisas estão indo nessa direção", disse Tajani.

O enviado especial das Nações Unidas para a Síria, Geir Pedersen, disse que hoje "marca um momento decisivo na história da Síria".

O país suportou quase 14 anos de guerra civil, enfrentando "sofrimento implacável e perdas indescritíveis", diz ele.

"Este capítulo sombrio deixou cicatrizes profundas, mas hoje olhamos com esperança cautelosa para a abertura de um novo ciclo — de paz, reconciliação, dignidade e inclusão para todos os sírios."

Uma autoridade da Arábia Saudita disse que o reino está se comunicando com todos os atores regionais para tentar evitar o caos na Síria.

O rei Abdullah da Jordânia — que faz fronteira com a Síria — emitiu uma mensagem semelhante, pedindo que se evite mais conflitos. Como precaução, seu país fechou sua fronteira com a Síria.

Um alto funcionário diplomático nos Emirados Árabes Unidos, Anwar Gargash, disse que a principal preocupação de seu país é com o extremismo e o terrorismo — e culpou Assad por não usar a tábua de salvação oferecida a ele por vários países árabes.

Israel alertou que não permitirá que nenhuma força hostil se estabeleça em suas fronteiras. Mas o primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu, disse que a queda de Assad foi um resultado direto dos ataques de Israel contra o Irã e o Hezbollah.

Na rede social X, Netanyahu disse que o colapso do regime de Assad "oferece uma grande oportunidade", mas adverte que também é "repleto de perigos significativos".

"Este colapso é o resultado direto de nossa ação enérgica contra o Hezbollah e o Irã, os principais apoiadores de Assad", ele diz. "Isso desencadeou uma reação em cadeia de todos aqueles que querem se libertar dessa tirania e opressão."

Multidão festeja em Damasco

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, Multidões foram às ruas em Damasco comemorar queda de Bashar al Assad, que fugiu do país

O avanço dos rebeldes

Os rebeldes disseram que as instituições públicas permanecerão sob a supervisão do primeiro-ministro do país até que sejam oficialmente entregues a novos governantes. Havia relatos de que Assad teria deixado Damasco de avião para um destino desconhecido — o que foi confirmado pela Rússia no domingo.

Os rebeldes do Hayat Tahrir al-Sham e de grupos aliados já haviam tomado o controle da cidade de Homs, a terceira maior do país, de acordo com relatos do front e com os próprios rebeldes.

Eles já tinham ocupado também Aleppo, Deraa e Hama desde que lançaram uma grande ofensiva na semana passada.

Além disso, eles mantém o controle da província de Idlib, que ocupam desde 2011, quando ainda tinham outro nome.

O ritmo do avanço dos rebeldes na Síria tem sido impressionante, afirma o corresponde da BBC no Oriente Médio, Hugo Bachega.

Pouco antes, o HTS disse que tinha o dever de proteger representantes internacionais e da ONU na Síria.

O HTS é designado como uma organização terrorista pela ONU (Organização das Nações Unidas), pelos EUA, pela Turquia e por outros países.

Mulher com bandeira síria pintada no rosto

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, Mulher em Paris comemora a queda de Assad

Quem são os militantes islâmicos?

O HTS foi criado com um nome diferente, Jabhat al-Nusra, em 2011, como um afiliado direto da Al Qaeda. O líder do Estado Islâmico (EI), Abu Bakr al-Baghdadi, também estava envolvido em sua formação.

O HTS foi considerado um dos grupos mais eficazes e mortais contra o presidente Assad em 2011, quando o governo reprimiu diversas revoltas em meio ao que ficou conhecido como a Primavera Árabe.

Mas sua ideologia jihadista parecia ser sua força motriz - e na época o grupo foi visto como opositor da principal coalizão rebelde sob a bandeira da Síria Livre.

E em 2016, o líder do grupo, Abu Mohammed al-Jawlani, rompeu publicamente com a Al Qaeda, dissolveu a Jabhat al-Nusra e criou uma nova organização, que assumiu o nome de Hayat Tahrir al-Sham quando se fundiu com vários outros grupos parecidos um ano depois.

Já faz algum tempo que o HTS estabeleceu sua base de poder na província noroeste de Idlib, onde ocupa o governo local. Seus esforços em direção à legitimidade, no entanto, foram manchados por denúncias de violações de direitos humanos.

Multidão em torno de carro levanta bandeira da Síria
Legenda da foto, Os militantes islâmicos do Hayat Tahrir al-Sham (HTS) tomaram o controle de Aleppo e chegaram a Damasco em poucos mais de uma semana

Por que a Síria está em guerra?

Em março de 2011, manifestações pró-democracia irromperam na cidade de Deraa, no sul do país, inspiradas por levantes em países vizinhos contra governantes autoritários.

Quando o governo sírio matou manifestantes para esmagar a dissidência, protestos exigindo a renúncia do presidente irromperam em todo o país. A agitação se espalhou e a repressão se intensificou.

Os apoiadores da oposição pegaram em armas, primeiro para se defender e depois para livrar suas áreas das forças de segurança.

Centenas de grupos rebeldes surgiram, potências estrangeiras começaram a tomar partido e organizações jihadistas extremistas, como o grupo Estado Islâmico (EI) e a Al-Qaeda, se envolveram.

A violência aumentou rapidamente e o país mergulhou em uma guerra civil em grande escala, atraindo potências regionais e mundiais.

Mais de meio milhão de pessoas foram mortas e 12 milhões foram forçadas a fugir de suas casas, cerca de cinco milhões das quais são refugiados ou pedem asilo no exterior.

O governo de Assad foi tendo vitórias e a guerra parecida ter acabado na prática nos últimos quatro anos. Não havia levantes na maior parte do país. Mas algumas áreas permaneceram fora do controle do governo.

Isso inclui áreas de maioria curda no leste, que estão mais ou menos separadas do controle do estado sírio desde os primeiros anos do conflito.

Houve alguma agitação contínua, embora relativamente silenciosa, no sul, onde a revolução contra o governo de Assad começou em 2011.

No vasto deserto sírio, os resistentes do grupo Estado Islâmico ainda representam uma ameaça à segurança, principalmente durante a temporada de caça às trufas, quando as pessoas vão para a área para encontrar a iguaria altamente lucrativa.

E no noroeste, o controle da província de Idlib foi mantido por grupos jihadistas que foram para lá no início da guerra.

O HTS, a força dominante em Idlib, é quem lançou o ataque surpresa a Aleppo.

Por vários anos, Idlib permaneceu um campo de batalha enquanto as forças do governo sírio tentavam retomar o controle.

Mas havia um acordo de cessar-fogo em 2020 intermediado pela Rússia, que há muito tempo é a principal aliada de Assad, e pela Turquia, que apoiou os rebeldes.

Cerca de quatro milhões de pessoas vivem lá - a maioria delas deslocadas de vilas e cidades que as forças de Assad reconquistaram dos rebeldes em uma guerra brutal.

Aleppo foi um dos campos de batalha mais sangrentos e representou uma das maiores derrotas dos rebeldes.

Para alcançar a vitória, o presidente Assad não podia depender apenas do exército mal equipado e mal motivado do país, que logo se tornou perigosamente dispersado e incapaz de manter posições contra ataques rebeldes.

Em vez disso, ele passou a depender fortemente do poder aéreo russo e da ajuda militar iraniana em terra - principalmente por meio de milícias militares patrocinadas por Teerã - entre elas, o Hezbollah.

Há pouca dúvida de que o revés que o Hezbollah sofreu recentemente com a ofensiva de Israel no Líbano, bem como os ataques israelenses a comandantes militares iranianos na Síria, desempenhou um papel significativo na decisão de grupos jihadistas e rebeldes em Idlib de fazer seu movimento repentino e inesperado em Aleppo.

Nos últimos meses, Israel intensificou seus ataques a grupos ligados ao Irã, bem como suas linhas de suprimento, infligindo sérios danos às redes que mantiveram essas milícias operando na Síria, incluindo o Hezbollah.

Sem elas, as forças do presidente Assad ficaram expostas.

Palácio presidencial
Legenda da foto, Imagens feitas por repórteres da BBC mostram palácio de Assad sendo saqueado no domingo