Os cientistas que propõem uma maneira 'mais eficiente' de descobrir e prevenir pandemias

Pesquisadores em laboratório

Crédito, Getty Images

  • Author, José Carlos Cueto
  • Role, BBC News Mundo

Cientistas de todo o mundo estão visitando o habitat de animais selvagens para estudar os vírus que circulam em seus corpos.

Governos e instituições vêm destinando milhões de dólares a esta pesquisa. A intenção é prever qual será o próximo patógeno com potencial de causar uma pandemia.

A origem do Sars-CoV-2 – o vírus causador da covid-19 – ainda não foi totalmente esclarecida.

Mas as evidências científicas continuam indicando a teoria do transbordamento ("spillover", em inglês), segundo a qual um vírus conseguiu "saltar" de um animal para o ser humano e propagar-se sem controle.

A maioria dos patógenos provém dos animais e a teoria do transbordamento é a base de inúmeras pesquisas de vigilância e prevenção.

Mas, para o epidemiologista Gregory Gray, da Universidade do Texas, nos Estados Unidos, destinar tantos recursos a esta ideia é como "procurar uma agulha em um palheiro".

"O transbordamento acontece todo o tempo e muito poucos se transformam em pandemias", segundo o cientista.

Gray e outros especialistas propõem uma maneira alternativa de vigiar e evitar as pandemias – que, de certa forma, desafia nosso pensamento sobre suas origens e como as enfrentamos.

O que é?

Esses cientistas partem do princípio de que pesquisar milhares de vírus em animais é caro e, muitas vezes, ineficiente.

"É interessante do ponto de vista científico, mas realmente não acredito que seja possível prever quais deles se tornarão pandemias", afirma à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC, o biólogo Stephen Goldstein, da Universidade de Utah, nos Estados Unidos.

Cientistas durante trabalho em campo

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Legenda da foto, Cientistas defendem estratégias de pesquisa diferentes para identificar novos vírus presentes nos seres humanos antes que se propaguem pelo mundo
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Como Gray, Goldstein insiste que os transbordamentos ocorrem a todo momento. “Mas a maioria não passa do primeiro receptor”, segundo ele.

Isso ocorre porque, embora um vírus seja capaz de adaptar-se a um ser humano, costuma levar tempo – muitas vezes, anos – e é preciso ter diversos outros transbordamentos para que surja uma variante que se propague com eficiência, transformando-se em pandemia. E é neste espaço de tempo que devemos nos concentrar, segundo estes cientistas.

“Se vigiarmos e estudarmos pessoas em contato frequente com animais, como os trabalhadores da agricultura ou comerciantes de animais vivos, especialmente quando eles ficam doentes, podemos identificar os agentes que estão causando as doenças”, exemplifica Goldstein.

“Em vez de procurar milhares de vírus em animais, observamos aqui o que já está transbordando”, prossegue ele. “Nós confrontamos os vírus preocupantes porque já sabemos que eles podem infectar as pessoas.”

“Esta é a base do nosso argumento”, afirma Gray. “Reduzir os dados e detectar os patógenos nos seus primeiros estágios, quando já causaram doenças. A partir daí, podemos criar medidas de intervenção contra os mais ameaçadores.”

Não existem muitos estudos nas últimas décadas que tenham procurado transbordamentos nas pessoas para determinar o quanto eles são comuns.

Quando pacientes com pneumonias misteriosas chegam ao atendimento de emergência, os médicos procuram patógenos conhecidos. Eles não conseguem detectar vírus que não tenham sido descobertos. E este é o tipo de caso que os cientistas pedem que sejam mais estudados.

Fechando o cerco

Em videoconferência, Gray demonstra em um gráfico os vírus que provocaram mais mortes no último século.

Em sua maioria, são vírus respiratórios. A gripe espanhola de 1918, o SARS em 2003, o H1N1 em 2009 e o SARS-Cov-2 de 2020 são alguns exemplos.

Por isso, Gray acredita que podemos fechar o cerco sobre os vírus mais ameaçadores se concentrarmos mais pesquisas nos vírus respiratórios.

“Eles se propagam, muitas vezes, sem sintomas e não conseguimos controlá-los muito bem”, afirma o cientista. “Eles são transmitidos antes de podermos isolar os pacientes.”

“Quando a vigilância da interface entre o ser humano e o animal não for possível, uma opção eficiente é vigiar novos vírus respiratórios em pacientes com pneumonia em regiões de contato frequente com os animais”, defende Gray no seu estudo. “Se forem descobertos, pode-se avaliar seu risco aos seres humanos e, se for o caso, iniciar as estratégias de combate.”

GREGORY GRAY

Crédito, Arquivo pessoal

Legenda da foto, Gregory Gray, da Universidade do Texas, nos Estados Unidos, é parte de um grupo de cientistas que pode mudar a forma como são investigados os patógenos emergentes

Linhagem de décadas

Gray argumenta que o extenso estudo dos animais não foi capaz de prever a pandemia de covid-19, nem a de influenza A em 2009. Quando surgiram as variantes que se propagaram pelo mundo, já era tarde.

Mas existem estudos que indicam que o SARS-Cov-2 pode ter esperado décadas no corpo de algum animal, antes que surgisse a variante fatal.

Uma pesquisa publicada na revista Nature em 2020 sugere que a linhagem que deu origem ao SARS-CoV-2 pode ter circulado entre morcegos desde cerca de 1969, sem ter sido detectada.

“Se for verdade, levou muito tempo para que fosse altamente transmissível entre seres humanos”, afirma Gray.

“Alguns virologistas diriam que, entre os milhares de coronavírus, parece que alguns poucos transbordam para os seres humanos. Mas, se vigiarmos os seres humanos expostos a animais e encontrarmos novos vírus, podemos fazer algo, com base na sua evolução biológica, antes que eles invadam os atendimentos de emergência”, insiste o especialista.

Homem faz exame de covid pelo nariz

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Legenda da foto, Os testes de diagnóstico em pacientes concentram-se em vírus conhecidos e, muitas vezes, ‘ignoram’ novos patógenos

Vantagens e desvantagens

Gray reconhece que a teoria defendida por ele também apresenta riscos.

“Se colocarmos todos os recursos nos vírus respiratórios, poderemos ignorar outras ameaças”, explica ele. “É por isso que também defendemos o desenvolvimento de outras tecnologias, como o sequenciamento paralelo em massa.”

O epidemiologista David Heymann, da Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres, concorda que os bancos de dados criados em função do estudo de vírus animais não são muito eficazes para a previsão de pandemias.

Mas ele indica que “se um novo vírus surgir, você pode comparar sua sequência com esse banco de dados, identificar quais animais são portadores desse vírus e, talvez, fazer uma lista de animais em que ele pode ter se originado”.

Goldstein, da Universidade de Utah, também adverte sobre os desafios da teoria que ele defende, se fosse implementada com mais frequência.

“Você continua precisando de recursos, é caro e exige logística e coordenação global”, explica ele. “E, se você identificar vírus que estão transbordando, não é tão fácil decidir o que fazer a respeito.”

Por fim, seria necessário fabricar vacinas para infecções cujo alcance continuaria no campo das hipóteses.

“Para fazer vacinas, você precisa de testes clínicos em seres humanos e é difícil realizá-los para vírus que, embora preocupantes, não tenham causado epidemias”, afirma Goldstein.

Morcego dentro de solução em laboratório

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Legenda da foto, Morcegos podem ter abrigado a linhagem do SARS-CoV-2 (o vírus causador da covid-19) por décadas, antes que ele chegasse aos seres humanos

Por outro lado, o biocientista Konstans Wells, da Universidade de Swansea, no Reino Unido, adverte que é igualmente importante avaliar como diferentes comportamentos humanos e interações entre seres humanos e animais contribuem para as infecções de vírus de origem animal em diferentes contextos.

“Por exemplo, turistas ou populações urbanas podem ser expostos a morcegos de forma diferente dos caçadores ou dos coletores de guano [as fezes dos animais]. Continua sendo importante observar como essas variações de ambientes e interações afetam a circulação do vírus”, explica Wells.

Sem desmerecer a necessidade dos esforços de pesquisa sobre os vírus mais ameaçadores, Wells destaca a complexidade dessas interações. Para ele, é “igualmente importante trabalhar na identificação dos chamados ‘pontos cegos’: espécies e ambientes desconhecidos que podem facilitar os transbordamentos de patógenos”.

Qualquer emergência patogênica “precisa ser avaliada de muitos pontos de vista diferentes”, conclui Wells.