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Efeitos do Antropoceno: Emergência climática exige mudanças imediatas em todas as relações sociais

Um barqueiro impotente frente ao mar de lixo num lago na Sérvia: o trabalho de pensadores como a pesquisadora francesa Delory-Momberger e o filósofo brasileiro Nêgo Bispo demonstram a importância de se trocar conceitos de desenvolvimento e humanismo por biointeração e cosmovisão. “Os humanos não se sentem como animais. Essa desconexão é um efeito da nossa cosmofobia”, escreveu Nêgo Bispo. AP Photo/Darko Vojinovic

Entre os cientistas, e também entre os povos tradicionais, é sabido que vivemos no Antropoceno: um período em que a presença humana e suas atividades causaram modificações nas condições de vida na Terra, que dão sinais de piora progressiva.

O aumento do nível do mar, da intensidade e frequência de inundações, da desertificação, das tempestades e furacões, da temperatura, assim como períodos de seca, escassez de água, crises no plantio, extinção de espécies e migrações forçadas já são realidade e devem piorar. Uma situação que acentua desigualdades e impacta violentamente a vida de grupos fragilizados.

Mas, é bom lembrar, não significa que o planeta Terra esteja em risco. Algumas formas de vida, como a nossa, é que são prejudicadas. Como disse Ailton Krenak: “A Terra pode nos deixar para trás e seguir o seu caminho”.

Responsável por tantos impactos nas condições de vida na Terra, o Antropoceno nos convida a pensar de um modo menos autocentrado, talvez em termos do que a educadora francesa Christine Delory-Momberger chama de um “eu ampliado”. Um “eu” que se perceba integrante, envolvido, convivendo com outros seres. Seja qual for a nossa localização ou área de atuação, um bom começo pode ser perceber com maior atenção onde estamos, com quem estamos, convidando outros a fazer o mesmo.

Professores, por exemplo, podem motivar seus alunos a pensar sobre várias questões: Em que bioma eu vivo? Que árvores e outras plantas são essas no meu bairro? Quais os insetos que coabitam comigo? De onde vêm e para onde vão os córregos e rios que encontro quando passo? De onde vem a água na minha torneira? Quem são as pessoas que moram nas ruas à minha volta? Ou as que vejo, tão apressadas, nos carros, ônibus e metrôs? São meus inimigos ou seres confluentes? O que podemos compartilhar? Como podemos biointeragir?

Seres em convívio com outros seres

Delory-Momberger participou de um um congresso internacional sobre pesquisa biográfica e autobiográfica (um campo de estudos consolidado na Educação), na Universidade do Estado da Bahia, em maio desse ano. Diante de pesquisadores que dedicaram suas vidas ao humano, aos sujeitos, às biografias, a educadora questionou: como fazer ciência no Antropoceno?

A pergunta é tão profunda e urgente que podemos refazê-la em qualquer outro contexto. Como educar no Antropoceno? Como exercer o Direito, a Medicina, a Engenharia, o Jornalismo no Antropoceno? Como ser cidadão no Antropoceno? No campo científico, a resposta da pesquisadora francesa foi: trabalhar em prol da construção de conhecimentos que promovam a “redescoberta das interdependências e solidariedades entre os seres vivos em um mundo, um solo que lhes é comum”. Isso nos faz reconhecer que pertencemos à Terra.

Já faz um bom tempo que nos colocamos no centro dos nossos universos. Podemos chamar de “guinada subjetiva” esta atenção crescente, que já dura algumas décadas, ao sujeito, aos indivíduos, suas histórias de vida, suas memórias. Uma guinada que supera o momento anterior, o das “estruturas”, das “grandes narrativas”, em que entendíamos as experiências como inevitavelmente conduzidas por forças alheias à vontade dos indivíduos, como a classe social e a economia.

A prioridade dada aos sujeitos nos trouxe coisas positivas. O reconhecimento da memória oral como uma fonte de conhecimento, um olhar para a “gente miúda” da sociedade e para temas que antes sequer eram abordados, como infância, loucura, trabalho doméstico, vida estudantil.

Essa nova prioridade dos sujeitos renovou objetos e métodos em vários campos do conhecimento. Não à toa, temos um desejo cada vez maior de “humanizar”. Defendemos os “direitos humanos”, a “humanização” dos tratamentos, das relações, seja na saúde, economia, administração, educação e outras áreas.

Se a atenção que estamos dando aos indivíduos e suas subjetividades trouxe avanços, não podemos deixar de notar como ela também reforça uma perspectiva antropocêntrica. Para a maioria das pessoas, ainda é comum a crença de que somente a espécie humana tem efetivamente direitos a serem respeitados. E, assim, ao escolher defender apenas os “humanos”, a prestar tanta atenção às experiências dos humanos, prosseguimos indiferentes às outras formas de vida com as quais convivemos.

Insistimos em ignorar, por exemplo, que vivemos em um planeta fundamentalmente verde. Todos os animais, incluindo os humanos, são responsáveis por apenas 0,3% da biomassa da Terra, enquanto as plantas representam 85%.

Não se trata aqui de considerar a vida humana irrelevante, mas de pensar sobre como podemos favorecer a compreensão de que somos seres em convívio com outros seres, como propõe Delory-Momberger.

Antropocentrismo que precisa ser superado

Nem precisamos recorrer à pesquisadora francesa para avançar no tema. Um pensador do interior do Piauí — o líder quilombola Antônio Bispo dos Santos, mais conhecido como Nêgo Bispo, falecido em 2023 — apresenta em seus livros ideias como as de biointeração, confluência, cosmofobia.

O filósofo e ativista quilombola Nego Bispo, criador dos conceitos biointeração e cosmofobia. Foto de Murilo Alvesso / Agência Brasil

Em “A terra dá, a terra quer”, falando sobre a desconexão entre os seres humanos e a natureza, especialmente nos ambientes urbanos, ele explica: “Dentro do reino vegetal, todos os vegetais cabem, dentro do reino mineral, todos os minerais cabem. Mas dentro do reino animal não cabem os humanos. Os humanos não se sentem como entes do ser animal. Essa desconexão é um efeito da cosmofobia”.

Confluência, para Nêgo Bispo, é o princípio que rege o convívio entre todas as formas de vida e elementos da natureza. Confluência não é “troca”, é viver em estado de “compartilhamento”. Confluência de saberes, de experiências, com os outros humanos, com os outros seres, com os biomas. Ele exemplifica: “Quando cheguei ao território em que estou hoje, já existiam outros compartilhantes que nos recepcionaram. Na Caatinga, os umbuzeiros nos recepcionaram. Eles compartilharam seus frutos, suas folhas e suas raízes quando chegamos”.

E precisamos todos participar da confluência: “Se vejo uma árvore que não está em bom estado, vou cuidar dela e ela vai servir tanto para mim como para os demais seres”. Como pertencemos ao mesmo mundo, estamos conectados com todos os outros seres, precisamos biointeragir “com todos os elementos do universo de forma integrada, a ponto de superarmos os processos expropriatórios”.

Palavras perigosas

Nêgo Bispo entendia as palavras como sementes, que podem ser semeadas e germinar. Por isso nos alertava para os riscos de expressões muito comuns em nosso vocabulário.

Uma delas é “desenvolvimento sustentável”. O prefixo “des”, como sabemos, significa negação, falta, afastamento. Basta pensar no sentido de palavras como “desamor”, “desfazer”, “desarmar”. É por isso que o desenvolvimento, mesmo o sustentável, tem reforçado a nossa desconexão com as outras formas de vida e suas necessidades. Para Bispo, “a palavra boa é envolvimento”.

Outra palavra perigosa, diz ele, é justamente humanismo, “uma palavra companheira da palavra desenvolvimento, cuja ideia é tratar os seres humanos como seres que querem ser criadores, e não criaturas da natureza, que querem superar a natureza”.

Somos seres humanos e o destino dos humanos sempre será importante para nós. Abrir espaço em nossas agendas de debates para as outras formas de vida, portanto, não significa esquecer dos nossos inúmeros problemas sociais, da pobreza, da fome. As tensões políticas, econômicas, nacionais, étnicas, raciais, de gênero, sexuais e tantas outras merecem toda a atenção. Mas elas podem e devem ser pensadas em diálogo com o fato de que as nossas vidas estão inevitavelmente conectadas com as de outros seres.

Como defende a filósofa e bióloga ecofeminista Donna Haraway, é mais produtivo buscar enxergar como esses diversos problemas estão interligados, e como são afetados pelas consequências da crise climática, do que considerar que um debate é mais importante que outro. Seria um grande equívoco prolongar indefinidamente o nosso desinteresse por tudo o que não nos pareça demasiadamente humano.

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