Povos indígenas do Brasil: diferenças entre revisões
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=== Diversidade e unidade ===
[[Imagem:Indústria lítica Umbu 1.jpg|thumb|Pontas de flecha em pedra lascada da [[Tradição Umbu|cultura umbu]], a primeira que deixou registros conhecidos no sul do Brasil]]Como base do entendimento sobre a cultura indígena é preciso saber que não há uma cultura indígena unificada. Cada povo ao longo de milênios desenvolveu modos próprios de compreender e de se relacionar com o mundo, que se expressam em tradições religiosas, artesanato, músicas, hábitos sociais e festejos peculiares, entre outros aspectos, e entrar em detalhes sobre cada [[etnia]] e cada grupo seria impossível no escopo deste artigo.<ref>{{Harvnb|Coelho|2007|pp=237-249}}</ref><ref name="Montardo">{{Harvnb|Montardo|2006|pp=115-134}}</ref><ref name="Bessa">{{citar web|url=http://www.conexaoaluno.rj.gov.br/especiais-19f.asp|título=Cinco Equívocos sobre a Cultura Indígena Brasileira|autor=Freire, José Ribamar Bessa|ano=2000|website=Cenesch — Revista do Centro de Estudos do Comportamento Humano|páginas=17-33|wayb=20090420052355|urlmorta=sim}}</ref><ref name="Piedade">{{Harvnb|Piedade|2006|pp=35-48}}</ref>▼
As descrições quinhentistas e seiscentistas sobre o modo de vida dos indígenas brasileiros foram feitas pelos colonizadores
▲Como base do entendimento sobre a cultura indígena é preciso saber que não há uma cultura indígena unificada. Cada povo ao longo de milênios desenvolveu modos próprios de compreender e de se relacionar com o mundo, que se expressam em tradições religiosas, artesanato, músicas, hábitos sociais e festejos peculiares, entre outros aspectos, e entrar em detalhes sobre cada [[etnia]] e cada grupo seria impossível no escopo deste artigo.<ref>{{Harvnb|Coelho|2007|pp=237-249}}</ref><ref name="Montardo">{{Harvnb|Montardo|2006|pp=115-134}}</ref><ref name="Bessa">{{citar web|url=http://www.conexaoaluno.rj.gov.br/especiais-19f.asp|título=Cinco Equívocos sobre a Cultura Indígena Brasileira|autor=Freire, José Ribamar Bessa|ano=2000|website=Cenesch — Revista do Centro de Estudos do Comportamento Humano|páginas=17-33|wayb=20090420052355|urlmorta=sim}}</ref><ref name="Piedade">{{Harvnb|Piedade|2006|pp=35-48}}</ref>
O Portal Brasil, com dados do Censo de 2010, indica que ainda vivem no país mais de 300 etnias, que falam mais de 270 línguas, mas esses números
▲As descrições quinhentistas e seiscentistas sobre o modo de vida dos indígenas brasileiros foram feitas pelos colonizadores, seus relatos tratam em geral dos povos [[tupis]], e são limitados em muitos aspectos. Sendo culturas que nunca haviam entrado em contato, houve muita incompreensão e imprecisão de parte dos primeiros observadores.<ref name="Fernandes1">{{Harvnb|Fernandes|1976|pp=72-86}}</ref> Até onde se sabe, viviam uma vida basicamente de [[caçadores-coletores]] [[nômade]]s, com uma [[cultura material]] reduzida a armas e ferramentas — sobrevivendo grande acervo de pontas de flecha e lança, machados e outros artefatos em [[pedra lascada]] e osso — formas de sepultamento e apetrechos pessoais, incluindo adornos corporais com conchas, pedras, sementes, etc. Aos poucos aparecem objetos em [[pedra polida]] de progressiva sofisticação, [[arte rupestre|registros rupestres]] e logo artefatos em [[cerâmica]] e pedra esculpida (estes, raros), além de evidências de práticas agrícolas, indicando algum grau de [[sedentarização]], definindo o modelo abaixo descrito, que corresponde, numa grande generalização, à provável realidade dos indígenas brasileiros no {{séc|XVI}}. Mas esta evolução não foi linear, e os diferentes povos foram encontrados pelos colonizadores vivendo variadas formas de cultura, uma diversidade que perdura até hoje e continua em transformação. Nenhuma das atuais etnias do Brasil ainda conserva sua cultura como era no tempo do Descobrimento. A despeito dessas diferenças, há também características básicas comuns.<ref name="Battaglia"/><ref name="Schmitz"/><ref name="rr">{{Harvnb|Ribeiro|Ribeiro|1957}}</ref><ref name="Itamaraty">{{citar web|url=http://dc.itamaraty.gov.br/imagens-e-textos/revista1-mat5.pdf|título=A Cultura dos Povos Indígenas|publicado=Departamento Cultural do Ministério das Relações Exteriores - Itamaraty|wayb=20141227081055|urlmorta=sim}}</ref><ref>{{Harvnb|Dorta|Cury|2000|pp=35-38}}</ref>
▲O Portal Brasil, com dados do Censo de 2010, indica que ainda vivem no país mais de 300 etnias, que falam mais de 270 línguas, mas esses números variam conforme os critérios utilizados.<ref name="pop">{{citar web|url=https://www.douradosagora.com.br/2012/08/13/brasil-tem-quase-900-mil-indios-de-305-etnias-e-274-idiomas/|título=Brasil tem quase 900 mil índios de 305 etnias e 274 idiomas|data=13/08/2012|publicado=Dourados Agora}}</ref> O [[Ministério da Justiça (Brasil)|Ministério da Justiça]], por exemplo, apontava cerca de 218 etnias e 180 línguas em 2007.<ref>{{citar web|url=http://portal.mj.gov.br/data/Pages/MJA63EBC0EITEMID7AFC6B98232B490F84EA7F4BC4380251PTBRNN.htm|título=Etnias Indígenas|ano=2007|publicado=Ministério da Justiça do Brasil|wayb=20100313184750|urlmorta=sim}}</ref><ref>{{citar web|url=http://portal.mj.gov.br/data/Pages/MJA63EBC0EITEMIDC1A21A1B713340BD99FDF7CB4CDF81C6PTBRNN.htm|título=Diversidade das Línguas Indígenas|ano=2007|publicado=Ministério da Justiça do Brasil|wayb=20100313184606|urlmorta=sim}}</ref> Essa riqueza linguística deixou grande contribuição à cultura nacional em nomes de pessoas e lugares, como [[Curitiba]], [[Piauí]], Ubirajara e Iracema, em nomes de plantas ou animais como caju, jacaré, abacaxi, tatu.<ref name="Museu">{{citar web|url=https://redeglobo.globo.com/globoecologia/noticia/2012/03/influencia-da-cultura-indigena-em-nossa-vida-vai-de-nomes-medicina.html|título=Influência da cultura indígena em nossa vida vai de nomes à medicina|data=30-03-2012|publicado=Rede Globo|wayb=20120503004059}}</ref> O número de vocábulos tupis incorporados ao português do Brasil é alto, alcançando, segundo estimativas, o número de 20 mil palavras.<ref name="Manso">{{citar web|url=http://www.usp.br/agen/17dez.htm|título=Tupi or not tupi|autor=Manso, Bruno Paes|data=26/12/1998|website=USP|publicado=Veja|wayb=20001208164600|urlmorta=sim}}</ref>
=== Organização da aldeia e sustento ===
[[Imagem:Parque Indígena do Xingu.jpg|thumb|esquerda|Uma aldeia típica do [[Alto Xingu]]]]
[[File:Hans Staden - aldeia indígena.jpg|thumb|esquerda|Uma aldeia com um sistema de paliçadas para defesa, gravura de [[Hans Staden]], 1557]]As comunidades viviam em [[tribo]]s, uma entidade organizacional complexa composta de várias aldeias ligadas por parentesco e por interesses comuns. Cada aldeia consistia de um grupo de habitações coletivas, as chamadas [[oca]]s ou malocas, dispostas em relação a uma praça que podia ser o centro ou não, e que era destinada a atividades comunitárias como celebrações, rituais, assembleias e outras. No centro da praça podia haver uma oca destinada a atividades exclusivamente masculinas. Em cada habitação moravam muitos casais com suas famílias, podendo abrigar de 50 a 200 indivíduos, e em muitos casos, bem mais. As ocas eram construídas com um arcabouço de madeira inteiramente fechado com palha, deixando de uma a três aberturas para circulação.<ref name="Fernandes1"/> Em geral eram estruturas alongadas e altas, mas podiam assumir variadas formas e tamanhos, e algumas tribos, como os [[marubo]] e os [[ianomâmis]], construíam apenas uma, onde residiam todas as pessoas da aldeia.<ref>{{citar web|url=https://pib.socioambiental.org/pt/Habita%C3%A7%C3%B5es|título=Habitações|publicado=Instituto Socioambiental|website=Povos Indígenas no Brasil}}</ref>▼
▲As comunidades viviam em [[tribo]]s, uma entidade organizacional complexa composta de várias aldeias ligadas por parentesco e por interesses comuns. Cada aldeia consistia de um grupo de habitações coletivas, as chamadas [[oca]]s ou malocas, dispostas em relação a uma praça que podia ser o centro ou não, e que era destinada a atividades comunitárias como celebrações, rituais, assembleias e outras. No centro da praça podia haver uma oca destinada a atividades exclusivamente masculinas. Em cada habitação moravam muitos casais com suas famílias, podendo abrigar de 50 a 200 indivíduos, e em muitos casos, bem mais. As ocas eram construídas com um arcabouço de madeira inteiramente fechado com palha, deixando de uma a três aberturas para circulação.<ref name="Fernandes1"/> Em geral eram estruturas alongadas e altas, mas podiam assumir variadas formas e tamanhos, e algumas tribos, como os [[marubo]] e os [[ianomâmis]], construíam apenas uma, onde residiam todas as pessoas da aldeia.<ref>{{citar web|url=https://pib.socioambiental.org/pt/Habita%C3%A7%C3%B5es|título=Habitações|publicado=Instituto Socioambiental|website=Povos Indígenas no Brasil}}</ref>
A maior parte da vida familiar se desenvolvia no interior das ocas, que possuíam divisões internas mínimas ou nenhuma. Com esta conformação, nada podia ser segredo para ninguém e tudo era feito à vista de todos, inclusive o intercurso sexual dos casais. À noite acendiam fogueiras e dormiam em redes. Uma descrição de [[Pero de Magalhães Gândavo]], corroborada por outros cronistas, assim mostra o cotidiano no interior das habitações: "Em cada casa vivem todos muito conformes, sem haver nunca entre eles nenhumas diferenças: antes são todos amigos uns dos outros, que o que é de um é todos, e sempre de qualquer coisa que um coma, por pequena que seja, todos os circunstantes hão de participar dela". [[Jean de Léry]] relatou que "mostram os selvagens sua caridade natural presenteando-se diariamente uns aos outros com veações, peixes, frutas e outros bens do país, e prezam de tal forma essa virtude que morreriam de vergonha se vissem o vizinho sofrer falta do que possuem". [[Florestan Fernandes]] acrescentou: "O mesmo padrão básico de cooperação vicinal aplicava-se às relações dos membros das malocas que faziam parte de um grupo social. Os produtos da caça, da pesca, da coleta e das atividades agrícolas pertenciam à parentela que os conseguisse".<ref name="Fernandes1"/>
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Viviam da caça, da pesca e da [[agricultura de subsistência]], mudando periodicamente a instalação das aldeias conforme o declínio dos [[recursos naturais]] disponíveis no entorno. O abandono de áreas exploradas possibilitava sua recuperação natural.<ref name="Schmitz"/><ref name="Machado2"/> Como precisavam de poucos bens materiais, e obtinham tudo diretamente de uma Natureza exuberante, a [[pobreza]] era desconhecida no cotidiano, sempre havia o bastante para todos viverem felizes e saudáveis, com uma cultura fortemente baseada na [[troca]] e na distribuição equitativa de excedentes. Carências e fome só ocorriam em situações de crise geral, como nas [[epidemia]]s, que despovoavam as aldeias desestruturando suas cadeias produtivas, ou nas secas, que afetavam negativamente o ambiente de grandes regiões.<ref name="Schmitz"/><ref name="Arca">{{citar web|url=http://arcadenoe.org.br/arca/?page_id=93|título=Sociedade Indigena|publicado=Instituto Arca de Noé|urlmorta=sim|wayb=20131203042440}}</ref>
Tinham amplo conhecimento da produção de bebidas fermentadas a partir de tubérculos, raízes, folhas, sementes e frutos como o milho, mandioca, batata-doce, buriti, caju, amendoim, banana, ananás.<ref>{{Harvnb|Cavalcante|2011}}</ref> Deixaram forte herança na culinária brasileira, com pratos à base de mandioca e milho, tais como a [[pamonha]] e o [[beiju]], e também com plantas com o guaraná, palmito, batata-doce, cará, pinhão, cacau, amendoim,
=== Estrutura social e familiar ===
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[[Imagem:Burian urn, AD 1000-1250, Marajoara culture - AMNH - DSC06177 b.jpg|thumb|Urna funerária marajoara, [[Museu Americano de História Natural]]]]
A vida de cada indivíduo era programada em linhas gerais desde antes do nascimento pela estrutura tradicional e relativamente fixa de suas culturas, com normas sociais mantidas sem grande modificação desde tempos imemoriais. Muitas sociedades eram profundamente ritualizadas, desenrolando o tecido de suas vidas ao comando de [[mito]]s e crenças diversas, que cercavam certas atividades de [[tabu]]s invioláveis e davam instruções para muitos atos cotidianos.<ref name="Rituais">{{citar web|url=https://pib.socioambiental.org/pt/Rituais|título=Rituais|publicado=Instituto Socioambiental|website=Povos Indígenas do Brasil}}</ref><ref name="Aracy">{{citar web|url=https://pib.socioambiental.org/pt/Mitos_e_cosmologia|título=Mitos e cosmologia|autor=Silva, Aracy Lopes da|publicado=Instituto Socioambiental|website=Povos Indígenas do Brasil}}</ref><ref name="Salik">{{Harvnb|Salik|2010|pp=22-25; 40-41}}</ref> No entanto, variações e mudanças existiram ao longo do tempo, cronistas antigos informam que na ocorrência de uma situação inesperada ou desconhecida, costumava-se convocar um conselho tribal para analisar o fato novo. Se ele pudesse ser harmonizado às tradições, era incorporado ao cânone dos costumes e imediatamente se tornava regra geral, mas apenas um voto contrário na assembleia podia levar à sua rejeição.<ref name="Fernandes1"/> Com o passar do tempo ocorreram muitos intercâmbios entre povos diferentes, em particular com os colonizadores, e essa evolução progride ainda hoje, sendo de fato culturas vivas e dinâmicas, mesmo que baseadas em tradições antigas.<ref name="Bessa"/><ref name="Machado2">{{Harvnb|Machado|2006}}</ref><ref name="Redes"/>
Pouco se sabe sobre suas antigas crenças religiosas senão através de interpretações distorcidas transmitidas pelos colonizadores, para os quais nos primeiros tempos parecia que não possuíam nenhuma ideia de [[Deus]].<ref name="Rituais"/><ref name="Trein">{{Harvnb|Trein|2012|pp=1081-1095}}</ref><ref name="Carlos">{{Harvnb|Brandão|1990}}</ref> Nas palavras de Hans Alfred Trein, "a inexistência de uma formação social de [[Estado]] foi interpretada como carência civilizatória, da mesma forma como a inexistência de um Deus e de um discurso [[teologia|teológico]] foi interpretada como carência de religião".<ref name="Carlos"/> Logo se percebeu que eles mantinham sim muitos ritos e crenças religiosos, a ideia do divino era de fato generalizada, mas com muitas variações em seu significado.<ref name="Carlos"/><ref>{{citar web|url=http://www.pucsp.br/rever/relatori/notago05.htm|título=A identidade indígena: Estratégias políticas e culturais ({{séc|XVI}} e XVII)|autor=Brito, Ênio José da Costa|website=Revista de Estudos da Religião}}</ref><ref name="Prezia"/> Nas cosmovisões indígenas é comum uma noção de tempo não linear, em que o universo não tem uma origem e fim definidos e os tempos se confundem. Muitas tribos acreditavam em um deus supremo, mas este deus podia ter a função única de criar o universo, deixando-o depois sob a responsabilidade de deuses secundários.<ref name="Salik"/><ref name="Trein"/><ref name="Carlos"/><ref name="Prezia">{{citar web|url=http://www.expedicaovillasboas.com.br/evb/ambiental/indigenas/208-o-sagrado-nas-culturas-indigenas.html|título=O Sagrado nas Culturas Indígenas|autor=Prezia, Benedito|publicado=Expedição Villas Boas|wayb=20131215231241|urlmorta=sim}}</ref> Às vezes, porém, a origem do mundo é inteiramente desconhecida e ele já aparece pronto nas suas lendas de criação, podendo então destacar-se a figura de um herói sábio e civilizador, que podia ser algum tipo de super-homem ou alguma entidade divina, seres benevolentes que organizam e instruem a humanidade e lhe concedem dádivas valiosas. Em muitas tradições a humanidade nasce de um animal mitológico poderoso. Por outro lado, cosmogonias com um par (às vezes antagônico) ou uma coletividade de criadores primevos também são comuns.<ref name="Carlos"/><ref>{{Harvnb|Laraia|2013|pp=427-439}}</ref>
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Como já foi mencionado, originalmente a educação nas comunidades era dada de maneira coletiva e tradicional, em grande parte baseada na [[oralidade]], já que nenhuma das sociedades indígenas brasileiras possuiu [[sistemas de escrita]] conhecidos. Calcula-se que antes de Cabral eram faladas cerca de 1 300 línguas nativas. Hoje seu número é muito menor. Não se sabe exatamente qual seja, devido à variação nos critérios utilizados, mas pode ainda haver cerca de 270 línguas vivas. O número oficial do IBGE é de 274. Muitas, porém, estão em rápido declínio, com apenas poucos falantes. Poucas foram estudadas em profundidade, apenas 9% delas tem descrição completa, com [[gramática]], coletânea de textos e [[dicionário]]. Elas se dividem em dois grandes [[tronco linguístico|troncos linguísticos]], o [[Tronco tupi|tupi]] e o [[macro-jê]]. No primeiro se incluem, por exemplo, as línguas [[Línguas tupis-guaranis|tupi-guarani]], monde, [[língua tupari|tupari]], [[língua juruna|juruna]] e [[língua mundurucu|mundurucu]], e no segundo, jê, [[língua bororo|bororo]] e botocudo. Também existem diversos grupos falantes de [[línguas isoladas]], sem afinidades próximas com quaisquer outras línguas, como o [[Ticunas|ticuna]], [[trumai]] e [[jabuti]]. Além disso, há uma infinidade de [[dialeto]]s e variações das línguas principais. O ticuna, o [[guarani-caiouás]] e o [[caingangues|Caingangue]] são as que têm maior número de falantes.<ref>{{citar web|url=http://basilio.fundaj.gov.br/pesquisaescolar./index.php?option=com_content&view=article&id=832%3Alinguas-indigenas-no-brasil&catid=47%3Aletra-l&Itemid=1|título=Línguas Indígenas no Brasil|autor=Gaspar, Lúcia|publicado=Fundação Joaquim Nabuco|wayb=20140506020819|urlmorta=sim}}</ref><ref>{{citar web|url=http://www.funai.gov.br/index.php/indios-no-brasil/quem-sao|título=Quem São|publicado=Funai|wayb=20140310004045|urlmorta=sim}}</ref><ref>{{citar periódico|url=http://www.labjor.unicamp.br/patrimonio/materia.php?id=213|título=Línguas indígenas: situação atual, levantamento e registro|autor=Moore, Denny|website=Revista Eletrônica do IPHAN|wayb=20110923110523|urlmorta=sim}}</ref>
[[Imagem:Serra da Capivara - Several Paintings 2b.jpg|thumb|esquerda|[[Pinturas rupestres]] no [[Parque Nacional Serra da Capivara]], declarado [[Patrimônio Mundial]] pela [[Unesco]] em vista de sua importância arqueológica, possuindo 912 sítios identificados e 657 com pinturas e gravuras.<ref>{{citar web|url=http://www.fumdham.org.br/parque.asp|título=Parque Nacional Serra da Capivara|publicado=Fundação Museu do Homem Americano|wayb=20141105085957|urlmorta=sim}}</ref>]]
[[Imagem:Tiriyó-Kaxuyana beadwork - Memorial dos Povos Indígenas - Brasilia - DSC00533.JPG|thumb|esquerda|Têxtil com padronagem geométrica típica dos [[tiriós]]-[[caxuianas]]. Memorial dos Povos Indígenas]]
Apesar da ausência de sistemas de escrita, muitos grupos desenvolveram uma rica diversidade de sinais e outras formas gráficas, de variado grau de complexidade, repetidas através de gerações e que, sabe-se, eram portadoras de significados específicos, uma forma de comunicação diferente dos sistemas de escrita formais do ocidente, embora seja comparável à sua arte. Ainda que seu significado exato permaneça com frequência mal compreendido, especialmente nos documentos arqueológicos, esses sinais e formas visuais, às vezes arranjados em cenas narrativas ao lado de figuras de seres vivos, são documentos históricos importantes para a reconstituição de suas vidas. [[Pictograma]]s e [[gravura rupestre|gravuras rupestres]] que sobrevivem em sítios arqueológicos em todo o Brasil dão amplo testemunho de mentes capazes de criar mensagens complexas, em que se mesclam plasticidade e significados.<ref name="Bessa"/><ref name="Schmitz"/><ref name="Machado"/> Na descrição de Irene Machado, pesquisadora do [[CNPq]], "as inscrições rupestres.... constituem um legado capaz de desfazer equívocos e desvendar redes de possibilidades. Porque constroem sistemas de escrita por meio de signos notacionais, estão muito mais próximas da criação científica e artística do que da mera comunicação instrumental".<ref name="Machado">{{Harvnb|Machado|2010}}</ref> Grande parte deste acervo arqueológico já desapareceu ou está ameaçado pelo avanço da civilização, pelo desconhecimento do seu valor e pelo [[vandalismo]] premeditado.<ref name="Pozzi">{{Harvnb|Teixeira|Pozzi|Silva|2012}}</ref><ref>{{citar web|url=http://cienciahoje.uol.com.br/noticias/2013/08/obras-que-revelam|título=Obras que revelam|autor=Rocha, Mariana|data=07/08/2013|periódico=Ciência Hoje|wayb=20130825143843|urlmorta=sim}}</ref><ref>{{Harvnb|Silva|2012}}</ref>
Mesmo que muito já tenha sido perdido, a [[cultura material]] e [[cultura imaterial|imaterial]] dos povos indígenas brasileiros que sobrevive até o presente é riquíssima em conjunto
Mas não havia a figura do "[[artista]]"; todos eram hábeis em várias formas de arte. Uma dedicação especializada e exclusiva, típica da sociedade ocidental, era visto como sintoma de um desequilíbrio espiritual ou uma obsessão, pois as atividades vitais deviam ser distribuídas equilibradamente e a produção de objetos simbólicos, que compunham grande parte de sua cultura material, estava sob a influência de poderes espirituais, e devia ser restrita a ocasiões ritualizadas. O próprio processamento das matérias-primas usadas para a confecção dos artefatos era carregado de ritualidade e sujeito a leis precisas, que variavam entre cada tribo.<ref name="Velthem">{{Harvnb|Van Velthem|2007|pp=117-146}}</ref> Para os [[palicures]], por exemplo, as penas vermelhas das [[arara]]s são assentos de espíritos protetores, por isso usadas em adornos corpóreos, objetos e espaços a fim de afugentar influências malignas.<ref>{{Harvnb|Dorta|Cury|2000|p=174}}</ref> Entre os [[uaianas]], a tintura do [[arumã]] é a matéria-prima mais carregada de simbolismo, já que a constituição da planta é comparada à dos seres humanos.<ref name="Velthem"/> O grande [[Cocar (indígena)|cocar]] [[caiapós|caiapó]] chamado ''krokrok ti'' simboliza a própria aldeia. No centro vão penas azuis que representam a praça, o local masculino e público por excelência, em torno são enfileiradas penas vermelhas, simbolizando o mundo feminino e doméstico. Penugens brancas de acabamento representam a floresta.<ref>{{Harvnb|Vidal|Silva|1995|p=396}}</ref> Muitos povos e clãs desenvolveram uma série de padrões geométricos, transmitidos tradicionalmente em cestaria, cerâmica, pintura corporal e tecelagem, que se tornaram marca registrada de cada grupo, possuindo também significados e preservando conhecimentos matemáticos.<ref>{{Harvnb|Sufiatti|Bernardi|Duarte|2013|pp=67-98}}</ref>▼
▲Mas não havia a figura do "[[artista]]"; todos eram hábeis em várias formas de arte. Uma dedicação especializada e exclusiva, típica da sociedade ocidental, era visto como sintoma de um desequilíbrio espiritual ou uma obsessão, pois as atividades vitais deviam ser distribuídas equilibradamente e a produção de objetos simbólicos
A música tinha grande destaque entre as artes, sua origem era tida como divina, sendo recebida através de sonhos. Para eles o som tinha poderes mágicos, estando na base da estruturação do [[cosmos]] e sendo poderoso instrumento de intervenção deliberada no mundo físico, como por exemplo produzindo curas. Praticamente não se produzia música que não tivesse alguma associação com o sagrado, estando presente em toda parte, especialmente nos grandes festejos, quando era praticada coletivamente.<ref name="Salik"/><ref name="Prezia"/> As cantorias e declamações rituais, que recontavam histórias da tradição, descreviam sonhos proféticos, invocavam espíritos e produziam curas e visões, "cumprem também um papel fisiológico na própria constituição dos estados psíquicos, atualizando a experiência dos eventos míticos", como descreveu a antropóloga Deise Montardo.<ref name="Montardo"/> A música também incluía canções de amor e saudade, podendo ser impregnadas de intenso lirismo poético.<ref>{{citar web|url=https://pib.socioambiental.org/pt/Po%C3%A9ticas_ind%C3%ADgenas|título=Poéticas indígenas|autor=Cesarino, Pedro|website=Povos Indígenas no Brasil|publicado=Instituto Socioambiental}}</ref> [[José Miguel Wisnik]] analisou esta importância dizendo que "cantar em conjunto, afinar as vozes, significa entrar em acordo profundo e não visível sobre a intimidade da matéria", produzindo uma identificação e afirmação comunitária contra o mar de sons do mundo manifesto.<ref name="Salik"/> Segundo Adriane Salik,▼
▲A música tinha grande destaque entre as artes, sua origem era tida como divina, sendo recebida através de sonhos. Para eles o som tinha poderes mágicos, estando na base da estruturação do [[cosmos]] e sendo poderoso instrumento de intervenção deliberada no mundo físico, como por exemplo produzindo curas. Praticamente não se produzia música que não tivesse alguma associação com o sagrado, estando presente em toda parte
Por esses poucos exemplos se percebe a forte importância da arte em suas culturas. Contudo, é preciso advertir que eles não tinham um conceito de "[[arte]]" como o ocidental, considerando-a uma atividade autônoma; suas atividades criativas eram integradas às funções cotidianas e sua "arte" era em essência utilitária
=== Outros modelos de sociedade ===
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[[Imagem:Vaso-santarém.JPG|thumb|Cerâmica da cultura de Santarém, pré-cabralina. [[Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo]]]]
O modelo generalista de cultura acima descrito, que define tipicamente uma sociedade pré-histórica inteiramente silvícola e seminômade, é o que por muito tempo foi considerado o padrão comum a todas as culturas autóctones do território brasileiro. Nas últimas décadas, no entanto, uma série de pesquisas vem acumulando evidências de que este modelo não foi o único desenvolvido
Tornaram-se notórios, por exemplo, os casos das "pedras de moinho" de quase 5 m de diâmetro e perfeitamente circulares descritas na [[serra da Copaoba]], na Paraíba, pelo [[polímata]] [[Kaspar Barlaeus]]
Se uma parte desse folclore pode ser reflexos distantes e distorcidos de povos civilizados pré-cabralinos reais, deixados na memória coletiva de outros povos que depois os transmitiram aos brancos, a maior parte desses relatos é especulação, fantasia, fraude ou má interpretação de elementos naturais.<ref name="Civilização">{{Harvnb|Ferreira|1999}}</ref><ref name="Langer">{{citar web|url=http://www.revistadehistoria.com.br/secao/artigos/cacadores-da-lenda-perdida|título=Caçadores da lenda perdida|autor=Langer, Johnni|data=07/07/2008|website=Revista de História|wayb=20150924090528|urlmorta=sim}}</ref>
No entanto, nem tudo é engano e invenção, e evidências estudadas com metodologia científica atual apoiam antigas tradições orais, mostrando que de fato floresceram culturas material e tecnologicamente mais estruturadas no Brasil. A cerâmica das culturas Santarém e [[Marajoaras|Marajó]]
[[Menir]]es, [[dólmen]]s e alinhamentos de pedras apontando para a posição em que o Sol nasce no [[solstício]] do inverno foram descobertos
Mais relevantes são as centenas de [[geoglifo]]s que vêm sendo descobertos em toda a Bacia Amazônia depois do desenvolvimento recente de novas tecnologias para mapeamento aéreo e por satélite, incluindo áreas fora do Brasil, mas concentrados nos estados brasileiros do Acre, Rondônia e Amazonas, numa faixa com uma extensão de cerca de 1.800 km.<ref name="Communications">{{Harvnb|Souza|Schaan|Robinson|Barbosa|2018}}</ref><ref>{{citar web|url=http://www2.uol.com.br/sciam/reportagens/as_cidades_perdidas_da_amazonia.html|título=As cidades perdidas da Amazônia|autor=Heckenberger, Michael J.|data=Outubro de 2009|website=Scientific American Brasil|wayb=20091027103503|urlmorta=sim}}</ref> Os geoglifos são diferenças detectadas no nível do terreno, de grandes dimensões e formas geométricas regulares, que evidenciam a antiga existência de alterações feitas pelo homem na paisagem
As estruturas geoglíficas encontradas no Brasil são às vezes monumentais, indicando a existência de algumas sociedades muito avançadas. Tradições da região recolhidas no século XVIII diziam que estas áreas haviam sido densamente povoadas no passado. Escavações em diversos sítios têm trazido à luz cerâmicas
Até 2023, 961 sítios com geoglifos foram descobertos na Amazõnia, datados de c. 500 a c. 1500 d.C.,<ref name="Planck">{{citar web|url=https://www.shh.mpg.de/2358929/earthworks-amazonia|título=Amazonian Rainforest Hides Thousands of Records of Ancient Indigenous Communities Under Its Forest Canopy|data=05/10/2023|publicado=Max Planck Institute}}</ref> com um pico de ocupação nos sítios entre os anos de 1250 e 1500.<ref name="Communications"/> Nesta época podem ter vivido até 10 milhões de pessoas na Amazônia, e o desaparecimento dessas sociedades altamente organizadas foi atribuído à chegada dos europeus.<ref name="Esquer"/> Eles se distribuem por toda a Amazônia, mas de forma muito irregular, com áreas de alta concentração e outras (a grande maioria) onde nenhum foi achado.<ref name="Esquer"/> Segundo estimativa de Paripato et alii, pode-se esperar encontrar de 10 a 20 mil outros sítios semelhantes.<ref>{{Harvnb|Peripato|Levis|Moreira|Gamerman|2023|pp=103-109}}</ref
== Contato com os europeus e assimilação à sociedade brasileira ==
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