Povos indígenas do Brasil: diferenças entre revisões
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{{Info/Grupo étnico
| imagem = [[Imagem:Brazil_Native_Alone_in_2022.svg|300px]]
| população = 1 227 642<br /><small> segundo o Censo de 2022, aproximadamente 0,6% da população do [[Brasil]]<ref name="Tabela 9605">{{citar web|url=https://sidra.ibge.gov.br/tabela/9605#resultado|título=Tabela 9605 - População residente, por cor ou raça, nos Censos Demográficos|acessodata=2023-12-25|publicado=IBGE}}</ref>
|línguas= [[Línguas indígenas do Brasil|Línguas indígenas]] e [[Língua portuguesa|português]]. O número de línguas indígenas é incerto, variando conforme os critérios utilizados, mas pode chegar a cerca de 270.▼
| lugares = [[Região Norte do Brasil|Norte]], [[Região Nordeste do Brasil|Nordeste]] e [[Centro-Oeste]]
|religiões= Religiões tradicionais e [[cristianismo]]▼
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|relacionados= [[Povos ameríndios]]▼
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Os '''povos indígenas do Brasil''' compreendem um grande número de diferentes [[Grupo étnico|grupos étnicos]] que habitam o país desde milênios antes do início da [[Colonização do Brasil|colonização portuguesa]], que principiou no {{séc|XVI}}, fazendo parte do grupo maior dos [[povos ameríndios]]. No momento da [[Descoberta do Brasil|chegada dos portugueses ao Brasil]], os povos nativos eram compostos por povos
Os povos indígenas brasileiros deram contribuições significativas para a sociedade mundial, como a domesticação da [[mandioca]] e o aproveitamento de várias plantas nativas, como o [[milho]], a [[batata-doce]], a [[pimenta]], o [[caju]], o [[abacaxi]], o [[amendoim]], o [[mamão]], a [[abóbora]] e o [[feijão]]. Além disso, difundiram o uso da [[Rede de descanso|rede de dormir]] e o costume do [[banho]] diário, desconhecido pelos europeus do {{séc|XVI}}. Para a [[língua portuguesa]] legaram uma multidão de nomes de lugares, pessoas, plantas e animais (cerca de 20 mil palavras), e muitas de suas lendas foram incorporadas ao [[folclore brasileiro]], tornando-se conhecidas em todo o país. Também foram importantes aliados dos portugueses, mesmo que involuntários, na consolidação da conquista territorial, defendendo e fixando cada vez mais distantes fronteiras, e deram grande contribuição à composição da atual [[população do Brasil|população nacional]] através da [[mestiçagem]].
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== Definição ==
[[Imagem:AtlasMiller BNF Brasilis arcoyflecha.jpg|thumb|Uma das mais antigas representações europeias dos indígenas brasileiros, incluída no ''[[Atlas Miller]]'' de 1519]]
Na [[Idade Média]], a palavra "índio" era empregada para designar todas as pessoas do [[Extremo Oriente]]. Ao chegar às Américas, [[Cristóvão Colombo]] acreditou que havia encontrado um novo caminho para as [[Índias]] e chamou os nativos que encontrou de "índios".<ref>
== Origem ==
{{Artigo principal|Povos ameríndios|Povoamento das Américas|Arqueologia da América}}
[[Imagem:Journal.pone.0001596.g004.png|thumb|esquerda|Hipótese da colonização em três ondas migratórias]]
Todos os seres humanos
Os povos das [[Américas]] (ameríndios) são descendentes do grupo que seguiu para o leste e que povoou a Ásia. Sua penetração na América foi explicada por várias teorias, e atualmente a mais aceita diz que a passagem foi feita através do [[estreito de Bering]], em data ainda controversa, mas durante a [[Idade do Gelo]].<ref name="Fagundes"/> Naquele tempo, com o declínio da temperatura mundial, o gelo do mundo se expandiu, rebaixando o [[nível do mar]] e expondo terra seca entre a [[península de Chukotka]], no extremo nordeste da Ásia, e a [[península de Seward]], na [[América do Norte]], criando [[Beríngia|uma ligação transitável]] entre os dois pontos. Com o fim da Idade do Gelo o nível do mar subiu, inundando a ligação dos dois continentes, impedindo novas migrações e separando as populações que ficaram na Ásia das que migraram para a América. Como não havia alternativa, essas pessoas continuaram se deslocando, ao longo de milhares de anos, rumo ao sul, povoando a [[América Central]] e a [[América do Sul]].<ref name="ComCiencia"/><ref name="Fagundes"/><ref name="Bandeira"/>
O mapa à esquerda ilustra a hipótese da colonização em três ondas migratórias com populações de diferentes regiões da Ásia, o chamado "Modelo de Berígia", proposto por Greenberg ''et alii'', bastante aceito na comunidade científica, embora não consensual.<ref name="Reevaluation"/><ref name="Battaglia"/> Em marrom, o mapa atual; em ocre, a terra variavelmente exposta na [[glaciação]], e a área em branco é o gelo terrestre entre 36 e 16 mil anos AP. Antes de c. 43 mil anos AP os nômades chegaram ao extremo leste da Ásia. Entraram na [[Beríngia]] e ali teriam ficado até c. 16 mil anos AP, bloqueados pelo gelo de progredir mais para o leste. O gelo avançou e recuou várias vezes neste período glacial, fazendo variar o nível do mar e alternativamente vedando ou abrindo acessos a pé seco. Ali o mar era raso e a exposição máxima de terra seca ocorreu entre 23 e 19 mil anos, abrindo um [[istmo]] de mais de mil quilômetros de largura. A inundação final da passagem aconteceu entre 12 e 11,3 mil anos AP.<ref name="Reevaluation"/><ref name="Hoffecker">{{Harvnb|Hoffecker
[[Imagem:Sambaqui, MAE-USP (2).JPG|thumb|Corte [[estratigrafia|estratigráfico]] de um [[sambaqui]], comum em assentamentos litorâneos de toda a América, com ossadas e camadas de conchas e artefatos]]
Durante muito tempo se julgou que os primeiros humanos a se fixarem na América haviam sido os chamados [[cultura Clóvis|povos de Clóvis]], instalados no [[Novo México]], [[Estados Unidos]], cujos registros mais antigos, reavaliados recentemente, teriam c. 13-14,5 mil anos,<ref name="Reevaluation"/><ref name="Battaglia"/> e sugerem uma entrada na América um pouco anterior. Contudo, essa teoria tem sido desacreditada nas últimas décadas,<ref name="Lourdeau"/><ref>
=== Genética ===
[[Imagem:Guajajaras (mãe e filho).jpg|thumb|Mãe [[guajajara]] com seu filho]]
Os vários estudos genéticos que têm sido realizados nos últimos anos trouxeram resultados divergentes, e a origem dos povos ameríndios continua centro de acesa controvérsia. Embora haja crescente opinião de que a povoação americana pode ter se dado antes do que se tem por certo até agora, em torno de 15-13 mil anos AP,<ref name="Fagundes"/><ref name="Bandeira"/><ref name="Reevaluation"/> datas anteriores a 30 mil anos são consideradas muito improváveis. Tecnicamente falando, entretanto, se considerarmos a metade oriental da antiga Beríngia como parte da América — sendo efetivamente agora o [[Alasca]] — o ser humano poderia ter posto seu pé no que hoje é América desde o início deste limite cronológico máximo, e, com mais possibilidade, em torno de 20 mil anos AP.<ref name="Goebel1"/><ref>{{Harvnb|Erlandson
De acordo com um estudo de 2007 (Tamm ''et alii''), focado no [[DNA mitocondrial]] (aquele que é herdado pela linhagem materna, e o mais usado nas pesquisas sobre evolução humana),<ref name="Reevaluation"/> revelou que os nativos do continente americano têm sua ancestralidade materna traçada a um pequeno número de linhagens do leste asiático. De acordo com o estudo, é provável que os antepassados dos ameríndios tenham ficado por um tempo considerável no istmo da [[Beríngia]], isolados pelo gelo de progredir para o leste, cujo derretimento posterior teria permitido uma rápida migração para o sul.<ref name="Tamm">{{Harvnb|Tamm
Um estudo genético autossômico de 2015 deu apoio à teoria da origem siberiana dos ameríndios através de uma única onda migratória, porém tendo sido detectada uma ancestralidade antiga compartilhada com os nativos da Austrália e Melanésia, ainda identificável em indígenas da região Amazônica. A migração teria acontecido não antes de 23 mil anos AP, e o isolamento na Beríngia não teria durado mais de 8 mil anos. Foi apontado também que em torno de 13 mil anos AP teriam se formado duas linhagens genéticas principais, uma espalhada por todo o continente, e outra restrita à América do Norte.<ref>{{Harvnb|Raghavan
De acordo com um estudo genético de 2016, uma pequena população teria adentrado as Américas, seguindo a costa, por volta de 16 mil anos atrás, após um período anterior de isolamento no leste da Beríngia de 2,4 a 9 mil anos antes da separação de populações do leste da Sibéria. Seguindo um rápido movimento através das Américas, um fluxo genético limitado na América do Sul resultou em uma estrutura genética bem marcada, a qual persistiu durante o tempo. Todas as linhagens mitocondriais presentes no estudo estão ausentes dos descendentes de indígenas modernos, sugerindo uma alta taxa de extinção: aplicada uma análise, verificou-se que a colonização europeia causou uma perda substancial de linhagens pré-colombianas.<ref>
A arqueologia e a genética também não se acham em perfeita concordância, de modo que a polêmica persiste. O material genético de referência disponível é limitado e divergente, enfraquecendo as conclusões possíveis.<ref name="Fagundes"/><ref name="Bandeira"/><ref name="Reevaluation"/><ref name="Battaglia">{{Harvnb|Battaglia
=== Ocupação do Brasil ===
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[[Imagem:Crânio de Luzia.jpg|miniatura|left|O [[crânio]] de Luzia exposto no [[Museu Nacional (Brasil)|Museu Nacional do Brasil]].]]
A forma de ocupação do atual território brasileiro, como se pode deduzir, é igualmente incerta. No sítio da [[Lapa Vermelha]], na região arqueológica de [[Lagoa Santa (Minas Gerais)|Lagoa Santa]], em [[Minas Gerais]], foi encontrado um [[cemitério]] datado em pouco mais de 10 mil anos, estudado primeiramente por [[Peter Lund]] no {{séc|XIX}}. Muitas outras pesquisas se sucederam. [[Annette Laming-Emperaire]], na década de 1970, encontrou ali o [[fóssil]] batizado de [[Luzia (fóssil)|Luzia]].<ref name="Sheila"/><ref name="Pivetta"/> Parte de uma população conhecida como [[Homem de Lagoa Santa|povo de Lagoa Santa]], Luzia foi tida como a mais antiga brasileira já encontrada, com idade estimada por Feathers ''et alii'', a partir de evidências indiretas, em até 16,4 mil anos,<ref>{{Harvnb|Feathers
[[File:SERRA DA CAPIVARA05 b crânio humano.jpg|thumb|Crânio escavado no sítio da Pedra Furada.]]
Na Pedra Furada, como foi dito, as datações podem chegar a 50 mil anos AP, e quatro outros sítios na área foram datados com 18 a 14 mil anos AP.<ref name="Lourdeau"/> Achados em [[São Raimundo Nonato]], no [[Piauí]], dão cronologias que se estendem a até 48 mil anos antes do presente, e especula-se que camadas inferiores já identificadas mas ainda não exploradas poderiam revelar fósseis de até 60 mil anos. O extremo sul do Brasil parece ter sido atingido primeiro pelos [[Tradição Umbu|povos umbu]], que deixaram registros datados com 12,7 mil anos de idade. Mas essas datações também têm sido questionadas.<ref name="Fagundes"/><ref name="Bandeira"/><ref name="Sheila">{{Harvnb|Souza
O Brasil, ao ser formado pela migração de ameríndios, africanos e europeus (a partir do século XVI) e asiáticos (a partir do século XX) tornou-se um ponto de "reencontro" dessas pessoas que, apesar de terem a mesma origem ancestral, ficaram separadas durante milênios devido às migrações para diferentes partes do mundo. Esses milênios de separação criaram diferenças culturais, linguísticas e fenotípicas, em decorrência da adaptação de cada grupo a meios ambientais completamente diferentes. Apesar dessas diferenças serem muitas vezes interpretadas como formadoras de "raças" humanas diferentes, do ponto de vista genético o conceito de raça é infundado.<ref name="Pena">{{Harvnb|Pena
== As sociedades tradicionais ==
{{Artigo principal|Cultura indígena do Brasil|Arte indígena brasileira|Jogos dos Povos Indígenas|Línguas indígenas do Brasil|Música indígena brasileira|Arte plumária dos índios brasileiros|Mitologia guarani}}
=== Diversidade e unidade ===
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[[File:Zoólito em forma de peixe - Sambaqui de Santa Catarina MN 01.jpg|thumb|Peça de pedra polida em forma de peixe da cultura [[Sambaqui]]]]
Como base do entendimento sobre a cultura indígena é preciso saber que não há uma cultura indígena unificada. Cada povo ao longo de milênios desenvolveu modos próprios de compreender e de se relacionar com o mundo, que se expressam em tradições religiosas, artesanato, músicas, hábitos sociais e festejos peculiares, entre outros aspectos, e entrar em detalhes sobre cada [[etnia]] e cada grupo seria impossível no escopo deste artigo.<ref>{{Harvnb|Coelho
As descrições quinhentistas e seiscentistas sobre o modo de vida dos indígenas brasileiros foram feitas pelos colonizadores, seus relatos tratam em geral dos povos [[tupis]], e são limitados em muitos aspectos. Sendo culturas que nunca haviam entrado em contato, houve muita incompreensão e imprecisão de parte dos primeiros observadores.<ref name="Fernandes1">{{Harvnb|Fernandes
O Portal Brasil, com dados do Censo de 2010, indica que ainda vivem no país mais de 300 etnias, que falam mais de 270 línguas, mas esses números variam conforme os critérios utilizados.<ref name="pop">
=== Organização da aldeia e sustento ===
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[[Imagem:Beiju de folha; beiju molhado.JPG|thumb|esquerda|Beiju servido sobre folhas de bananeira]]
As comunidades viviam em [[tribo]]s, uma entidade organizacional complexa composta de várias aldeias ligadas por parentesco e por interesses comuns. Cada aldeia consistia de um grupo de habitações coletivas, as chamadas [[oca]]s ou malocas, dispostas em relação a uma praça que podia ser o centro ou não, e que era destinada a atividades comunitárias como celebrações, rituais, assembleias e outras. No centro da praça podia haver uma oca destinada a atividades exclusivamente masculinas. Em cada habitação moravam muitos casais com suas famílias, podendo abrigar de 50 a 200 indivíduos, e em muitos casos, bem mais. As ocas eram construídas com um arcabouço de madeira inteiramente fechado com palha, deixando de uma a três aberturas para circulação.<ref name="Fernandes1"/> Em geral eram estruturas alongadas e altas, mas podiam assumir variadas formas e tamanhos, e algumas tribos, como os [[marubo]] e os [[ianomâmis]], construíam apenas uma, onde residiam todas as pessoas da aldeia.<ref>
A maior parte da vida familiar se desenvolvia no interior das ocas, que possuíam divisões internas mínimas ou nenhuma. Com esta conformação, nada podia ser segredo para ninguém e tudo era feito à vista de todos, inclusive o intercurso sexual dos casais. À noite acendiam fogueiras e dormiam em redes. Uma descrição de [[Pero de Magalhães Gândavo]], corroborada por outros cronistas, assim mostra o cotidiano no interior das habitações: "Em cada casa vivem todos muito conformes, sem haver nunca entre eles nenhumas diferenças: antes são todos amigos uns dos outros, que o que é de um é todos, e sempre de qualquer coisa que um coma, por pequena que seja, todos os circunstantes hão de participar dela". [[Jean de Léry]] relatou que "mostram os selvagens sua caridade natural presenteando-se diariamente uns aos outros com veações, peixes, frutas e outros bens do país, e prezam de tal forma essa virtude que morreriam de vergonha se vissem o vizinho sofrer falta do que possuem". [[Florestan Fernandes]] acrescentou: "O mesmo padrão básico de cooperação vicinal aplicava-se às relações dos membros das malocas que faziam parte de um grupo social. Os produtos da caça, da pesca, da coleta e das atividades agrícolas pertenciam à parentela que os conseguisse".<ref name="Fernandes1"/>
Quando a aldeia ficava próxima de inimigos, era cercada por [[paliçada]]s de troncos de árvores. Entre as paliçadas eram cavados fossos disfarçados com ramos e folhas, e, no fundo, eram fincadas estacas pontiagudas. Algumas tribos, como os [[aimorés]], não construíam aldeias. Simplesmente limpavam uma área e dormiam debaixo das árvores, mantendo, à noite, fogueiras acesas.<ref name=referenciaum>{{Harvnb|Salvador
Viviam da caça, da pesca e da [[agricultura de subsistência]], mudando periodicamente a instalação das aldeias conforme o declínio dos [[recursos naturais]] disponíveis no entorno. O abandono de áreas exploradas possibilitava sua recuperação natural.<ref name="Schmitz
Tinham amplo conhecimento da produção de bebidas fermentadas a partir de tubérculos, raízes, folhas, sementes e frutos como o milho, mandioca, batata-doce, buriti, caju, amendoim, banana, ananás.<ref>{{Harvnb|Cavalcante
=== Estrutura social e familiar ===
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[[Imagem:Eduardo Jun 1999 1.jpg|thumb|Índia [[ianomâmis|ianomâmi]] em sua rede tecendo uma cesta, tendo ao regaço seu filho pequeno]]
Suas sociedades eram comunais, sem [[propriedade privada]] em larga escala, bastante igualitárias e descentralizadas, ainda que [[Estratificação social|estratificadas]], com papéis sociais nítidos e excludentes, com divisão de trabalho e ''status'' em moldes tradicionais, embora algumas culturas fossem bastante livres neste aspecto, permitindo grandes intercâmbios de funções. Lideranças ou outras funções de prestígio às vezes eram transmitidas em caráter hereditário,<ref name="Schmitz
Os homens cuidavam da guerra, da caça, da pesca, da liderança tribal e relações externas, da construção das estruturas físicas da aldeia, das canoas e armas, de certos tipos de arte e ornamentos corporais, da produção do fogo, dos ritos [[xamã|xamânicos]] (que incluíam práticas medicinais) e da derrubada das matas para as lavouras. Às mulheres cabia o plantio, a colheita, o preparo de alimentos, a fabricação de utensílios domésticos, tecidos e adornos, a preservação do fogo, a limpeza e organização das ocas, a criação de animais, o cuidado inicial da prole e dos mais velhos, e colaboravam na caça e na pesca coletando os animais. Sua sociedade impunha um pesado fardo às mulheres em múltiplos trabalhos, alguns muito pesados, mas delas dependia parte essencial do sustento da tribo e desempenhavam um papel fundamental na localização do homem no tecido social e na preservação do seu conforto pessoal, a ponto de o padre [[José de Anchieta]] dizer que se um homem não tivesse mulher era um pobre coitado. A educação das crianças era compartilhada por todos os habitantes da aldeia, e estimulava-se a autonomia. Certas atividades podiam ser discriminadas por idade. Não havia [[escravidão]] para obtenção de mão de obra, embora fizessem prisioneiros de guerra. Para trabalhos de grande vulto o sistema do mutirão era a prática usual.<ref name="Fernandes1"/><ref name="Schmitz"/
A família podia ser [[Monogamia|monogâmica]] ou [[Poligamia|poligâmica]], com predomínio da [[poliginia]]. O casamento não era uma ligação perene nem muito sólida, o [[divórcio]] era frequente e fácil, e os maridos podiam usar as mulheres como moeda de troca. O relacionamento entre as várias esposas de um mesmo homem podia gerar atritos e ciúmes, especialmente se havia uma predileta, mas em geral era cordial e respeitoso. Em muitas tribos o casamento era um complexo [[rito de passagem]] que exigia o sacrifício de um prisioneiro de guerra, quando o homem trocava de nome e podia então constituir família.<ref name="Fernandes1"/> Havia muitas uniões consanguíneas, fortalecendo a unidade dos clãs e as redes de reciprocidade que asseguravam a manutenção da ordem e da vida comunitária em larga escala.<ref name="Fernandes1"/><ref name="Schmitz"/><ref name="Colaço"/> Maus tratos de homens sobre esposas e filhos eram comuns e aceitos socialmente, entendidos como assunto privado; em muitas tribos pais e mães tinham direito de vida e morte sobre seus dependentes.<ref name="Colaço">{{Harvnb|Colaço
=== Tradições, crenças, conhecimentos e valores ===
[[Imagem:Burian urn, AD 1000-1250, Marajoara culture - AMNH - DSC06177 b.jpg|thumb|Urna funerária marajoara, [[Museu Americano de História Natural]]]]
A vida de cada indivíduo era programada em linhas gerais desde antes do nascimento pela estrutura tradicional e relativamente fixa de suas culturas, com normas sociais mantidas sem grande modificação desde tempos imemoriais. Muitas sociedades eram profundamente ritualizadas, desenrolando o tecido de suas vidas ao comando de [[mito]]s e crenças diversas, que cercavam certas atividades de [[tabu]]s invioláveis e davam instruções para muitos atos cotidianos.<ref name="Rituais">
Pouco se sabe sobre suas antigas crenças religiosas senão através de interpretações distorcidas transmitidas pelos colonizadores, para os quais nos primeiros tempos parecia que não possuíam nenhuma ideia de [[Deus]].<ref name="Rituais"/><ref name="Trein">{{Harvnb|Trein
[[Imagem:Xamã guarani.jpg|thumb|esquerda|170px|Pajé guarani]]
[[Imagem:Kuhnert, Wilhelm. Tetenfeier der Bororó-Indianer (Zentralbrasilien).jpeg|170px|esquerda|thumb|Funeral dos [[bororos]], registrado por [[Wilhelm Kuhnert]] (1865–1926)]]
Vários animais, plantas, seres mitológicos e a própria Terra e seus elementos em todas as culturas foram variavelmente deificados ([[animismo]]), ou sacralizados, ou personificados, e em muitas comunidades cultivava-se uma identificação [[panteísta]] de um poder divino insondável com a Natureza e os homens. Para eles o mundo visível era apenas um de muitos mundos paralelos, que em certos aspectos ou momentos podiam se tornar intercomunicantes.<ref name="Aracy"/><ref name="Cesarino">
Diversas de suas lendas se tornaram populares entre não-indígenas, enriquecendo os [[folclore]]s regionais, como as lendas do [[Lenda do boto|Boto]], da [[Boitatá]], da [[Iara]], do [[Irapuru (lenda)|Uirapuru]] e do Curupira,<ref>{{Harvnb|Coelho
::"[...] a reflexão sobre oposições, tais como a de natureza/cultura; vida/morte; homem/mulher; particular/geral; identidade/alteridade. As mitologias e as cosmologias indígenas tratam, portanto, de temas com que se preocupam todos os homens, com menor ou maior grau de elaboração, expressão ou consciência. São temas que remetem à essência do que significa ser humano e estar no mundo. Por isto mesmo, apesar do estranhamento inicial trazido por signos desconhecidos - que carregam concepções inesperadas, articuladas a teorias cuja tradução escapa à primeira aproximação - a comunicação é possível e se dá não só na pesquisa e na divulgação, como também fascina e desafia".<ref name="Aracy"/>
[[Imagem:Serra da Capivara - Tree Ritual 2.jpg|thumb|[[Pictograma]] na [[Serra da Capivara]] mostrando um ritual envolvendo uma árvore]]
Desenvolveram vários conhecimentos astronômicos e científicos, associando observações dos astros e do [[meio ambiente]] aos ciclos de vida da comunidade e às suas crenças religiosas, mas muito pouco se sabe sobre isso. Na descrição do
Muitas etnias mantinham costumes que chocaram os colonizadores, como o [[canibalismo]], o [[incesto]], o [[infanticídio]] [[neonatal]] e a [[feitiçaria]], embora deva-se assinalar que estavam inseridos em um contexto cultural coerente,<ref name="Schmitz"/><ref>
[[File:Theodor de Bry - Staden, Duas Viagens ao Brasil, 1557.jpg|thumb|Uma guerra naval em gravura de [[Theodor de Bry]]]]
[[Imagem:Festa do Kuarup dança em torno do tronco.jpg|thumb|Dança coletiva em torno dos troncos que representam os mortos homenageados no ''Quarup'', um dos mais importantes festejos intergrupais da região do [[Parque Indígena do Xingu|Xingu]]]]
A guerra era frequente e muitas vezes ritualizada. Podia atender à necessidade de resolver rivalidades e delimitar poder entre as tribos, mas suas principais motivações eram a vingança de ofensas e a captura de prisioneiros destinados ao sacrifício por ocasião do matrimônio dos guerreiros. Até a chegada do colonizador parecem ter sido muito raras as guerras de conquista, não conheciam o cavalo nem armas de fogo ou equipamentos bélicos sofisticados, e suas armas principais eram o tacape, o arco e a flecha, pedras de arremesso, a lança e o escudo, instrumentos típicos do combate corpo-a-corpo, não desprezavam o uso de golpes com mãos nuas, arranhamentos com as unhas e mordidas, e eram hábeis na guerrilha, no combate naval e na emboscada. Matar muitos inimigos e fazer prisioneiros acrescentava grande prestígio e fazia parte do seu sistema de afirmação da masculinidade. Os prisioneiros de guerra não precisavam ficar confinados porque a fuga representaria grande vergonha e desonra. Eram tratados familiarmente como se fossem membros da aldeia, e eram bem alimentados e cuidados até o momento de serem mortos.<ref name="Fernandes1"/><ref name="Colaço"/><ref name="Moreau, pp. 153-159"/> [[José de Anchieta]] testemunhou: "Naturalmente são inclinados a matar, mas não são cruéis; porque ordinariamente não dão nenhum tormento aos inimigos, porque se os não matam nos conflitos da guerra, depois tratam-nos muito bem, e contentam-se com lhes quebrar a cabeça com um pau, que é morte muito fácil. [...] Se de alguma crueldade usam, ainda que raramente, é com o exemplo dos portugueses e franceses". Apesar dos conflitos frequentes, os relatos de carnificinas extensas intertribais só aparecem depois de avançar a conquista portuguesa, quando mudam todas as relações de poder, as guerras para conquista e escravização se tornam habituais e se formam e caem em sucessão poderosos cacicados.<ref name="Moreau, pp. 153-159">{{Harvnb|Moreau
Também se registram narrativas sobre intensos afetos familiares e sua predisposição a atividades artísticas e festejos,<ref name="Schmitz"/><ref name="Junqueira"/><ref>{{Harvnb|Sevcenko
Muitas vezes cobriam seus corpos com variada ornamentação de plumas, fibras e outros materiais naturais, especialmente em ocasiões de festejo ou cerimônia, mas a nudez era corriqueira e não causava nenhuma vergonha. Mas vivendo na floresta, cheia de animais agressivos e obstáculos físicos, muitas tribos usavam no cotidiano [[tapa-sexo]]s,
Por outro lado, tinham suas próprias convenções restritivas que, se violadas, acarretavam vergonha, [[ostracismo]] ou outras sanções severas que iam de castigos físicos até o [[banimento]] ou a [[pena de morte]]. Alguns exemplos são ilustrativos: Xamãs suspeitos de praticar feitiçaria contra membros de sua tribo podiam ser executados;<ref name="Colaço"/><ref name="Ventura"/> se um homem se mostrasse covarde era rejeitado pelas esposas; revelação de segredos de [[iniciação]] podia significar a morte,<ref name="Colaço"/> e em algumas tribos se mulheres profanassem a Casa das Flautas, reservada apenas aos homens, sua lei exigia que fossem punidas com um [[estupro]] coletivo.<ref
==== Relação com o ambiente e a terra ====
[[Imagem:Índios à beira de um rio 2.jpg|thumb|Família em atividades à beira de um rio]]
Em muitos aspectos de sua vida a Natureza se fazia presente, e de fato, como se viu, sua sobrevivência dependia dela em regime diário.<ref name="Schmitz"/><ref name="Core Writing Team 2005, p. 127">{{Harvnb|Core Writing Team
Sua sobrevivência também é ameaçada porque muitos animais e plantas que lhes eram importantes de várias maneiras estão desaparecendo, e a legislação nacional proíbe a predação e captura de [[espécies nativas]]. Para os indígenas se abre exceção, desde que o uso se destine à alimentação e a funções tradicionais, mas isso impede que usem produtos naturais, como penas de aves, em artesanato com objetivo comercial, que para muitas tribos já é importante fonte de renda.<ref name="Tiriba">{{Harvnb|Tiriba
==== Cultura e arte ====
[[Imagem:SouthAmerican families 02.png|thumb|direita|Mapa etnográfico da América do Sul, apresentando as principais [[Línguas indígenas do Brasil|famílias linguísticas]]]]
Como já foi mencionado, originalmente a educação nas comunidades era dada de maneira coletiva e tradicional, em grande parte baseada na [[oralidade]], já que nenhuma das sociedades indígenas brasileiras possuiu [[sistemas de escrita]] conhecidos. Calcula-se que antes de Cabral eram faladas cerca de 1 300 línguas nativas. Hoje seu número é muito menor. Não se sabe exatamente qual seja, devido à variação nos critérios utilizados, mas pode ainda haver cerca de 270 línguas vivas. O número oficial do IBGE é de 274. Muitas, porém, estão em rápido declínio, com apenas poucos falantes. Poucas foram estudadas em profundidade, apenas 9% delas tem descrição completa, com [[gramática]], coletânea de textos e [[dicionário]]. Elas se dividem em dois grandes [[tronco linguístico|troncos linguísticos]], o [[Tronco tupi|tupi]] e o [[macro-jê]]. No primeiro se incluem, por exemplo, as línguas [[Línguas tupis-guaranis|tupi-guarani]],
[[Imagem:Serra da Capivara - Several Paintings 2b.jpg|thumb|esquerda|[[Pinturas rupestres]] no [[Parque Nacional Serra da Capivara]], declarado [[Patrimônio Mundial]] pela [[Unesco]] em vista de sua importância arqueológica, possuindo 912 sítios identificados e 657 com pinturas e gravuras.<ref>
[[Imagem:Wayana-Aparai costumes and baskets - Memorial dos Povos Indígenas - Brasilia - DSC00511.JPG|thumb|esquerda|Vestes cerimoniais e cestaria dos [[aparai]]. [[Memorial dos Povos Indígenas]]]]
[[Imagem:Tiriyó-Kaxuyana beadwork - Memorial dos Povos Indígenas - Brasilia - DSC00533.JPG|thumb|esquerda|Têxtil com padronagem geométrica típica dos [[tiriós]]-[[caxuianas]]. Memorial dos Povos Indígenas]]
Apesar da ausência de sistemas de escrita, muitos grupos desenvolveram uma rica diversidade de sinais e outras formas gráficas, de variado grau de complexidade, repetidas através de gerações e que, sabe-se, eram portadoras de significados específicos, uma forma de comunicação diferente dos sistemas de escrita formais do ocidente, embora seja comparável à sua arte. Ainda que seu significado exato permaneça com frequência mal compreendido, especialmente nos documentos arqueológicos, esses sinais e formas visuais, às vezes arranjados em cenas narrativas ao lado de figuras de seres vivos, são documentos históricos importantes para a reconstituição de suas vidas. [[Pictograma]]s e [[gravura rupestre|gravuras rupestres]] que sobrevivem em sítios arqueológicos em todo o Brasil dão amplo testemunho de mentes capazes de criar mensagens complexas, em que se mesclam plasticidade e significados.<ref name="Bessa"/><ref name="Schmitz"/><ref name="Machado"/> Na descrição de Irene Machado, pesquisadora do [[CNPq]], "as inscrições rupestres.... constituem um legado capaz de desfazer equívocos e desvendar redes de possibilidades. Porque constroem sistemas de escrita por meio de signos notacionais, estão muito mais próximas da criação científica e artística do que da mera comunicação instrumental".<ref name="Machado">{{Harvnb|Machado
Mesmo que muito já tenha sido perdido, a [[cultura material]] e [[cultura imaterial|imaterial]] dos povos indígenas brasileiros que sobrevive até o presente é riquíssima em conjunto, embora possa variar muito entre os casos individuais. Algumas culturas se caracterizam pela grande fartura de apetrechos e objetos decorados, organizam ritos suntuosos, apreciam generosa pintura corporal; outras são mais adeptas da simplicidade visual, mas podem desenvolver por exemplo grandes habilidades musicais, ter substantiva tradição oral e falar linguagens sutis e sofisticadas. Entre as especialidades que cultivaram se destacam a [[música indígena brasileira|música]], a [[dança]], a [[cerâmica]], a [[tecelagem]], a [[cestaria]], a [[pintura corporal]] e a [[arte plumária dos índios brasileiros|arte plumária]]. Essa produção tinha papel central na vida das tribos, sendo o veículo de ideias, conceitos religiosos e símbolos coletivos, além de servir como expressão de beleza e habilidade. De fato, os melhores criadores eram prestigiados.
Mas não havia a figura do "[[artista]]"; todos eram hábeis em várias formas de arte. Uma dedicação especializada e exclusiva, típica da sociedade ocidental, era visto como sintoma de um desequilíbrio espiritual ou uma obsessão, pois as atividades vitais deviam ser distribuídas equilibradamente e a produção de objetos simbólicos, que compunham grande parte de sua cultura material, estava sob a influência de poderes espirituais, e devia ser restrita a ocasiões ritualizadas. O próprio processamento das matérias-primas usadas para a confecção dos artefatos era carregado de ritualidade e sujeito a leis precisas, que variavam entre cada tribo.<ref name="Velthem">{{Harvnb|Van Velthem
[[Imagem:Enawene-nawe 1257a.JPG|thumb|[[Enáuenês-nauês|Enáuenê-nauê]] tocando um instrumento de sopro e ostentando completa ornamentação corporal]]
A música tinha grande destaque entre as artes, sua origem era tida como divina, sendo recebida através de sonhos. Para eles o som tinha poderes mágicos, estando na base da estruturação do [[cosmos]] e sendo poderoso instrumento de intervenção deliberada no mundo físico, como por exemplo produzindo curas. Praticamente não se produzia música que não tivesse alguma associação com o sagrado, estando presente em toda parte, especialmente nos grandes festejos, quando era praticada coletivamente.<ref name="Salik"/><ref name="Prezia"/> As cantorias e declamações rituais, que recontavam histórias da tradição, descreviam sonhos proféticos, invocavam espíritos e produziam curas e visões, "cumprem também um papel fisiológico na própria constituição dos estados psíquicos, atualizando a experiência dos eventos míticos", como descreveu a antropóloga Deise Montardo.<ref
::"Nos mitos estavam refletidas questões da origem do seu povo, modo de proceder na vida e sentido de existência, as quais estão intrinsecamente relacionadas com as sonoridades musicais. É a música que estabelece a conexão mito e cosmologia com as artes do corpo: a dança, a plumária e a ornamentação, sendo portadora de sentido, estabelecendo, por conseguinte, uma ponte entre mito e rito.... funcionando como uma 'máquina de transformar verbo em corpo' como diz Menezes Bastos".<ref name="Salik">{{Harvnb|Salik
Por esses poucos exemplos se percebe a forte importância da arte em suas culturas. Contudo, é preciso advertir que eles não tinham um conceito de "[[arte]]" como o ocidental, considerando-a uma atividade autônoma; suas atividades criativas eram integradas às funções cotidianas e sua "arte" era em essência utilitária, em grande medida se confundindo com o [[artesanato]] [[folclore|folclórico]] pelas suas características tradicionalistas, passadas de geração em geração.<ref name="Com Ciência"/><ref name="Hamada">{{Harvnb|Hamada
=== Outros modelos de sociedade ===
[[Imagem:Cerâmica Tupi-Guarani 5.jpg|thumb|Cerâmica [[Línguas tupis-guaranis|tupi-guarani]] pré-cabralina, mostrando o típico modelo despojado predominante no Brasil indígena. [[Museu da UFRGS]]]]
[[Imagem:Vaso-santarém.JPG|thumb|Cerâmica da
Tornaram-se notórios, por exemplo, os casos das "pedras de moinho" de quase 5 m de diâmetro e perfeitamente circulares descritas na [[serra da Copaoba]], na Paraíba, pelo [[polímata]] [[Kaspar Barlaeus]], da corte do conquistador [[Maurício de Nassau]]; o do "[[menir]]" instalado sobre uma enorme pedra esférica descrito no {{séc|XIX}} por
[[File:
[[File:2007-08-31 Parque Arqueológico do Solstício.jpg|thumb|left|Megálitos no [[Parque Arqueológico do Solstício]].]]
Se uma parte desse folclore pode ser reflexos distantes e distorcidos de povos civilizados pré-cabralinos reais, deixados na memória coletiva de outros povos que depois os transmitiram aos brancos, a maior parte desses relatos é especulação, fantasia, fraude ou má interpretação de elementos naturais.<ref name="Civilização">{{Harvnb|Ferreira
No entanto, nem tudo é engano e invenção, e evidências estudadas com metodologia científica atual apoiam antigas tradições orais, mostrando que de fato floresceram culturas material e tecnologicamente mais estruturadas no Brasil. A cerâmica das culturas Santarém e [[Marajoaras|Marajó]], conhecida e apreciada há bastante tempo, é significativamente mais complexa e tecnicamente avançada do que a da vasta maioria dos outros povos brasileiros, parecendo relacionar-se à de culturas urbanizadas da [[Mesoamérica]] e da costa sul-americana do Pacífico, embora pouco se saiba sobre suas sociedades.<ref>{{Harvnb|Schaan|2006|pp=99-117}}</ref><ref>{{citar web|url=http://www.museunacional.ufrj.br/exposicoes/arqueologia/exposicao/cultura-santarem|título=Cultura Santarém|ano=2013|publicado=Museu Nacional|wayb=20131218145018|urlmorta=sim}}</ref><ref>{{Harvnb|Correa|1965|pp=3-21}}</ref>
[[Menir]]es, [[dólmen]]s e alinhamentos de pedras apontando para a posição em que o Sol nasce no [[solstício]] do inverno foram descobertos em Roraima, Goiás, Maranhão e Piauí, Paraná e Santa Catarina.<ref name="Galdino">{{Harvnb|Galdino|2011|pp=43-45}}</ref> Tornaram-se bem conhecidos os [[megálito]]s do [[Parque Arqueológico do Solstício]] no município de [[Calçoene]], no [[Amapá]], datados com cerca de 2 mil anos que, se presume, eram utilizados para observações astronômicas.<ref>{{citar web|url=http://www.ufrgs.br/nuparq/news/randolfe-vai-atuar-para-potencializar-turismo-em-sitios-arqueologicos|título=Randolfe vai atuar para potencializar turismo em sítios arqueológicos|autor=Corrêa Márcia|publicado=Núcleo de Pesquisa Arqueológica da UFRGS|wayb=20131215022226|urlmorta=sim}}</ref>
Mais relevantes são as centenas de [[geoglifo]]s que vêm sendo descobertos em toda a Bacia Amazônia depois do desenvolvimento recente de novas tecnologias para mapeamento aéreo e por satélite, incluindo áreas fora do Brasil, mas concentrados nos estados brasileiros do Acre, Rondônia e Amazonas, numa faixa com uma extensão de cerca de 1.800 km.<ref name="Communications">{{Harvnb|Souza|Schaan|Robinson|Barbosa|2018}}</ref><ref>{{citar web|url=http://www2.uol.com.br/sciam/reportagens/as_cidades_perdidas_da_amazonia.html|título=As cidades perdidas da Amazônia|autor=Heckenberger, Michael J.|data=Outubro de 2009|website=Scientific American Brasil|wayb=20091027103503|urlmorta=sim}}</ref> Os geoglifos são diferenças detectadas no nível do terreno, de grandes dimensões e formas geométricas regulares, que evidenciam a antiga existência de alterações feitas pelo homem na paisagem através de obras de terraplenagem, escavação ou construção, constituindo vestígios de estruturas como canais, diques, estradas, cultivos agrícolas organizados, arruamentos, alicerces de edifícios urbanos, cemitérios, santuários, etc.<ref name="Communications"/><ref>{{Harvnb|Schaan|Martti|Ranzi|Piccoli|2007|p=67-82}}</ref>
As estruturas geoglíficas encontradas no Brasil são às vezes monumentais, indicando a existência de algumas sociedades muito avançadas. Tradições da região recolhidas no século XVIII diziam que estas áreas haviam sido densamente povoadas no passado. Escavações em diversos sítios têm trazido à luz cerâmicas, ex-votos e outros artefatos com acentuada diversificação estilística de lugar para lugar, o que aponta para povos que tinham uma tradição construtiva em comum mas haviam desenvolvido identidades separadas. Este campo de pesquisa é recente e ainda há pouca informação sobre o funcionamento detalhado dessas sociedades, mas segundo Souza et alii, pela quantidade e amplitude das obras pode-se pensar em sociedades organizadas em nível regional e não somente local, muito estruturadas, hierarquizadas e estáveis, com alta densidade populacional. Grandes construtores, com capacidade de planejamento a longo prazo, viviam em grandes vilas fortificadas com paliçadas e fossos, situadas sobre montes artificiais, às vezes com vários círculos concêntricos de defesas, interligadas por uma rede de estradas. Sua estrutura básica geralmente reflete os atuais aldeamentos indígenas do Xingu, mas em uma escala muito ampliada.<ref name="Communications"/> Alguns desses povos aparentemente viviam principalmente da agricultura, e outros viviam principalmente do manejo planejado dos recursos florestais nativos combinado ao cultivo de espécies arbóreas selecionadas. Há evidências de extensa e duradoura domesticação do ambiente nas áreas com geoglifos.<ref name="Esquer">{{citar web|url=https://news.mongabay.com/2023/12/ancient-amazon-earthwork-findings-spotlight-indigenous-land-struggles-today/|título=Ancient Amazon earthwork findings spotlight Indigenous land struggles today|autor=Esquer, Michael|data=01/12/2023|website=Mongabay}}</ref>
Até 2023, 961 sítios com geoglifos foram descobertos na Amazõnia, datados de c. 500 a c. 1500 d.C.,<ref name="Planck">{{citar web|url=https://www.shh.mpg.de/2358929/earthworks-amazonia|título=Amazonian Rainforest Hides Thousands of Records of Ancient Indigenous Communities Under Its Forest Canopy|data=05/10/2023|publicado=Max Planck Institute}}</ref> com um pico de ocupação nos sítios entre os anos de 1250 e 1500.<ref name="Communications"/> Nesta época podem ter vivido até 10 milhões de pessoas na Amazônia, e o desaparecimento dessas sociedades altamente organizadas foi atribuído à chegada dos europeus.<ref name="Esquer"/> Eles se distribuem por toda a Amazônia, mas de forma muito irregular, com áreas de alta concentração e outras (a grande maioria) onde nenhum foi achado.<ref name="Esquer"/> Segundo estimativa de Paripato et alii, pode-se esperar encontrar de 10 a 20 mil outros sítios semelhantes.<ref>{{Harvnb|Peripato|Levis|Moreira|Gamerman|2023|pp=103-109}}</ref> Segundo a arqueóloga Carolina Levis, da Universidade Federal de Santa Catarina, "há algum tempo, os ecologistas viam a Amazônia como uma vasta floresta intocada, mas agora, combinando vários tipos de vestígios, podemos ver que muitas áreas que hoje são florestas densas já foram antigamente submetidas a extensas obras de engenharia e ao cultivo e domesticação de plantas por sociedades pré-colombianas, dominando técnicas sofisticadas de manejo de terras e plantas, que, em alguns casos, ainda estão presentes no conhecimento e práticas das comunidades atuais".<ref name="Planck"/>
== Contato com os europeus e assimilação à sociedade brasileira ==
{{Artigo principal|Brasil Colônia|Genocídio dos povos indígenas no Brasil|Lista de guerras indígenas no Brasil}}
[[Imagem:Indústria lítica Jê - machado.jpg|thumb|Machado em [[pedra polida]], [[indústria lítica]] [[Jês|jê]]. Museu da UFRGS]]
[[Imagem:Dança dos Tapuias.jpg|thumb|''Dança dos [[Tarairiús|Tarairiú]]'', óleo sobre tela de [[Albert Eckhout]] (século XVII). A [[Capitania de Pernambuco]] foi o berço da escravidão indígena no Brasil.<ref>{{Citar web|url=http://www3.folhape.com.br/diversao/diversao/literatura/2018/12/02/NWS,89165,71,585,DIVERSAO,2330-ENTREVISTA-COM-LAURENTINO-GOMES-MERGULHO-ORIGEM-EXCLUSAO-SOCIAL.aspx|título=Entrevista com Laurentino Gomes: um mergulho na origem da exclusão social|publicado=Folha de Pernambuco|data=02/12/2018|acessodata=27-2-2019|wayb=20190228005706|urlmorta=sim}}</ref>]]
[[Imagem:Rugendas - Aldea des Tapuyos.jpg|thumb|Uma redução de [[tapuias]] no {{séc|XIX}}, no Brasil central, em aquarela de [[Rugendas]]]]
As populações pioneiras da América, não encontrando competidores, e tendo uma rica [[megafauna]] à disposição para caça, floresceram, espalhando-se pelos quatro quadrantes do continente. Alguns grupos chegaram a desenvolver, após muitos milênios, civilizações urbanas letradas de elevada complexidade social e tecnológica, grande poderio militar e riqueza material, realizando ampla transformação da Natureza, como os [[maias]] e [[astecas]].<ref name="Battaglia"/> Os povos que se radicaram no Brasil, por sua vez, semi-isolados pela [[cordilheira dos Andes]] das culturas mais sofisticadas do Pacífico e da América Central, mantiveram hábitos silvícolas despojados e seminômades, ainda viviam na [[pré-história]], e desconheciam tecnologias como a [[roda]], o [[espelho]] ou as [[armas de fogo]]. Portanto, a [[Descoberta do Brasil|chegada dos europeus em 1500]] representou um [[choque cultural]] enorme.
A superioridade militar, administrativa e tecnológica dos portugueses logo se impôs, e até mesmo a sua arte foi usada em seu favor, sendo notório, por exemplo, o irresistível fascínio que a música ocidental exercia sobre muitos povos, facilitando imenso a [[aculturação]]. A admiração não foi recíproca. Entendendo o indígena como um ser bruto, quase um animal, que deveria ser domesticado ou derrotado, os portugueses não viam mal no processo colonizador, e de fato muitos acreditavam que a colonização iria salvar o indígena de terríveis erros morais e de sua "pobreza" cultural e material. Mas, na prática, mesmo que a [[Igreja Católica]] desde o {{séc|XVI}} tivesse reconhecido neles a condição de seres humanos, o europeu muitas vezes nem acreditava que possuíssem alma ou intelecto, não exigindo a consideração devida aos homens. Na sua lógica não havia justificativa para que não aceitassem o jugo imposto, pois era para seu próprio bem. Os que não o fizessem espontaneamente, então nada os poderia salvar, pois como eram "apenas bestas", "peças" que podiam ser postas em mercado, estavam entregues à cobiça dos [[bandeirantes]] e [[capitão do mato|capitães-do-mato]] caçadores de indígenas. Esta mentalidade, predominando, autorizou o massacre que se seguiu, numa época em que a conquista de outros mundos e a subjugação a ferro e fogo de outros povos eram coisa normal e tanto fonte de glória e honra como de lucro e poder. Algumas tribos aceitaram facilmente a dominação portuguesa, mas muitas outras resistiram, passando a ser perseguidas e exterminadas em massa, ou acabavam virando escravas.<ref name="Araújo">{{Harvnb|Araújo
Diversas ordens religiosas, em particular os [[jesuítas]], participaram da conquista mandando missionários bem preparados que serviram como evangelizadores, pacificadores, professores, médicos e artistas, e supriam necessidades em todas as áreas. Formou-se um sistema de [[reduções]], aldeamentos fixos mais ou menos auto-suficientes, semelhantes a vilas europeias, administrados pelos padres com a cooperação dos indígenas. Muitos encontraram ali proteção contra a barbárie que se abatia sobre os povos livres, e religiosos como [[Manuel da Nóbrega]] e [[António Vieira]] se notabilizaram empreendendo, através de sua influência política e moral, esforços constantes para protegê-los, dentro do entendimento da cultura dominante. Porém, o preço pago pela proteção foi a perda integral das raízes culturais que distinguiam cada povo, homogeneizando-se a cultura de todos sob o manto do [[Catolicismo]] e o império da Coroa portuguesa, e transformando-os em pequenos produtores rurais. Comparado ao florescente exemplo da Província Jesuítica do Paraguai e doutras partes da [[América espanhola]], o sistema das reduções no Brasil foi bem menos eficiente e organizado, encontrando muitas resistências indígena, mas de qualquer maneira teve um papel importante no processo aculturador e foi a origem de muitas cidades brasileiras,<ref name="Schmitz"/><ref>
[[Imagem:Theodor de Bry - Ataque de Portugueses e Tupiniquins às Cabanas Tupinambás.jpg|thumb|esquerda|Theodor de Bry: ''Ataque de portugueses e tupiniquins às aldeias tupinambás, c. 1592]]
[[Imagem:Debret - Carga de cavalaria guaicuru.jpg|thumb|esquerda|Debret: ''Carga de cavalaria guaicuru'', 1822]]
Porém, nas últimas décadas, as novas produções históricas têm dado visibilidade a uma outra análise da questão indígena. Sem negar a violência com que muitos europeus os trataram, elas têm passado a ver não apenas uma vítima passiva da colonização europeia, mas também um agente que interferiu e teve papel fundamental no processo de construção da sociedade brasileira moderna. Sem a ajuda dos índios, a própria colonização teria sido impraticável. Índios amistosos comercializavam com os colonos portugueses, fornecendo-lhes víveres e produtos naturais valiosos como madeira, condimentos e substâncias medicinais, e contribuíram mesmo para escravizar e exterminar outros índios, participando das [[entradas e bandeiras]], expedições portuguesas que visavam a escravização indígena.<ref name="
Muitos índios se beneficiaram com a chegada dos portugueses. A vida junto aos brancos parecia atrativa e muitos indígenas abandonavam voluntariamente suas aldeias e iam viver junto deles.<ref name="ReferenceB">
[[Imagem:Meirelles-primeiramissa2.jpg|thumb|''[[A Primeira Missa no Brasil]]'', de [[Vítor Meireles]], 1860, [[Museu Nacional de Belas Artes (Brasil)|Museu Nacional de Belas Artes]]. Imagem romântica mostrando uma integração pacífica. Durante o {{séc|XIX}}, o [[Romantismo]] tornou o índio um personagem heroico virtuoso]]
No {{séc|XIX}}, por meio da corrente [[romantismo|romântica]] conhecida como [[indianismo]], o índio passou a ser descrito no discurso oficial e nas artes eruditas como o "[[bom selvagem]]". Essa concepção, derivada do [[Iluminismo]], via o índio como dono de uma moral pura, vivendo em harmonia com a Natureza, uma vítima indefesa da crueldade europeia. Nesta época literatos e artistas falavam deles como os primogênitos do Brasil, fundamento de uma nova ideia de unidade nacional, uma ideologia sentimental, ufanista e progressista que foi adotada pelo governo em um amplo programa de reformas em vários níveis da vida brasileira, das artes à economia, da política à educação.<ref>{{Harvnb|Biscardi
Boa parte da população indígena morreu nas guerras, nas perseguições e na escravidão, mas grande mortalidade se deveu ao contágio de doenças trazidas pelos europeus, contra as quais os índios não tinham [[imunidade]], por terem vivido durante milênios isolados de outras populações.<ref>
=== Ancestralidade indígena na atual população brasileira ===
{{Artigo principal|Composição étnica do Brasil}}
Outra grande parte da população indígena não pereceu, mas foi assimilada pela sociedade brasileira, dando origem a prolífica descendência que, não obstante, já não mais se identifica como "índia".
::"Para a formidável tarefa de colonizar uma extensão como o Brasil, teve Portugal de valer-se no {{séc|XVI}} do resto de homens que lhe deixara a aventura da Índia. E não seria com esse sobejo de gente, quase toda miúda, em grande parte plebeia, além do mais, [[moçárabe]], isto é, com a consciência de raça ainda mais fraca que nos portugueses fidalgos ou nos do norte, que se estabeleceria na América um domínio português exclusivamente branco ou rigorosamente europeu. A transigência com o elemento nativo se impunha à política colonial portuguesa: as circunstâncias facilitaram-na. A [[luxúria]] dos indivíduos, soltos sem família, no meio da indiada nua, vinha servir a poderosas razões do Estado no sentido de rápido povoamento [[mestiço]] da nova terra. E o certo é que sobre a mulher [[gentio|gentia]] fundou-se e desenvolveu-se através dos séculos XVI e XVII o grosso da sociedade colonial, em um largo e profundo mestiçamento, que a interferência dos padres da [[Companhia de Jesus]] salvou de resolver-se todo em [[libertinagem]] para em grande parte regularizar-se em casamento cristão".<ref>{{Harvnb|Freyre
[[Imagem:Il Guarany Score Front Cover.jpg|thumb|Capa da [[partitura]] da [[ópera]] ''[[Il guarany|O Guarani]]'', de [[Carlos Gomes]], baseada no [[O Guarani|romance homônimo]] de [[José de Alencar]], um clássico da mitificação romântica do índio como o [[bom selvagem]]]]
Hodiernamente, milhões de brasileiros descendem, em diferentes graus, dos povos indígenas. Em uma pesquisa realizada em 2008, o IBGE perguntou a origem familiar de brasileiros de diferentes regiões e 21,4% dos entrevistados declararam descender de índios.<ref name="racial">
::"O relacionamento entre índios e brancos durante a conquista da terra (foi reconstruído pelos românticos) de maneira que ficasse bem clara a superioridade moral e material do europeu, devidamente reconhecida pelos indígenas, que almejam, sobretudo, servir ao branco por quem se apaixonam e por quem são capazes de sacrificar a vida.... Dessa maneira, a nobreza do protagonista indígena só se mantém na medida em que se reconhece o mérito civilizador de seu senhor. Assim também, no mito da avó que foi pega a laço, a avó, no caso é a corajosa indígena que, a princípio, resiste ao agressor, mas, ao final, se rende à sua superioridade. Numa única lenda, as famílias logram explicar a tonalidade da pele mais escura, exaltar a honra da avó, que só se rendeu aos encantos do homem branco depois de 'laçada', e da indígena fiel que permanece casada e dá ao senhor uma família 'genuinamente' brasileira".<ref name="Elaine"/>
Pesquisas científicas confirmam aquelas tradições familiares, mostrando que milhões de brasileiros carregam em seu [[DNA]] o material genético de povos indígenas. A população brasileira é bastante heterogênea, portanto o grau de ancestralidade indígena varia de pessoa para pessoa e também geograficamente. De maneira geral, as pesquisas mostram que os brasileiros apresentam alto grau de ancestralidade europeia do lado paterno, enquanto as ancestralidades ameríndias e africanas predominam do lado materno. Isso reflete a característica da colonização portuguesa, na qual a maioria dos colonizadores eram homens, gerando o padrão sexual de miscigenação entre homem europeu e mulher indígena ou africana. O Brasil contrasta com outros países da [[América Latina]] onde a presença negra é inexistente ou residual.<ref>{{Harvnb|Ribeiro
Em uma dessas pesquisas, 33% dos brasileiros brancos, da classe média, descendem de uma ancestral indígena pela linhagem materna. Nenhum deles descende de índios pela linhagem paterna. Isso confirma que o homem indígena deixou poucos descendentes no Brasil, enquanto a mulher indígena foi importante na formação da população brasileira:<ref>{{Harvnb|Alves
== Situação recente ==
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[[Imagem:Manifestantes em conflito com a polícia em Brasília sobre área indígena 2.JPG|thumb|Manifestantes em conflito com a polícia em Brasília sobre área considerada indígena mas reivindicada por uma construtora, 2011]]
[[Imagem:Indios guarani em porto alegre.jpg|thumb| Índios [[Guaranis|guarani]] de uma aldeia urbana de Porto Alegre, marginalizados, vivendo de alguma ajuda oficial e da venda de artesanato nas ruas]]
O convívio dos povos indígenas com o restante da sociedade brasileira tem sido problemático desde o Descobrimento, mesmo com seus lados positivos, e não parece que as tensões vão se resolver tão cedo. Para uns o caminho inevitável é a progressiva assimilação à sociedade ocidental, para outros, o isolamento se revela a única maneira de preservar a identidade cultural das tribos, que se dissolve ou perde grande parte de suas características singulares invariavelmente em todos os casos de contato próximo e continuado com a civilização. Entre os extremos, explodem continuamente novos conflitos e disputas que causam mortes e outros tipos de violência, chegando as denúncias a fóruns internacionais como a [[ONU]], a [[OEA]] e a [[OIT]], sem que até agora houvesse solução satisfatória.
A consequência prática deste processo dialético dramático tem sido a expulsão de muitos povos de suas terras, transformando, como disse Melissa Curi, professora da [[Universidade de Brasília]] e funcionária da [[Funai]], "sociedades autônomas em minorias dependentes";<ref name="Curi"/> a desvirtuação de formas válidas e em muitos aspectos mais saudáveis de ver o mundo e de relacionar-se com a Natureza;<ref name="Core Writing Team 2005, p. 127"/> a perda de inúmeros saberes e artes tradicionais; a destruição gratuita de inúmeras vidas por doenças, [[preconceito]]s, pobreza, alcoolismo, prostituição e violência, entre tantos outros males que surgem do contato com os civilizados.<ref name="Curi">{{Harvnb|Curi
Considerando que de fato a sua população atual é drasticamente menor do que a que vivia em 1500, junto com as amplas evidências de descaso e maus tratos contínuos que são domínio público, muitos especialistas e observadores nacionais e internacionais denunciam a situação histórica dos índios no Brasil como um [[genocídio]] sistemático, que ainda hoje continua a apagar muitas vidas.<ref name="Lima"/><ref name="Gomes"/><ref name="atrapalha">
A posse de [[terras indígenas|suas terras]] é a maior reivindicação dos índios brasileiros na atualidade.<ref name="atrapalha"/
Por outro lado sua conscientização política cresce a cada dia, suas demandas agregam apoios diversos, e muitos povos nativos já se encontram mobilizados e unidos através de várias associações, entre as quais se destaca a [[Articulação dos Povos Indígenas do Brasil]], que os representa em nível nacional. Mesmo com os significativos avanços recentes, o caminho que os leva até uma verdadeira equiparação social apenas começou a ser aberto, e muito ainda resta por fazer.<ref name="Projeto">Projeto Protagonismo dos Povos Indígenas Brasileiros através dos instrumentos internacionais de Direitos Humanos. ''Comunicação ao Comitê de Especialistas na Aplicação das Convenções e Recomendações da OIT sobre o cumprimento da Convenção 169 sobre Povos Indígenas e Tribais''. APOINME - Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo / CIR - Conselho Indígena de Roraima / COIAB - Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira / Warã Instituto Indígena Brasileiro, 2008.</ref><ref name="Rinaldo"/> Como sintetizou o antropólogo Rinaldo Arruda, da [[Universidade de São Paulo]],
[[Imagem:Baré people in Cuieiras river.jpg|thumb|Índios [[Barés|baré]] em suas terras, a
::"Na postura ideológica predominante, os índios não fazem parte de nosso futuro, já que são considerados uma excrescência arcaica, ainda que teimosa, de uma ''pré-brasilidade''. Uma brasilidade, aliás, que não os reconhece, formada a partir de sua negação.... Do prisma das sociedades indígenas, as contradições, ambiguidades e tensões decorrentes das relações de dependência e subordinação com a sociedade envolvente permanecem atuantes, assim como ainda prevalecem.... os interesses anti-índígenas, exigindo um permanente esforço de resistência, de luta política e de reelaboração de suas formas de reprodução sociocultural.... De um lado, o conhecimento dos processo naturais e as práticas de manejo adaptadas às florestas tropicais desenvolvidas por estes povos, por meio da observação e experimentação, cujos resultados acumularam-se em milênios de ocupação da região, têm grande interesse para a ciência e para a sociedade. Por outro, o estilo de vida cooperativo, baseado no desenvolvimento de mecanismos políticos e psicológicos de estabilidade social, colocam questões fundamentais para a humanidade. Mas a questão crucial, que a atualidade nos coloca de forma cada vez mais incisiva, é se haverá a oportunidade e a possibilidade de a humanidade aventurar-se em culturas singulares no interior do sistema mundial, inventando ao mesmo tempo outros contratos de [[cidadania]]".<ref name="Rinaldo">{{Harvnb|Arruda
=== Legislação e política ===
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{{Anexo|Lista de povos indígenas do Brasil}}
Desde os primeiros tempos da colonização o índio recebeu proteção legal. Em 1549, na instalação do Governo-geral em Salvador, apareceu a primeira regulamentação sobre os índios na forma de um Regimento que garantia proteção aos aliados da Coroa e dava aos [[jesuítas]] voz ativa nos assuntos relacionados aos índios.<ref name="ReferenceB"/> Em 1680 um Alvará Régio instituiu o
[[Ficheiro:5-cruzeiros-1961-anverso.png|miniaturadaimagem|left|Efígie indígena na cédula de [[Cruzeiro (1942–1967)|5 Cruzeiros]], conhecida como "cédula do índio", emitida pela [[Casa da Moeda do Brasil]] em 1961
Para tentar resolver alguns desafios mais urgentes, o governo criou em 1910 o [[Serviço de Proteção ao Índio]] (SPI). O Serviço garantiu a posse de algumas terras tradicionais aos seus ocupantes e as protegeu contra invasões, e reconheceu a importância de suas culturas originais e suas instituições, mas em tudo sua atuação foi tímida. Depois de o Serviço se desestruturar completamente entre grande controvérsia pública, foi substituído pela [[Fundação Nacional do Índio]] (Funai) em 1967. A Funai também não encontrou condições fáceis de trabalho, erguendo-se sobre os escombros do SPI, administrando um contexto de perene carestia de recursos humanos e financeiros, enfrentando prolongadas e desgastantes batalhas jurídicas em múltiplas frentes, e tendo em tempos recentes seus poderes reduzidos, também sob vasta controvérsia. Além disso, toda a política oficial na época continuava a se voltar ao objetivo de assimilar os povos à cultura brasileira, negando-lhes o direito à [[Autodeterminação (direito humano)|autodeterminação]] previsto na ''[[Declaração Universal dos Direitos Humanos]]'' de 1948, embora essa linha de pensamento já não fosse um consenso. Mas ainda foi a base do ''[[Estatuto do Índio]]'', lei que entrou em vigor em 1973, mesmo que ela tenha trazido muitos avanços para a questão indígena.<ref name="Araújo"/><ref name="Lima"/><ref>
[[Ficheiro:Mro-o, Tomtu and Nzoikamrekti Kayapó lendo o Projeto da Constituição Brasileira.jpg|miniaturadaimagem|Indígenas na Assembleia Nacional Constituinte que elaborou a [[Constituição brasileira de 1988|Constituição do Brasil]] de 1988.]]
[[Imagem:Raposa Serra do Sol - Julgamento STF. 2008.jpg|thumb|Indígenas durante o julgamento no Supremo Tribunal Federal sobre a demarcação da [[Terra Indígena Raposa Serra do Sol]], em Roraima, 2008]]
Muito em virtude da mobilização dos próprios índios, especialmente através da
Diversos outros dispositivos legais em anos recentes contemplaram interesses indígenas em áreas como saúde, meio ambiente, educação, patrimônio arqueológico e imaterial, assistência social, apoio à produção e regularização fundiária.<ref>{{Harvnb|Magalhães
Mesmo com tantas garantias, o Congresso Nacional e as cortes de justiça do Brasil se tornaram arenas de conflitos legais intermináveis, e sob pressão de [[lobby]] econômico e político inúmeros projetos de lei apresentados nos últimos anos vêm tentando sabotar ou reverter as conquistas já realizadas, colocando mais combustível numa polêmica antiga que continua degenerando para a violência armada.<ref name="Cruz"/><ref
=== Articulação interna ===
{{AP|Movimento indígena no Brasil}}
[[
[[
As associações e organizações indígenas surgiram no Brasil nos anos 1970-80, a partir de um rápido processo de conscientização política entre as tribos ocorrido com importante apoio da Igreja Católica.<ref name="Wolfart">
Em 2006, pesadamente pressionado, o governo criou a
=== Demografia ===
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[[Ficheiro:Indigenous Map of Brazil.png|miniaturadaimagem|222x222px|<small>[[Lista de unidades federativas do Brasil por população indígena|Proporção da população indígena]] por estados brasileiros, de acordo com o IBGE</small>{{legend|#AE005F|> 3%}}{{legend|#CA6283|2% – 3%}}{{legend|#E3A1AB|1% – 2%}}{{legend|#EEC4CA|0,5% – 1%}}{{legend|#FDE2D7|< 0,5%}}]]
De acordo com o Censo de 2022, o Brasil tem 1,7 milhão de pessoas que se identificam como indígenas, espalhadas em cerca de 86% dos municípios do Brasil, concentrados em sua maioria na região Norte. Esse grupo corresponde a 0,83% da população brasileira e 63% dele reside fora de territórios indígenas. A localidade que abriga a maior população indígena do país é a [[Terra Indígena Yanomami]], com 27.152 indivíduos, sendo seguida pela Terra Indígena Raposa Serra do Sol, com 26.176 indivíduos.<ref name=":0">{{Citar web|url=https://g1.globo.com/economia/censo/noticia/2023/08/07/censo-do-ibge-brasil-tem-17-milhao-de-indigenas.ghtml|titulo=Censo do IBGE: Brasil tem 1,7 milhão de indígenas|data=2023-08-07|acessodata=2024-07-08|website=G1}}</ref><ref>{{Citar web|ultimo=Coelho|primeiro=Renato|url=https://jornal.unesp.br/2023/08/10/em-pouco-mais-de-uma-decada-grupo-que-se-declara-indigena-no-brasil-cresceu-89-mostra-censo-2022/|titulo=Em pouco mais de uma década, grupo que se declara indígena no Brasil cresceu 89%, mostra Censo 2022|data=2023-08-10|acessodata=2024-07-08|website=Jornal da Unesp}}</ref> Segundo um estudo coordenado pelo geneticista Sérgio Danilo Pena e publicado na revista Ciência Hoje em abril de 2000, 3 em cada 5 brasileiros naquele período carregavam em cada célula do corpo uma herança genética que provém dos índios ou dos africanos e se preservou por meio das mães ao longo das gerações.<ref>{{Citar web|url=https://revistapesquisa.fapesp.br/marcas-geneticas-da-miscigenacao/|titulo=Marcas genéticas da miscigenação|data=Abril de 2000|acessodata=2024-07-08|website=Revista Pesquisa}}</ref>
No entanto, essa população miscigenada com ascendência distante não é considerada indígena, e os índios autênticos declinaram incessantemente desde o início da colonização.<ref name="Gomes"/> O primeiro [[inventário]] sobe eles só foi feito em 1884, pelo viajante alemão [[Karl von den Steinen]], que registrou a presença de quatro grupos ou nações indígenas de acordo com as suas [[língua]]s: [[Língua tupi|tupi]], [[macro-jê]], [[Línguas caribes|caribe]] e [[Línguas aruaques|aruaque]].<ref name=referenciaum/> Estimativas recentes da população indígena na época do Descobrimento apontam que existiam no território brasileiro mais de mil povos, com um total de aproximadamente 5 milhões de pessoas, talvez mais, mas nos anos 60 sobreviviam somente cerca de 120 mil indivíduos,<ref name="Gomes"/> e os números continuaram a cair até os anos 80, chegando-se a pensar que sua extinção completa era inevitável. Porém, com programas de auxílio do governo, depois disso a tendência passou a ser de crescimento populacional.<ref name="pop"/><ref name="População"/>
[[Ficheiro:Mapa dos municípios brasileiros por indígenas (2022).png|miniaturadaimagem|Mapa da distribuição de indígenas por [[municípios brasileiros]], de acordo com o [[Censo demográfico do Brasil de 2022|Censo 2022]].{{legend|#53000D|> 80%}}{{legend|#910015|50% - 79%}}{{legend|#D20020|25% - 49%}}{{legend|#F37076|10% - 24%}}{{legend|#FECAB1|1% - 9%}}{{legend|#FFE4DD|< 1%}}]]
Em 2006 eram 215 os povos indígenas, com uma população de aproximadamente 345 mil índios, segundo dados da Funai.<ref name="Araújo, p. 23">{{Harvnb|Araújo
Entre os estados com maior população indígena estãoː [[Amazonas]] (29,98%), [[Bahia]] (13,53%), [[Mato Grosso do Sul]] (6,87%), [[Pernambuco]] (6,3%) e [[Roraima]] (5,75%).<ref name=":0" />
Abaixo, dados dos [[recenseamento]]s do [[IBGE]] de 2000 e 2010, demonstrando em percentual os dez municípios brasileiros com maior população autodeclarada indígena:▼
▲Abaixo, dados dos [[recenseamento]]s do [[IBGE]] de 2000, 2010 e
{{Dividir em colunas|col=2}}
; Dados de 2000<ref>
# [[São Gabriel da Cachoeira]] (AM) – 76,31%
# [[Uiramutã]] (RR) – 74,41%
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# [[Japorã]] (MS) – 39,24%
; Dados de 2010<ref>{{citar web|URL=http://www.ibge.gov.br/indigenas/indigena_censo2010.pdf|título=Os indígenas no Censo Demográfico 2010|autor=Diretoria de Pesquisas|
# [[Uiramutã]] ([[Roraima|RR]]) – 88,1%
# [[Marcação (Paraíba)|Marcação]] ([[Paraíba|PB]]) – 77,5%
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# [[Santa Rosa do Purus]] ([[Acre|AC]]) – 53,8%
# [[Amajari]] (RR) – 53,8%
{{div col fim}}'''Dados de 2022'''<ref name="Tabela 9605"/>
# [[Uiramutã]] (RR)ː 94,5%
# [[São Gabriel da Cachoeira]] (AM)ː 88,7%
# [[Santa Isabel do Rio Negro]] (AM)ː 84,8%
# [[Marcação]] (PB)ː 81,4%
# [[Carnaubeira da Penha]] (PE)ː 77,1%
# [[Baía da Traição]] (PB)ː 76,6%
# [[Normandia (Roraima)|Normandia]] (RR)ː 76,1%
# [[São João das Missões]] (MG)ː 71,9%
# [[Amajari]] (RR)ː 65,5%
# [[Santa Rosa do Purus]] (AC)ː 63,3%
==== Povos isolados ====
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[[Imagem:Índios isolados no Acre 4.jpg|thumb|Aldeia de índios isolados, no Acre]]
Há vários registros de avistamento de povos indígenas sem contato com a civilização. A Funai criou em 1987 um departamento especial para tratar deles,<ref>
Vários desses avistamentos ocorreram dentro de reservas já demarcadas, o que favorece sua proteção, mas outros estão expostos em regiões que sofrem grande pressão ambiental, e seu destino é muito incerto. Alguns grupos, como os
==== Povos emergentes ====
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[[Imagem:Tereza Kariri.JPG|thumb|Família de cariris]]
Ao longo do {{séc|XX}} apareceram grupos miscigenados reivindicando a condição de "povo indígena". Este processo, chamado [[etnogênese]], tem ocorrência em todo o mundo. No Brasil ocorre principalmente na [[Região Nordeste do Brasil|região Nordeste]]. São dezenas de grupos requerendo reconhecimento, sendo exemplos os [[náuas]], [[matipus]], [[caxixós]],
::"Importa compreender as razões, os meios e os processos que permitem um determinado agregado qualquer se instituir como grupo, ao reivindicar para si o reconhecimento de uma diferença em meio à indiferença, ao instituir uma fronteira onde antes só se postulava contiguidade e homogeneidade. Se o [[etnocídio]] é o extermínio sistemático de um estilo de vida, a etnogênese, em oposição a ele, é a construção de uma autoconsciência e de uma identidade coletiva contra uma ação de desrespeito (em geral produzida pelo Estado nacional), com vistas ao reconhecimento e à conquista de objetivos coletivos".<ref name="Arruti">{{citar web|autor=Arruti, José Maurício
Mas às vezes essas reivindicações são criticadas como fraudulentas, objetivando apenas a obtenção de terras e benefícios oficiais e o atingimento de resultados políticos, e os conflitos são frequentes.<ref>{{Harvnb|Araújo
==== Terras indígenas ====
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[[Imagem:Indigenous brazil.jpg|thumb|esquerda|Mapa de [[reserva indígena|reservas indígenas]] brasileiras em 2008]]
Em 1961 foi criado o [[Parque Indígena do Xingu]], a primeira reserva indígena brasileira a ser criada numa perspectiva multicultural, após forte atuação dos [[irmãos Villas-Bôas]], do [[Marechal Rondon]] e de [[Darcy Ribeiro]], entre outros indigenistas, para que a natureza, os povos nativos da região, suas culturas e costumes fossem preservados em sua inteireza e diversidade.<ref>
Em 2006 eram 582 terras indígenas, com uma extensão total de 108 429 222 hectares, equivalendo a 12,54% de todo o território nacional. A maior parte está localizada na Amazônia, com 405 terras distribuídas em 103 483 167 hectares, que correspondem por cerca de 99% da área total de terras indígenas brasileiras. Dois terços da população indígena vive nessas reservas amazônicas, e o restante se comprime no 1% de território que lhe coube nas outras regiões todas somadas.<ref name="Araújo, p. 23"/
O problema da demarcação de reservas desde os tempos coloniais tem sido acompanhado de grande controvérsia, violência e denúncias repetidas de corrupção oficial e violações de [[direitos humanos]].<ref name="
[[Imagem:Lideranças da APIB são recebidas pelo governo.jpg|thumb|Lideranças da [[Articulação dos Povos Indígenas do Brasil]] são recebidas pelo Ministro da Justiça, [[José Eduardo Cardozo]], e outros oficiais do governo em 2012. Os índios protestam contra a ''Portaria 303'', considerada uma ameaça à integridade das terras indígenas]]
[[Imagem:Indígenas Guarani Kaiowá vivem em acampamentos precários e improvisados.JPG|thumb|Indígenas guarani-caiouás em acampamentos improvisados à beira da rodovia que liga as cidades de [[Amambaí]] e [[Ponta Porã]], 2011]]
A oposição aos interesses dos índios é grande, especialmente nos setores ligados ao [[agronegócio]], empreiteiras e indústrias, que usam de seu enorme poder de influência política e econômica para sustentar argumentos invalidados pela Lei, pela [[ética]] elementar ou pela melhor ciência.<ref name="Luana">
::"Nos últimos anos, a Funai tem investido muito para recuperar os territórios tradicionalmente ocupados pelos guarani-caiouás e dominados irregularmente por produtores de soja e agropecuaristas, a fim de garantir a sobrevivência física e cultural deste grupo que, no passado, se espalhava da região Centro-Oeste até o Sul do País. A perda gradual do espaço geográfico da aldeia (''tekoha'') comprometeu a organização social dos guarani-caiouás, fortemente ligada aos seus conceitos míticos. O espaço da aldeia tem uma relação com o sagrado e a sua perda implica uma falta de referencial para as demais atividades do grupo. Não só a perda do ''tekoha'' alterou os aspectos culturais desses índios. O processo de anulação dos valores culturais dos guarani-caiouás se deveu, em grande parte, à presença de várias seitas [[protestantes]], que penetram no grupo com o objetivo de dar-lhes assistência. Esta influência das missões religiosas, impondo conceitos estranhos a eles, como o do [[pecado]], gerou conflitos. Sem o referencial místico, intrínseco à terra que deveriam ocupar, e contaminados por outros entendimentos de religiosidade, muitos índios viram e ainda veem no [[suicídio]] uma alternativa para acabar com o próprio conflito interno. Quando não tomam esta atitude extrema, entregam-se ao consumo de bebidas alcoólicas, que, igualmente, leva à sua degradação. Alguns, entretanto, buscam a alternativa de se empregarem nas fazendas instaladas em suas terras tradicionais. Esta decisão, por si só, já representa um total distanciamento do padrão cultural de um guarani-caiouá".<ref name="Itamaraty"/>
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::"A condição primordial para qualquer relação respeitosa que se pretenda com os povos indígenas é a demarcação e garantia de suas terras. Não há como assegurar a vida, a cultura, a existência digna desses povos fora de seus territórios. Mas, evidentemente, esta garantia não é suficiente.... Infelizmente, todas as referências culturais e as formas de representação que produzimos sobre os povos indígenas nos levam a pensar que eles são frágeis, menos desenvolvidos, menos cultos, menos civilizados, menos dispostos ao trabalho, e que suas culturas são primitivas, menos complexas, menos valiosas. Tudo isso precisa ser problematizado. A grande questão é que somos impelidos a pensar a existência indígena em função de nossa própria existência. Neste caso, afirmamos a tolerância para com eles, mas nunca nos perguntamos quem somos nós para tolerar, aceitar ou permitir que eles vivam do modo que desejarem. Um bom começo para repensarmos as bases dessa relação seria reconhecermos que os povos indígenas possuem suas formas próprias de viver, e isso independe de nossa aprovação, aceitação ou tolerância".<ref name="Wolfart"/>
A falta de demarcação gera outros efeitos negativos além dos descritos, pois somente comunidades residentes em áreas regularizadas podem receber oficialmente uma série de serviços de educação, fomento agrícola e social.<ref
=== Economia e desenvolvimento ===
{{Artigo principal|Economia indígena}}
[[Imagem:Guaranies-brazil.JPG|thumb|esquerda|Índios [[Guaranis|guarani]] [[aculturação|semi-aculturados]] vivem em situação de pobreza na [[região das Missões]], onde as reservas são pequenas e disputadas]]
[[Imagem:Indígenas mundurukus se reúnem com o ministro da Secretaria-Geral da Presidência Gilberto Carvalho 2.jpg|thumb|esquerda|Índios [[mundurucus]] chegam em Brasília para pedir a suspensão de empreendimentos energéticos na Amazônia e discutir outras reivindicações indígenas, 2013]]
Já são raras as tribos que podem viver de acordo com suas antigas práticas, até mesmo os povos isolados estão sob crescente pressão.<ref name="Equipe">
Constitucionalmente os índios têm direito à participação nos lucros derivados de investimentos e obras em suas terras, mas como a Lei nem sempre é cumprida, em grande número de casos os povos acabam explorados sem compensações adequadas, sofrendo sérios impactos sociais negativos e vendo o ambiente de que precisam para viver ser destruído e poluído. Projetos de mineração, usinas hidrelétricas, exploração madeireira, agropecuária, [[grilagem]] de terras e obras de infraestrutura como estradas e linhas de transmissão energética, são os que geram mais problemas.<ref>{{Harvnb|Santos
Outras dificuldades advêm dos múltiplos modelos produtivos adotados tradicionalmente pelos vários povos, complicando o estabelecimento de políticas consistentes. Em geral suas economias se caracterizam pela ausência de instituições formais de produção e distribuição de produtos, pelo baixo grau de especialização, pelo baixo nível tecnológico, pelos mercados pequenos, por um sistema de trocas não monetárias, pela ênfase (ainda que não exclusiva) na [[economia de subsistência]], e pela complexidade da integração com o sistema
[[Imagem:Fulni-ô fala da cultura do seu povo.jpg|thumb|Representante fulni-ô fala da cultura de seu povo para escolares no [[Jardim Botânico de Brasília]], em comemoração do [[Dia do Índio]], 2011]]
Para ajudar a resolver esses desafios o governo e entidades privadas, em parceira com as comunidades, estão desenvolvendo vários projetos para o desenvolvimento econômico e social das tribos, enfocando o [[manejo sustentável]] dos recursos naturais, a organização de [[cooperativa]]s, grupos de artesãos e outras formas de [[economia solidária]], e articulação de um sistema de comércio integrado
=== Educação ===
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[[Imagem:Arte de la Lengua Guarani - Antonio Ruiz de Montoya.jpg|thumb|[[Antonio Ruiz de Montoya]]: ''A Arte da Língua Guarani'', 1724, um dos vários manuais técnicos produzidos pelos missionários para seus propósitos educativos]]
Originalmente os ensinamentos eram transmitidos de pais para filhos em situações práticas, mas também através da arte, de lendas, mitos e [[ritos de passagem]] de caráter religioso e público, e de fato toda a comunidade participava da educação de suas crianças.<ref name="Bessa"/><ref name="Schmitz"/><ref name="Machado2"/><ref name="Redes"/><ref name="Machado"/> A partir da colonização europeia, todo esse sistema se viu na contingência de mudar, introduzindo-se o ensino por mestres especializados, os professores, com disciplinas compartimentalizadas e de fraca vinculação com a realidade de suas vidas e sua herança cultural. Nos tempos coloniais, praticamente, a educação que se ministrou aos índios se resumiu ao [[catecismo]] religioso, utilizando frequentemente formas artísticas ocidentais para
O governo delimitou seu campo através de vários instrumentos legais, especialmente a ''[[Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional]]'', e instituições específicas sob o comando atualmente do [[Ministério da Educação (Brasil)|Ministério da Educação]] em parceria com a Funai,<ref name="Grupioni4"
Deve ser notado que o programa de educação indígena do governo tem um perfil flexível, buscando adaptar o modelo padronizado às necessidades das comunidades, preservando as línguas, usando materiais preparados no local por professores índios, elaborando currículos diferenciados, incluindo a comunidade no estabelecimento de parâmetros e adequando o calendário escolar ao ritmo de vida tradicional das tribos.<ref name="Grupioni4"/> A meta do governo é que todos os professores das escolas em reservas sejam índios.<ref name="Wellington">{{citar web|url=http://revistaescola.abril.com.br/politicas-publicas/formacao-professores-educacao-indigena-741234.shtml|título=Formação de professores para Educação Indígena: Foco em cada povo - Ações diferenciadas para cada realidade|autor=Soares, Wellington|ano=2001|website=Nova Escola|número=260|página=1-2|wayb=20160326095223|urlmorta=sim}}</ref> Mas além da problemática implícita no modelo educativo, as próprias infraestruturas educativas nas aldeias são precárias. Segundo estudo de Rangel & Liebgott,
[[Imagem:Edukation.jpg|thumb|esquerda|Índias [[Canelas (povo)|canela]] em escola de aldeia maranhense]]
[[Imagem:Tubarão pré-histórico.jpg|thumb|esquerda|Escultura em pedra da
::"Os dados indicam que não há escolas que assegurem a conclusão do [[ensino fundamental]] e que, na quase totalidade das comunidades indígenas, não há [[ensino médio]]. Impondo, com isso, que os estudantes indígenas frequentem as escolas dos municípios, onde lhes são negados os direitos a uma educação escolar diferenciada. Os dados apresentados pelo CIMI indicam que a política de educação escolar indígena está relegada, basicamente, aos municípios, que impõem as condições, os profissionais e os currículos escolares. Os chamados territórios etnoeducacionais, apresentados pelo Ministério da Educação, são ainda uma mera ficção, ou seja, não estão em funcionamento, os povos indígenas não os conhecem e sequer sabem como poderão ser implementados".<ref>{{Harvnb|Rangel
As carências envolvem falta de instalações adequadas para as aulas, de transporte, de merenda escolar, de professores e materiais didáticos. Além da precariedade da formação de profissionais que seja capacitados a atuar junto a essas comunidades, seja ativamente na sala de aula, seja compondo a equipe pedagógica necessária para se desenvolver a educação escolar, como aponta Da Cunha em sua entrevista: Educação escolar indígena em Roraima: formação docente e escolas e específicas e diferenciadas.<ref>{{
A [[alfabetização]] dos indígenas nos [[vernáculo]]s, paralelamente ao trabalho sistematizador dos [[linguista]]s, também tem tido o efeito de gerar literatura, fato de fundamental importância num contexto de progressiva dissolução e esquecimento das tradições e mitos, e tem capacitado os índios para registrar de maneira duradoura sua própria versão da História e descrever suas visões de mundo com autenticidade, corrigindo interpretações distorcidas dos civilizados, possibilitando além disso a preservação das próprias línguas e a maior divulgação de suas culturas. Fortalece ainda o senso de identidade das tribos, lhes infunde mais orgulho de suas origens e dá bases para eles elaborem formas próprias de [[pedagogia]].<ref>
Algumas populações indígenas lutam para garantir espaço nas universidades. Em Manaus, por exemplo, foi conquistado o acesso e permanência na Universidade Federal do Amazonas por meio de ações afirmativas. A fim de solucionar essas questões de permanência, a conquista não aconteceu apenas por garantir vagas ao indígena, novas disciplinas foram criadas a fim de atender a realidade dos indígenas, não apenas no sentido de prover discussões mais significativas à sua realidade, mas também para produzir um conhecimento que previamente não acontecia. Também foi garantida estrutura física e financeira para que eles pudessem morar perto da universidade, resolvendo o problema de longas distâncias que impossibilitam o acesso ao estudo. Alguns cursos na área da pós-graduação também contam com espaço para indígenas, dessa forma, democratizando a educação.<ref>{{
Para os civilizados, o assunto indígena faz parte hoje do currículo escolar brasileiro desde o nível primário,<ref>
=== Saúde ===
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[[Imagem:Abertura da 5ª Conferência Nacional de Saúde Indígena.jpg|thumb|Abertura da 5ª Conferência Nacional de Saúde Indígena, 2013]]
[[Imagem:Indian protesters from Vale do Javarí in Belém 2009-1530FP8777.jpg|thumb|Indígenas de várias etnias da [[Terra Indígena do Vale do Javari|reserva do vale do Javari]] invadem a tenda Revolução Cubana e o Centro de Imprensa do [[Fórum Social Mundial]] pedindo mais saúde e denunciando várias mortes por hepatite nos últimos anos, 2009]]
Sabe-se que os índios gozavam originalmente de boa saúde, tendo corpos mais fortes e robustos do que os europeus,<ref name="Vinícius"/> exercitados nas artes militares, na produção de artefatos e construção de cabanas, nas contínuas atividades físicas em seu cotidiano de estreito contato com a Natureza, movimentando-se sempre a pé ou em canoas de remo, na caça e pesca, na agricultura, e nos esportes como a ''[[huka-huka]]'' (uma luta), o [[cabo-de-guerra]], o ''xikunahity'' (um "futebol" em que a bola é impulsionada exclusivamente por cabeceios), a corrida carregando toras de madeira e o ''rõkrã'' (um jogo com bastões e uma pelota).<ref>
Suas práticas de cura tinham caráter [[xamã|xamanístico]] e ritual, possuindo conotações mágicas e religiosas, e as doenças frequentemente eram atribuídas a origens sobrenaturais. Em sua medicina usavam ervas, produtos animais e procedimentos físicos invasivos, que podiam incluir sangrias e escarificações.<ref name="Juberty"/><ref name="Coimbra">{{Harvnb|Santos
Como já foi dito, depois da chegada dos portugueses inúmeras epidemias de doenças desconhecidas na América dizimaram populações inteiras, entre elas [[malária]], [[tuberculose]], infecções respiratórias, [[hepatite]] e [[doenças sexualmente transmissíveis]].<ref name="Funasa2">{{Harvnb|Funasa
Atualmente o principal marco legal específico para a área de saúde é a ''[[Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas]]'', regulamentada pela ''Portaria nº 254'', de 31 de janeiro de 2002.<ref name="Funasa2"/> Dados do governo de 2006 apontam que entre os problemas de alta ocorrência estão [[anemia]], [[diarreia]], [[tuberculose]], doenças de pele, infecções respiratórias, e doenças crônicas como [[obesidade]], [[hipertensão arterial]] e [[diabetes mellitus]]. Cerca de um terço das reservas enfrenta dificuldades de
::"Não se dispõe de dados globais fidedignos sobre a situação de saúde (dos povos indígenas), mas sim de dados parciais, gerados pela Funai, pela Funasa e diversas organizações não governamentais ou ainda por missões religiosas que, por meio de projetos especiais, têm prestado serviço de atenção à saúde dos povos indígenas. Embora precários, os dados disponíveis indicam, em diversas situações, taxas de [[morbidade]] e [[mortalidade]] três a quatro vezes maiores que aquelas encontradas na população brasileira geral. O alto número de óbitos sem registro ou indexados sem causas definidas confirmam a pouca cobertura e baixa capacidade de resolução dos serviços disponíveis".<ref name="Coimbra"/>
[[Imagem:Amazonica Indios.jpg|thumb|Índios em um laboratório observando [[plasmódio]]s da malária ao microscópio]]
Para o antigo diretor do Departamento de Saúde Indígena da Funasa,
Entre as conquistas recentes no setor podem ser citadas o expressivo crescimento populacional nas últimas décadas,<ref name="Basta"/> a formação de muitos profissionais de saúde indígenas, que passaram a se encarregar da maior parte do atendimento básico nas aldeias, e a importante redução na [[mortalidade infantil]], que caiu de 74,61 óbitos por mil nascidos vivos em 2000, para 46,73 em 2008, resultado da integração de uma série de programas de saúde, desenvolvimento econômico e assistência social. No início de 2008 atuavam na área indígena 12 895 profissionais de saúde, com 1 681 de nível superior e 11 214 de nível médio.<ref name="Funasa2"/
=== Evangelização e aculturação ===
Como já foi descrito, os portugueses desde os primórdios da colonização buscaram transformar os indígenas em bons cristãos. Muitos de seus costumes eram vistos como imorais e pecaminosos, e suas religiões, como primitivas, supersticiosas e obscuras, quando não demoníacas, e por isso era preciso a todo custo "salvá-los" de sua forma de vida. Isso não mudou muito. A despeito de todos os problemas que isso causou historicamente, grande parte da população indígena brasileira permanece ainda hoje sob forte pressão de propagandistas de outras religiões, que continuam tentando convertê-los às suas fileiras sob os mais variados argumentos, mas em geral tentando assimilá-los para a órbita da civilização e revelando uma visão subjacente preconceituosa, ignorante e prepotente sobre suas práticas religiosas tradicionais, fazendo-os ouvir aquele mesmo tipo de [[pregação]] de séculos passados que, embora muitas vezes realizada com boa intenção, desvirtua ou substitui suas crenças originais e provoca profundos conflitos de consciência nos indivíduos. Tenta-se "levar a palavra de Deus" ao índio como se ele não tivesse suas próprias figuras divinas e seus preceitos, nunca tivesse ouvido falar em um poder espiritual, e tivesse ''pedido'' a [[evangelização]], querendo-se homogeneizar a espiritualidade nativa à sombra do [[cristianismo]], quase invariavelmente considerado "superior".<ref name="Itamaraty
::"Convenceram todo mundo a ser crente. Botaram uma ameaça no nosso coração, dizendo que sem essa religião todo mundo iria para o inferno, que nós não teríamos salvação, não seríamos capaz de ser um povo feliz. Que nós vivíamos com o demônio. Que nossos rituais e nossas crenças eram coisas do demônio. [...] Eram racistas, não gostavam da gente, pareciam que tinham nojo de índio. Não deixavam índio andar no mesmo barco com eles. Não deixavam comer junto. Nos tratavam mal. Sem respeito. Principalmente os americanos. Eram muito arrogantes. A gente sofria muito. A gente tinha vergonha de ser a gente. [...] Nós éramos proibidos, através da intimidação, de realizar nossos rituais. Do lado da missão estavam os seringalistas, seringueiros. Se aliavam com todo mundo. E a igreja fazia a gente aceitar ser dominado. Além da evangelização, dessa descaracterização cultural do nosso povo, ainda mantinham a presença dos não indígenas dentro da terra. Faziam a gente aceitar nossa condição de escravo".<ref name="mercado-de-almas"/>
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[[Imagem:Conselho Indigenista Missionário lança o relatório Violência Contra os Povos Indígenas 2012.jpg|thumb|esquerda|Representantes do Conselho Indigenista Missionário no lançamento do relatório ''Violência Contra os Povos Indígenas 2012'']]
Porém, religiosos e associados ao trabalho missionário muitas vezes argumentam que a evangelização contemporânea, diferente da histórica, é oferecida como uma opção e não um imperativo, que pode ajudar os índios em sua conscientização política e em suas lutas sociais, e pode capacitá-los para participar da sociedade brasileira de forma digna e construtiva.<ref>
É de notar que a [[Conferência Nacional dos Bispos do Brasil]] (CNBB), entidade [[católica]], que através do [[Conselho Indigenista Missionário]] tem sido uma das mais aguerridas e influentes defensoras dos indígenas,<ref name="Brand">
::"O trabalho de [[catequese]] há décadas deixou de ser uma exclusividade da Igreja Católica, que perdeu terreno nessa área. Pastores [[evangelicalismo|evangélicos]] tomaram seu lugar e hoje operam um vigoroso esforço de conversão em massa. Já superaram os católicos no número de missionários. [...] Existem 222 tribos no país. Os católicos estão em apenas 107 delas. Protestantes de denominações como [[Igreja Batista|Batista]], [[Adventista]], [[Igreja do Evangelho Quadrangular|Quadrangular]] e [[Assembleia de Deus]], por exemplo, já estão presentes em 153. Seu objetivo é claro: chegar a cada etnia 'não alcançada' por Jesus, fincar uma igreja e conduzi-la pelo que consideram o caminho da salvação. [...] Em 1972 (a Igreja Católica) criou o CIMI para gerir a relação com os índios, e passou a pregar que a cultura nativa deveria ser preservada, inclusive em suas crenças. Foi um flanco aberto para que os missionários evangélicos avançassem em peso por entre as aldeias mais remotas do país. [...] Sua estrutura [[logística]] também salta aos olhos. Para levar os pastores a cada canto do país, os evangélicos contam com a ONG
Em 1991 a Funai determinou a retirada de todos os missionários das reservas, diante de inúmeras denúncias de genocídio, escravidão, servidão, exploração sexual e monopolização do acesso à saúde e à educação,<ref name="das-almas"/> e desde 1994 somente podem entrar nas reservas missionários convidados pelos índios.<ref name="Luchete"/> Para contornar o interdito, muitas vezes são oferecidos às tribos serviços e benesses em troca do convite,<ref name="Elaíze"/> ou as lideranças cristãs trabalham para formar missionários índios, que por sua vez podem atuar livremente nas reservas.<ref name="Ana Paula"/><ref name="Dan"/> Edward Luz, presidente da organização não denominacional
[[Imagem:Santuário Sagrado dos Pajés na terra indígena no Setor Noroeste.JPG|thumb|[[Santuário dos Pajés]] na terra indígena no [[Setor Noroeste (Brasília)|Setor Noroeste]] de Brasília]]
[[Imagem:Church with antena in Ashaninka village - Ministério da Cultura - Acre, AC.jpg|thumb|Capela cristã em terras [[achanincas]], no Acre]]
Propostas de autorizar legalmente a atuação missionária já chegaram ao Congresso Nacional e desencadeiam grande polêmica, pois o Brasil é um [[Estado laico]], e a imposição da evangelização sobre os índios, violando a [[liberdade de culto]], é inconstitucional, conforme declarou Antônio Oneildo Ferreira, presidente da seccional da [[Ordem dos Advogados do Brasil]] em Roraima, além de inevitavelmente levar à [[aculturação]].<ref>
Mas a questão não é simplesmente polarizada e está cheia de nuanças e contradições. Antropólogos e outros ativistas têm assumido a religião indígena e fazem proselitismo dela.<ref name="Simonian"/> Muitas comunidades adotaram sinceramente o cristianismo e o praticam há tempo, exigindo a presença de padres e pastores.<ref name="mercado-de-almas"/><ref name="catequização"/> Somente de índios evangélicos existem 210 mil, segundo o Censo de 2010.<ref name="Luchete">
===Identidade indígena===
Tem emergido um debate sobre o que é "ser indígena". Para os ocidentais os indígenas de costume ainda são identificados como integrantes de culturas silvícolas e como indivíduos seminus cobertos de pinturas corporais e adereços plumários. Contudo, o contato com a civilização dominante levou muitos a absorver elementos culturais e hábitos ocidentais — roupas, língua, moradia em casas, uso de aparelhos eletrônicos, frequência em universidades, etc. —, pondo em jogo a questão de até que ponto um indígena permanece identificado como indígena num contexto de ampla e rápida transformação sociocultural. Muitas vezes essa incorporação de ocidentalismos por indígenas é usada como justificativa para desqualificar sua condição de indígena e até mesmo para negar o direito à terra e o acesso a benefícios governamentais. A conceituação de "indígena" ainda está de modo geral dependente de um estereótipo físico e/ou cultural que tem implicações [[racismo no Brasil|racistas]] e que remete ao passado, e que desconsidera o fato de que as culturas originais, embora mantenham um caráter tradicionalista, nunca foram estáticas — elas evoluíram. Este estereótipo foi impresso massivamente nas comunidades por força da opressão colonialista. Tentativas de libertação desses preconceitos são um fenômeno recente e têm gerado controvérsia, mas muitos indígenas, com base em sua ancestralidade e numa percepção dinâmica de cultura, já começam a reivindicar o direito à diversidade como parte essencial do direito à autodeterminação, o direito de permanecerem sendo "indígenas" mesmo que sua cultura e aparência se modifiquem.<ref>
== Dia dos Povos Indígenas ==
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[[File:Terra Indígena Cantagalo celebra Dia do Índio - Rio Grande Rural.webm|thumb|Celebração do 19 de abril na Terra Indígena Cantagalo, Rio Grande do Sul, em 2018. Vídeo.]]
O Dia dos Povos Indígenas, 19 de abril, foi criado pelo presidente brasileiro [[Getúlio Vargas]] através do [[decreto-lei]] 5.540, de 1943, então com o nome Dia do Índio,<ref>{{Citar web|URL
O nome da data foi alterado em 8 de julho de 2022 para Dia dos Povos Indígenas através da Lei 14.402. O projeto de alteração partiu da deputada [[Joênia Wapichana]], com a justificativa de que o termo "índio" estimula a perpetuação de estereótipos e é considerado pelos povos originários como preconceituoso, mas também serve para deixar explícita a diversidade dos povos que habitam e habitaram o Brasil. O projeto foi vetado pelo então presidente Jair Bolsonaro, mas o Congresso derrubou o veto no dia 5 de julho.<ref>
== Ver também ==
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* [[Mário Juruna]]
* [[Joênia Wapichana]]
* [[Alegoria do Indígena (Brasil)]]
{{Referências}}
{{Bibliografia sobre os povos indígenas do Brasil}}
== Ligações externas ==
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* [https://osbrasisesuasmemorias.com.br/ Os Brasis e suas Memórias]
* [http://www.ufpe.br/carlosestevao/ Coleção Etnográfica Carlos Estevão] ([[Museu do Estado de Pernambuco]])
; Filmes
* [http://www.childrenoftheamazon.com Children of the Amazon, a documentary on indigenous peoples in Brazil]
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