Por Memória Globo

Renato Velasco/Memória Globo

Zuenir Ventura tinha “horror a mosquito e muito medo de cobra” quando decidiu se aventurar pela Amazônia para cobrir o assassinato do ambientalista Chico Mendes. Após um mês de investigação, em 1989, ele produziu uma série de reportagens para o Jornal do Brasil que venceu o Prêmio Esso e o Vladmir Herzog de jornalismo. O Acre de Chico Mendes foi publicado em livro como Chico Mendes – Crime e Castigo (2003), com direito a uma nova temporada na região para coletar outras informações. Àquela altura, o jornalismo de imersão de Zuenir Ventura, com esforço de deslocar pontos de vista, já era sucesso de público – 1968, O Ano que Não Terminou (1988) vendera mais de 400 mil cópias -; e de crítica – Cidade Partida, livro sobre a violência no Rio de Janeiro, fora contemplado com o Prêmio Jabuti (1994).

O jornalista tem que ter humildade e cuidado com a apuração de denúncias. Porque a tentação do açodamento é muito grande. Não pode lançar o que é uma impressão e não a certeza”.
— Zuenir Ventura

Início da carreira

Natural de Além Paraíba, interior de Minas Gerais, Zuenir Ventura foi pintor de parede, office-boy, jogador de basquete, arquivista, professor universitário e jornalista – mas isso, diz que foi por acaso. Fato é que, em seus mais de 60 anos de carreira, Zuenir Ventura passou pelos principais periódicos do Rio de Janeiro. Seu trabalho cuidadoso culminou com a nomeação para ocupar a cadeira de número 32 na Academia Brasileira de Letras, em 2014, sucedendo Ariano Suassuna.

Filho de José Ventura, pintor de parede, e Herina de Araújo, dona de casa, Zuenir Carlos Ventura nasceu no dia 1º de junho de 1931. Criança, mudou-se com a família para Nova Friburgo, na região serrana, onde ajudava o pai no ofício, sem nunca abrir mão dos estudos – uma exigência da mãe. Quando era adolescente, ganhou uma bolsa de estudos no colégio, em troca de lecionar para o primário. Construiu o sonho de ser professor – e, por isso, aos 20 anos, mudou-se para o Rio para cursar Letras Neolatinas, na Universidade do Brasil (atual UFRJ).

Teve como professores grandes literatos, como Manuel Bandeira, Alceu Amoroso Lima e Cleonice Berardinelli. Aproximou-se dos seus mestres. Um deles, Celso Cunha, professor da Faculdade de Jornalismo da mesma universidade, o chamou para dar aulas de português; outro, Hélcio Martins, arrumou-lhe um emprego no arquivo da Tribuna da Imprensa. Para virar repórter, foi um pulo.

“Tudo na minha vida aconteceu por acaso. Fui ser professor por acaso e descobri a minha vocação defendendo o meu dinheirinho. Eu estava trabalhando no arquivo (da Tribuna da Imprensa) alguns anos, e o Hélcio (Martins) sempre insistia para eu descer para a redação. Carlos Lacerda era o diretor do jornal e um dia estava procurando alguém na redação para escrever um artigo sobre Albert Camus, que tinha morrido em um desastre. Estava passando e me candidatei, porque o Camus era uma das minhas paixões jornalísticas”, contou Zuenir em depoimento ao Memória Globo.

Zuenir Ventura e o diretor Marcos Schechtman durante workshop da novela Salve Jorge, 2013 — Foto: João Miguel Júnior/Globo

1968, o ano que não terminou

O artigo foi um sucesso, e Zuenir recebeu uma proposta para se tornar redator. Nunca mais deixou a redação. Em 1960, Zuenir passou uma temporada na França: ganhou uma bolsa de estudos no Centro de Formação de Jornalistas, de Paris, e contribuiu para a Tribuna da Imprensa de lá. Ao retornar para o Brasil, foi editor internacional do Correio da Manhã, diretor de redação da revista Fatos & Fotos, chefe de reportagem da revista O Cruzeiro, editor-chefe da sucursal-Rio da revista Visão. Em 1967, foi um dos criadores do jornal alternativo, O Sol.

Zuenir Ventura, como mesmo gosta de dizer, era obcecado pelos movimentos sociais e políticos da década de 1960, no Brasil e no mundo. Viveu a década intensamente: cobriu diversos protestos e passeatas e, em 1969, realizaria sua primeira grande série de reportagens que, posteriormente, se tornaria um best-seller. 'Os Anos 60 – A Década que Mudou Tudo', foi realizada a pedido da Editora Abril e, em 1989, publicada como '1968: O Ano que Não Terminou'. O livro, que vendeu mais de 400 mil cópias, serviu, posteriormente, de base para o escritor Gilberto Braga pensar a minissérie 'Anos Rebeldes' (1992), da Globo.

1968, para Zuenir, é um ano difícil de esquecer. Logo depois que o presidente Costa e Silva baixou o Ato Institucional número 5, que intensificou a repressão na ditadura militar, o jornalista, assim como dezenas de outros colegas, foi preso. Permaneceu em cárcere por três meses, por trabalhar na revista Visão. “Eu fiquei preso com o psicanalista Hélio Pellegrino. Não fui torturado, embora ficasse sempre com medo, mas acabei fazendo de graça a análise que todo Rio de Janeiro queria fazer. Conversávamos dia e noite. E nessa, ia visitá-lo, todo dia, Nelson Rodrigues. O Nelson Rodrigues era odiado por nós porque apoiava a ditadura. Ele ia lá todo dia, sofrendo, culpado, porque ele gozava o Hélio em suas colunas e se sentiu responsável pela prisão. O Nelson acabou me libertando porque, quando conseguiu soltar o Hélio, o Hélio falou que só sairia se eu também fosse. E fui”.

Em 1971, Zuenir Ventura retornou à chefia de redação da Visão, onde trabalhou com Vladimir Herzog. Em 1977, se tornou chefe de redação da Veja Rio. Pouco tempo depois, em 1981, recebeu um convite para ser o diretor da sucursal do Rio da revista IstoÉ. Em 1985, Zuenir foi convidado por Marco Sá Corrêa para reformular o 'Caderno B', do Jornal do Brasil: ele ajudou a criar os suplementos Ideias e Ensaios, seções que tratavam de literatura, e a revista Programa.

Foi de Marcos Sá Corrêa que partiu o convite para cobrir a morte de Chico Mendes, na Amazônia – uma de suas maiores aventuras. O ambientalista fora assassinado em dezembro de 1988, e Zuenir Ventura partiu para investigar o crime no início de 1989, como repórter especial. Voltou de lá com uma série de reportagens premiada e um filho. “Entre as heranças do Acre, personagens maravilhosos, eu acabei trazendo também um filho, porque a principal testemunha do caso Chico Mendes era um menino de 13 anos, que ficava entre o quartel e a delegacia, protegido, teoricamente, pela polícia, porque ele era ameaçado pelos assassinos do Chico Mendes. Ele ia realmente morrer. Tinha um complô no quartel para matar o Genésio. O coronel me ligou, e vimos uma solução. Foi assim que, um dia, eu cheguei com o Genésio debaixo do braço, apresentei para minha mulher e os dois filhos. Ele ficou sob minha tutela até os 18 anos”.

Zuenir lembra que passou 40 anos da vida dando aula de jornalismo, ensinando aos alunos que “o repórter não interfere no acontecimento, tem que manter distância.” E, de repente, levou a notícia para dentro de casa. Mas ele não se arrepende.

Pela série de reportagens, Zuenir venceu os dois maiores prêmios de jornalismo do Brasil: o Prêmio Esso e o Vladimir Herzog – cujo troféu foi entregue pela viúva de Vlado, amigo assassinado durante a ditadura.

Zuenir Ventura em um seringal no Acre ao lado da primeira mulher de Chico Mendes, 1989 — Foto: Acervo Pessoal Zuenir Ventura

Cidade partida

Em 1993, envolvido com a criação do Viva Rio, organização voltada para a criação de políticas públicas para inclusão social na cidade, Zuenir recebeu um convite de Luiz Schwarcz, editor de livros, para escrever sobre violência no Rio de Janeiro. Assim nasceu 'Cidade Partida', que depois ganharia o Prêmio Jabuti, na categoria Reportagem. “Tinha acontecido a chacina de Vigário Geral e meu amigo Luiz Eduardo Soares me passou o telefone de dois garotos que moravam lá. Combinamos um encontro e fui a Vigário Geral como curioso, jornalista e cidadão. Porque aquilo foi um marco na violência no Rio de Janeiro. O que me surpreendeu é que eles não estavam com raiva, ódio, querendo vingança. Queriam justiça”. Durante dez meses, Zuenir – ou “o coroa responsa”, como ficou conhecido na região – frequentou a comunidade: passava a maior parte do dia e da noite conversando com moradores. A experiência recheou o livro, que marcava a desigualdade social na capital fluminense.

O Globo

Em 1999, Zuenir Ventura encerrou sua trajetória no Jornal do Brasil e se tornou colunista do jornal O Globo. Seus artigos, às quartas e sábados, falam de assuntos do cotidiano, versando sobre política, cultura e sociedade. Até 2003, ele publicava no Segundo Caderno. Depois, passou para o Primeiro Caderno, na página de Opinião. “A coluna tinha um viés cultural. Porque eu sou sempre ligado à cultura. Mas quando eu fui para o Primeiro Caderno no Globo, fiquei muito à vontade para escrever sobre o que me der na telha. Eu sempre tive espaço e liberdade no jornal. E sou curioso em uma porção de coisa, gosto de observar. O cronista trabalha muito com os olhos”. Para Zuenir, o principal desafio de ser colunista é enfrentar “o mal da falta de assunto”. Mas, segundo ele, “todo mundo passa por isso”.

Em seus anos como repórter e colunista, Zuenir Ventura colecionou histórias. Em 2005, o escritor juntou as mais curiosas no livro 'Minhas Histórias dos Outros' que narrou, entre outros, o caso de quando entrevistou Fidel Castro, em Cuba. O ano era 1995, e Zuenir viajou para a ilha caribenha na companhia do escritor Rubem Fonseca para participar de um júri literário na Casa das Américas. Um belo dia, foram convidados para jantar no palácio do presidente. “A entrevista demorou horas, porque o Fidel falava muito. Quando a entrevista acabou, o guarda-costas dele tirou a fita e disse: ‘Não, não é para publicar!’. Como não? E ele me disse só quando Fidel morresse…. Mas como Fidel não vai morrer… Eu lembrava de uma ou outra resposta, mas não dava pra reconstituir toda a entrevista”.

'Minhas Histórias dos Outros' foi relançado em 2021. A nova edição traz histórias como o final feliz da testemunha chave da morte de Chico Mendes, Genésio Ferreira da Silva, adotado por Zuenir, e os bastidores da primeira entrevista longa dada por Drummond a um jornalista.

Troféu da ONU

Em 2008, Zuenir Ventura recebeu da ONU um troféu especial por ter sido um dos cinco jornalistas que “mais contribuíram para a defesa dos direitos humanos no país nos últimos 30 anos”. Neste ano, o jornalista publicou o livro reportagem '1968: O Que Fizemos de Nós', investigando a maneira como os jovens da primeira década do século XXI se relacionavam com seus próprios corpos, as drogas e a política, ouvindo os filhos dos ativistas da década de 1960 – refletindo os motivos pelos quais os ideais liberais daquele tempo adormeceram. “Esse livro era uma revisita: como é a juventude daquela época e como é a juventude, hoje. Eu fui a algumas festas raves e, para mim, foi um choque cultural. Eu, velhinho, no meio de 20 mil pessoas e com uma amiga que podia ser minha neta. Abordei as heranças importantes que 1968 deixou: o movimento feminista, o de negros, o movimento gay e o ecológico. E uma herança maldita, que são as drogas”.

Em 2010, foi eleito “O jornalista do ano” pela Associação dos Correspondentes Estrangeiros. Três anos depois, com as manifestações que tomaram as ruas do país, Zuenir escreveu artigos e deu entrevistas a fim de compreender o que estava ocorrendo na sociedade brasileira. Naquele momento, as comparações com os movimentos de 1968 eram inevitáveis. Em 2012, o jornalista mesclou memórias e ficção no livro 'Sagrada Família', sobre os amores que resistem ao tempo.

Ziraldo, Nina Chavs, Zuenir Ventura e Luís Fernando Veríssimo — Foto: Acervo/Agência O Globo

Cinema e samba

Convidado por João Moreira Salles, Zuenir Ventura codirigiu e, depois, roteirizou dois documentários de Izabel Jaguaribe, lançados em 2000 e 2003: 'Um Dia Qualquer' e 'Paulinho da Viola: Meu Tempo é Hoje'. “Foi uma experiência muito rica nos dois casos. No primeiro, nós escolhemos personagens desconhecidos, anônimos, moradores de favela, que não fizeram nada, não virariam notícia de jornal. Depois, escolhemos o Paulinho da Viola. Ele é uma pessoa muito reservada e incrível, aquela elegância que ele tem no palco, na vida diária. Nós passamos quase que um ano frequentando diariamente a casa do Paulinho”.

Jornalismo e história

Por frequentemente escrever sobre temas passados, Zuenir Ventura gosta de ressaltar que o jornalismo não deseja “concorrer com historiadores”. Ao Memória Globo, ele reflete: “A gente fornece matéria de primeira mão, aquilo que a gente vê primeiro, para o historiador trabalhar depois. É um trabalho de garimpagem, de campo, vendo o que aconteceu, registrando. É um trabalho humilde, modesto, de preparar matéria-prima para o historiador aprofundar”.

Seu trabalho, com o passado e o presente, foi reconhecido com o maior dos méritos para um escritor brasileiro: em 2014, Zuenir Ventura foi eleito para a Academia Brasileira de Letras, ocupando a cadeira deixada pelo paraibano Ariano Suassuna. No dia da posse, em outubro, Zuenir foi recebido por Cleonice Berardinelli, que foi sua professora na faculdade e, a partir de então, colega imortal.

EXCLUSIVO MEMÓRIA GLOBO

Depoimento - Zuenir Ventura: Opinião sobre sua coluna

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Depoimento - Zuenir Ventura: Ética no jornalismo

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Depoimento - Zuenir Ventura: Impasses éticos no jornalismo

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FONTE

Depoimento de Zuenir Ventura concedido ao Memória Globo em 22/12/2011.
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