No início, Otavio Muller de Sá recebeu um mimo do destino. Filho do advogado José Francisco Ferreira de Sá e da dona de casa Teresa Cristina Muller de Sá, esse carioca do Leblon foi ajudado por um parente famoso para ter a primeira oportunidade em uma novela: o primo Cazuza. Ele e sua tia Lucinha Araújo pediram e o autor Gilberto Braga conseguiu um teste para a novela 'Vale Tudo', um dos maiores sucessos da teledramaturgia da história da TV brasileira. Otavio Muller fez a cena – dirigida por Miguel Falabella, contracenando com Deborah Evelyn – e passou. Em 1988, ele se transformou no Sardinha, seu primeiro e até hoje um dos mais marcantes personagens de sua carreira.
Início da carreira
Péssimo no colégio, Otavio Muller se encontrou no curso de teatro. A motivação artística estava na família. “A irmã do meu pai, por exemplo, é a cantora Wanda Sá, que era casada com Edu Lobo. Meus primos são filhos do Edu Lobo”, conta. Cursou a famosa Casa das Artes de Laranjeiras, CAL, e ali encontrou uma escola que o instigou e professores que o inspiraram. “Trabalhei com pessoas incríveis como o Sérgio Britto em interpretação e o Luís Antônio Martinez Corrêa, também interpretação. Angel Vianna, no trabalho de corpo, Glorinha Beutenmüller, no trabalho de voz, além do próprio Yan Michalski, diretor artístico da casa, além de crítico do Jornal do Brasil e um estudioso do teatro brasileiro”, analisa.
Início na Globo
Nesse período, enquanto trabalhava como escriturário em um banco, Otavio montou 'Ubu rei', espetáculo surrealista do francês Alfred Jarry, com direção do professor Luís Antônio Martinez Corrêa. Ele interpretava o protagonista, o descompensado Ubu. Era um esquema “ação entre amigos e familiares” – que compravam os ingressos para as sessões de sábado e domingo. Chamado pelo amigo Luís Antônio, Cazuza apareceu para ver um dos ensaios. Ele iria fazer a música do espetáculo. “Cazuza era primo, mas sabe quando tem uma distância de idade e tem uma hora que fica na mesma geração, os mesmos gostos, coisa e tal? Então, eu olhava o Cazuza como se fosse um gigante – e ele nem era tão famoso assim. Mas ele já era um artista, sempre foi gênio”, revela. Ao fim do ensaio, Cazuza se aproximou do primo e começou a se interessar por sua vida e carreira. Ficou tão empolgado que insistiu com a mãe, Lucinha, que, por sua vez, falou com Gilberto Braga, que, inspirado nas sardinhas de Otavio Muller, escreveu um personagem para ele em 'Vale Tudo'.
'Vale Tudo' (1988): cena em que Afonso (Cássio Gabus Mendes) se aconselha com Sardinha (Otavio Muller) após descobrir as armações de Maria de Fátima (Gloria Pires) e César (Carlos Alberto Riccelli). A novela marca a estreia de Otavio Muller na Globo.
Após ser aprovado no teste, lá estava ele na tela, com seu Sardinha – e suas sardinhas. “Eu fazia mais ou menos eu mesmo. Ele tinha um certo humor e era um grande amigo, principalmente da personagem da Lídia Brondi [Solange]. Nós trabalhávamos numa revista de moda que chamava Tomorrow”, explica Otavio, lembrando uma cena bem marcante: “Solange queria engravidar e pede para o melhor amigo engravidá-la e… eu falho na hora. Foi uma cena muito engraçada. Fiquei nervoso de fazer”, se recorda.
Ao fim da novela, Cazuza e tia Lucinha fizeram uma grande festa para comemorar a excepcional recepção. Lá, Otavio encontrou o diretor Roberto Talma, que estava preparando uma nova novela chamada 'O Sexo dos Anjos' – e o convida para ser Rogê. “Ele é um personagem que eu faço bastante que é aquele coadjuvante com carinha de protagonista. Eu criava um problema para o casal principal, que era o Felipe Camargo e a Isabela Garcia”, conta Otavio. “Eu tenho nessa novela uma transa de ser muito ciumento, fico enchendo o saco da Isabela. Ele é um paranoico, um doente que tem também já um traço de humor”, analisa. Ao fim da trama, o diretor Talma deixou na mão de Otavio criar o seu próprio final. “Como o meu personagem estava ficando maluco de tanto ciúme, eu inventei que ele pirou tanto, que virou Hare-Krishna. Estava pirado zanzando em Nova York com um grupo”, conta.
'O Sexo dos Anjos' (1989): cena em que o Emissário (Felipe Camargo) discute com o Anjo da Morte (Bia Seidl), por não achar justa a partida precoce de Isabela (Isabela Garcia). Com Rogê (Otavio Muller).
O Dono do Mundo
Ao fim do curso na CAL, sua peça de formatura, chamado 'Ideias e Repetições, um Musical de Gestos', dirigido por Bia Lessa, se tornou um sucesso estrondoso. Depois, se juntou a um outro grupo com Fernanda Torres, Cláudia Abreu, Júlia Lemmertz, Marcos Oliveira, e o teatro se tornou sua principal paixão. Mas, como a grana era curta, ele pediu uma vaga na próxima novela escrita por Gilberto Braga e dirigida por Dennis Carvalho: 'O Dono do Mundo'. “Eu fazia um médico que trabalhava com Felipe Barreto [Antônio Fagundes], um grande cirurgião plástico. Felipe dá um jeito de encontrar a personagem de Malu Mader [Márcia], na lua de mel dela e os dois transam, antes de ela transar com o próprio marido”, conta. Desgraçado após a traição da Márcia, Felipe e Arlindo vão morar juntos. Segundo Otavio, o público não gostou do fato de a traição ter tido uma colaboração ativa de Márcia. “Foi uma das primeiras vezes que eu convivi com a rejeição”, revela.
'O Dono do Mundo' (1991): cena em que Felipe (Antonio Fagundes) consegue enganar Lucas (Hugo Carvana), convencendo-o de que o responsável pelo erro médico que quase matou sua irmã, Ester (Odete Lara), foi o jovem médico Arlindo (Otavio Muller).
Memorial de Maria Moura
O trabalho seguinte de Otavio Muller foi um dos mais marcantes para ele por, além de ter um profundo processo de composição, ser um vilão, como ele diz. Ele atuava junto aos outros vilões da série, Ernani Moraes e Zezé Polessa. Seu personagem era apaixonado pela protagonista Maria Moura, feita por Glória Pires. “Nós éramos primos dela, eu e o personagem do Ernani, que era casado com a Zezé Polessa. Ao mesmo tempo, a gente a odiava, a gente queria os bens dela, as terras dela e eu, mesmo nojento, ainda dou uma paquerada nela. Ela tinha vontade de vomitar”, analisa.
O personagem de época tinha uma caracterização pesada, com vestimentas e maquiagem bem marcantes. Sugestão de Carlos Manga, grande nome do cinema da época das chanchadas da Atlântida, e responsável pelo projeto de adaptar obras da literatura para a televisão. “Eu me lembro do Manga, na hora em que eu estava fazendo um teste de imagem, falar: ‘Cara, você tinha que ter um queloide na cara, Otavio’. A minha barba era horrorosa, grande feia. Sabe aquela barba descuidada? E aí abria um buraco aqui e fazia esse queloide” e conta ainda que: “tinha que pintar o dente de preto, era uma coisa nojenta porque tinha que almoçar com aquela porcaria e para tirar era uma confusão. A unha era suja, a mão inteira. Eu era um nojo! Todas essas colaborações compõem na construção de um personagem”, analisa. E ainda tinha a experiência de ter que andar de cavalo, que caiu várias vezes, e o fato de gravar fora de estúdio. “Eu sou apaixonado pela essa ideia de ir para locação. No caso do 'Memorial' ainda tinha um desdobramento épico porque não era um lugar só. Íamos para Nova Friburgo, para Ouro Preto, estávamos toda hora nos deslocando", revela.
Dona Flor e Seus Dois Maridos
Após algumas participações especiais em séries, novelas e até uma passagem rápida pelo SBT, ele volta à Globo para fazer 'Dona Flor e seus Dois Maridos'. Seu personagem é inspirado no cineasta baiano Glauber Rocha, um dos ícones do chamado cinema novo. Novamente locação e caracterização. Agora, Salvador, e uma roupa branca, um terno “meio vagabundo, meio de linho”, como se lembra. “Nós éramos um grupo de amigos boêmios do Vadinho, feito por Edson Celulari. Eu ficava com uma câmera de super-8, filmando tudo que acontecia. E tenho um momento superimportante em que eu faço um discurso. A gente está na casa da Flor e aí tem umas cenas coletivas e eu discurso no enterro do Vadinho. Sabe quando o cara faz aquela homenagem para o defunto? Um discurso mega castroalviano, glauberiano”, destaca. Foi também uma oportunidade de trabalhar de novo com Mauro Mendonça Filho, seu amigo desde a época de CAL, e quem ele chama carinhosamente de Maurinho. “Ele é um grande diretor de ator”, opina Otavio. E não é porque eles têm elos e cumplicidade. É quase o inverso: porque ele é bom que Otavio acabou se aproximando.
Minissérie Labirinto
Em 1998, ele fez mais uma obra de Gilberto Braga: 'Labirinto'. Na história, era casado com a personagem de Isabela Garcia e filho de Paulo José. “Era uma coisa seríssima para mim porque o Paulo é um mito”, revela. Mas a maior empolgação era contracenar com Yolanda, ou Yoyô, personagem de Isabela Gracia. “A Isabela era uma maluca. Ela fazia tipo uma mulher que queria bombar de rica, de socialite, de celebridade e eu ali ficava correndo atrás dela”, se lembra. “Em uma das cenas finais, estávamos numa boate, em uma festa. Nós éramos ricos, e ela estava querendo aparecer a qualquer custo. Aí, uns eunucos a trazem enrolada num tapete e jogam o tapete no meio da boate cheia de gente. Desenrolam o tapete e ela sai pelada! E eu morrendo de vergonha tentando cobri-la! A gente acaba virando um casal superengraçado da minissérie, que era policialesca, detetive. Sempre acontece isso na minha carreira, o sopro cômico da novela, o núcleo cômico”, analisa.
Os Maias
Em 2001, Otavio estava no meio da temporada da peça 'Megera Domada', de Shakespeare, com a direção de Mauro Mendonça Filho, quando o diretor Luiz Fernando Carvalho o chamou para fazer o clássico português de Eça de Queiroz. Ele não tinha lido o livro e foi surpreendido quando descobriu, já na reunião inicial, o tamanho da personagem. “Os trabalhos menores foram todos feitos com muita alegria, mas de fato 'Os Maias' é um desses importantes. Estão no mesmo nível: Sardinha, Irineu ['Memorial de Maria Moura'] e Dâmaso Salcede”, revela. O Dâmaso é sujeito exagerado, afetado, odiado por todos os outros personagens, metido a francês e fofoqueiro. “Ele é inconveniente. Eu tenho uma cena com Ana Paula Arósio, que eu vou falar com ela e ela me dá um tapa na cara. Ana Paula é intensa. Eu voei longe", conta. Novamente, a caracterização da personagem foi importante, com luva e bengala, e, outra vez, o fato de filmar em locação, desta vez em Portugal. “[Luiz Fernando Carvalho] capricha na maneira de contar a história. Parece 'O leopardo', do Visconti”, analisa.
Sob Nova Direção
'Sob Nova Direção' (2004): no episódio de estreia, Pit (Ingrid Guimarães) e Belinha (Heloísa Perissé) copiam um drink da concorrência para aumentar o público do próprio bar. Com Franco (Luiz Carlos Tourinho), Moreno (Luis Miranda) e Horácio (Otavio Muller).
No final do ano, a Globo costuma apresentar programas especiais que podem emplacar na grade da TV do ano seguinte – a depender da aceitação do público ao episódio teste. Em 2003, Otavio interpretou Horácio em 'Carol & Bernardo', um desses programas com texto de Bruno Mazzeo e Claudio Torres, e direção, novamente, de Mauro Mendonça Filho. Curiosamente, o programa não foi aprovado, mas seu Horácio, sim. O que o articulado Otavio Muller fez? Pediu licença para os autores das obras e encaixou seu personagem no programa que tinha conseguido passar de ano. Era o início do sucesso de 'Sob Nova Direção'. “Eu acho que é outro desses personagens grandões”, opina Otavio. “É a primeira vez que eu faço seriado. Eu já estava com muita vontade de fazer. Tem uma coisa bem de teatro. Vira um grupo mesmo”, analisa. Seu Horácio é um malandro que mora em uma Kombi, com um tom rasgado, exagerado. O perfil de Otavio. “Novela? Eu não sou galã. Meu tipo é um tipo esquisito, eu sou feio, estranho. O meu tipo é para personagens que cabem ‘grande’ em minissérie e em seriado”, revela.
'Sob Nova Direção' (2004): na estreia da 2ª temporada, enquanto Pit (Ingrid Guimarães) e Belinha (Heloísa Perissé) estão às voltas com a perda do dinheiro das férias em Punta Del Este, Horácio (Otavio Muller) tenta transformar Franco (Luiz Carlos Tourinho) num líder para Moreno (Luis Miranda) – sem sucesso.
Tapas e Beijos
Em 2016, participou da minissérie em quatro episódios 'Alemão, os dois lados do Complexo', com direção de José Eduardo Belmonte.
Aconteceu uma situação parecida com 'Programa Piloto', em 2010. A série não foi aprovada – mas a equipe (com elenco encabeçado por Fernanda Torres e Andréa Beltrão) foi. Para aproveitá-los, criaram outro programa. Nascia assim 'Tapas & Beijos'. “Acho o Claudio Paiva um dos grandes autores da TV brasileira. Um cara que vem lá da 'TV Pirata' e passa por 'Grande Família', 'Sai de Baixo' e chega a 'Tapas & Beijos'. Texto bom é o que a gente quer na vida e o diretor deixando a gente fazer”, analisa. Para Otavio, o desafio foi exatamente “diminuir” seu exagero natural para compor o seu Djalma, dono de uma loja de aluguel de vestidos de noiva. Um sujeito sisudo, mas que Otavio não conseguiu deixar de injetar humor. “Buscar o pequenininho é uma pretensão, uma tentativa que eu corro atrás”, analisa. Criou-se novamente um grupo forte, unido, como uma trupe. “É de novo um trabalho que chorei quando acabou, é aquele que eu fiquei viúvo mesmo", revela.
'Tapas e Beijos' (2011): cena do episódio “O clima é de festa em Copacabana”, da 2ª temporada, em que Flavinha (Fernanda de Freitas) surpreende Djalma (Otavio Muller) apresentando-se na boate La Conga.
Zorra
Após 'Tapas e Beijos', outro desafio: o “novo” Zorra. De 2016 a 2020, Otavio Muller fez parte do programa humorístico. “Eu nunca tinha feito quadros curtos, monte de personagem de composição, todos diferentes. E um texto bom para caramba, falando do agora, criticando”, conta. O 'Zorra', que substituiu o 'Zorra Total', trazendo uma nova estrutura e elenco, saindo do estúdio e trazendo um humor atualizado com os acontecimentos cotidianos. “O 'Zorra' tem uma acidez, uma contemporaneidade. Às vezes a piada não mora no superriso, mora no ‘caramba!’. E às vezes também mora no superriso”, analisa.
Nova Escolinha do Professor Raimundo
De 2015 a 2020 na mesma toada de programas humorísticos renovados e com um humor ainda mais popular, ganhou a missão de reviver o famoso Baltazar da Rocha na nova versão da 'Escolinha do professor Raimundo'. Deveria prestar homenagem a Walter D’Ávila, um dos humoristas preferidos de Chico Anysio, que conseguia fazer graça com pouquíssimos elementos. “Ele levanta, o Chico Anysio começa a rir e ele só fala uma frase. Eu me perguntei: Como é que eu vou fazer isso?", admite o nervosismo. Foram semanas tensas. Quando entrou no ar, porém, a 'Escolinha na Globo' foi um sucesso. “E é isso, é comédia popular, família, sendo feita ali domingo de tarde e que funciona imensamente, é isso”, analisa.
Também em 2015, fez parte do elenco da novela 'A Regra do Jogo', de João Emanuel Carneiro. Em 2019, viveu Carlos, um marido agressivo e machista na série 'Segunda Chamada'. Em 2022, viveu Paco Valentim na novela 'Um Lugar ao Sol', de Lícia Manzo. O personagem se envolvia com Nicole (Ana Baird) e travava uma luta com a ex-esposa Helena (Claudia Mauro) pela autonomia da filha Mel (Samanta Quadrado), uma adolescente com síndrome de down.
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