Nascida na Praça Mauá, no Rio de Janeiro, em 11 de março de 1933, Léa Lucas Garcia de Aguiar tornou-se atriz em um momento da história em que esse não era um trabalho comum para mulheres negras. Filha de Stela Lucas Garcia e José dos Santos Garcia, passou a morar com sua avó aos 11 anos, quando sua mãe morreu. Desde jovem, demonstrou o desejo de se envolver com o universo artístico, mas em outro campo. Queria cursar Letras para ser escritora. Seu destino mudou ao conhecer Abdias Nascimento. O dramaturgo e ativista apresentou a ela a sua estante de livros e sugeriu a leitura das tragédias gregas. Depois, a convenceu a subir no palco pela primeira vez, na peça 'Rapsódia Negra' (1952), do próprio Abdias, encenada pelo Teatro Experimental do Negro. A partir de então, a paixão pelas artes cênicas se impôs. Trabalhando em teatro, TV e cinema, Léa Garcia consolidou uma carreira de papéis marcantes como a Rosa, de 'Escrava Isaura', novela que a tornou conhecida do público, e venceu a barreira dos personagens tradicionalmente destinados a atrizes negras. Tornou-se, assim, uma referência para jovens atores e admirada pela qualidade de suas atuações.
Depoimento ao Memória Globo - Léa Garcia: Formação (2017)
No teatro, uma das peças de destaque que fez no início de sua trajetória foi 'Orfeu da Conceição' (1956), de Vinicius de Moraes. Cotada primeiro para ser Eurídice, Léa Garcia se encantou com a personagem Mira e conseguiu o papel. Os ensaios se realizaram na casa do próprio Vinicius e a estreia aconteceu no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, com cenários de Oscar Niemeyer. No elenco estavam Haroldo Costa, Zeni Pereira, Pérola Negra e Cyro Monteiro.
Um filme foi feito em 1959, a partir da peça, com o nome 'Orfeu Negro' e direção do francês Marcel Camus. O longa-metragem levou a Palma de Ouro no Festival de Cannes em 1959 e o Oscar de melhor filme estrangeiro em 1960. Em vez da Mira, a atriz viveu a Serafina na produção. "Esse filme ganhou vários prêmios, foi muito bom não só para os realizadores, como também para a juventude negra, para o negro se ver no cinema retratado, de uma forma digna", diz ela. “As gravações eram ótimas, os franceses se apaixonaram pelos atores, nos acordavam cantando ‘manhãã’, com sotaque”.
Léa também concorria ao prêmio de atuação em Cannes. "Esse personagem me valeu o segundo lugar na Palma de Ouro [referindo-se ao prêmio de Melhor Atriz do Festival de Cannes] e quem ganhou o primeiro lugar foi Simone Signoret em 'Almas em Leilão'. Aliás, nada mais do que justo, e eu vou comentar uma coisa, a minha querida atriz que era a Anna Magnani ficou em terceiro lugar, o que me valeu ficar dentro de casa 15 dias sem sair, porque eu achei uma injustiça e disse, eu não posso ter tirado o segundo lugar e a Anna o terceiro."
Estreia na TV
A estreia em televisão se deu no Grande Teatro da TV Tupi, na década de 1950. Na emissora, participou também do programa 'Vendem-se Terrenos no Céu', em 1963. O convite para trabalhar na Globo aconteceu em 1970, quando ela integrou o elenco de 'Assim na Terra como no Céu', de Dias Gomes. Na trama, era Dalva, empregada do personagem de Jardel Filho. Ele inventa que ela era uma princesa de Tobocobucu e passa a frequentar as festas dos grã-finos acompanhado da empregada.
Depois, fez 'Minha Doce Namorada' (1971), de Vicente Sesso, dirigida por Daniel Filho, Régis Cardoso e Fernando Torres, e 'O Homem que Deve Morrer' (1971), de Janete Clair, novela que trazia a história de dois casais inter-raciais, novidade à época. Léa Garcia trabalhou também na TV Rio, onde atuou em 'Os Acorrentados' (1968), de Janete Clair, ao lado Dina Sfat, com Beth Faria, Monah Delacy e Ivone Hoffmann.
Selva de Pedra
Na Globo, a atriz teve a oportunidade de participar do primeiro programa gravado inteiramente em cores no país, 'Meu Primeiro Baile', Caso Especial exibido em 1972. No mesmo ano, foi convidada para ser a Elza, uma secretária em 'Selva de Pedra', novela de Janete Clair que teve bastante sucesso. “A novela tinha um enfoque muito forte, o drama da Dina Sfat com a Regina Duarte. A Regina era a namoradinha do Brasil, sempre muito querida pelo público, e a Dina também era querida, uma atriz forte”, compara.
Na emissora, atuou em 'Os Ossos do Barão' (1973), de Jorge Andrade, ao lado de Paulo Gracindo, e em mais uma novela de Janete Cair, 'Fogo Sobre Terra' (1974), quando contracenou com Herval Rossano, antes de ele se tornar diretor.
Em 'Fogo Sobre Terra', foi impactada pela censura. Depois de gravar uma cena em que matava o patrão, precisou regravá-la, para evitar o que poderia ser considerado “mau exemplo”.
Escrava Isaura
No ano seguinte, 1975, integrou o elenco de 'A Moreninha', de Marcos Rey. Duda, sua personagem, apaixonava-se por Simão, escravo que havia fugido e era interpretado por Haroldo de Oliveira. O maior sucesso da carreira aconteceu na próxima novela, 'Escrava Isaura' (1976), um fenômeno de audiência no Brasil e no exterior.
Foi a primeira vilã de Léa Garcia na TV, o que lhe rendeu também problemas, além do reconhecimento de público. A atriz sofreu inclusive violência física de pessoas que não conseguiam separar a personagem da vida real. Mas ela ressalta que a Rosa, na condição de escrava, lutava com as armas que tinha, o que era de difícil compreensão pelos telespectadores.
Escrava Isaura: Rosa morre do próprio veneno
Marina e o retorno à Globo
Fugindo dos personagens convencionais, Léa Garcia foi a Leila da novela 'Marina' (1980), de Wilson Aguiar Filho. Como professora de história de um colégio caro, em São Paulo, vê sua filha sofrer preconceito e tem a chance de contar na TV a verdadeira história de Zumbi dos Palmares. Ainda na Globo, participou da minissérie 'Bandidos da Falange', de Aguinaldo Silva, em 1983.
Depois de uma passagem pela TV Manchete, onde fez duas novelas na emissora, em seguida – 'Dona Beija' (1986), de Wilson Aguiar Filho, e 'Helena' (1987), de Mario Prata –, a atriz volta à Globo para atuar na minissérie 'Abolição' (1988), de Wilson Aguiar Filho, realizada em homenagem ao centenário da abolição da escravatura. Em outra produção densa, a minissérie 'Agosto' (1993), de Jorge Furtado e Giba Assis Brasil, que se passa durante a crise do governo Vargas, Léa Garcia viveu Sebastiana, uma mulher que não se dá conta da dimensão do momento político nem do que acontece em volta dela.
Outros trabalhos
O trabalho seguinte foi 'A Viagem' (1994), de Ivani Ribeiro, em que seu personagem era responsável por explicar à protagonista, vivida por Christiane Torloni, que ela tinha morrido. Um ano depois, Léa Garcia trocou de emissora mais uma vez, atuando em 'Tocaia Grande' (1995), de Duca Rachid, Mário Teixeira e Marcos Lazarini, e em Xica da Silva (1996), de Walcyr Carrasco, produções da TV Manchete. Nesta última, foi uma mulher de 150 anos que aparece em cima de uma pedreira, depois num ritual de magia negra. Para viver o personagem, precisou passar o dia inteiro com colágeno. A atriz atuou também na TV Bandeirantes, na novela O Campeão (1996), de Mário Prata e Ricardo Linhares.
Dirigida por Denise Saraceni, Léa Garcia volta à Globo e é escalada para o elenco de 'Anjo Mau' (1997), de Maria Adelaide Amaral. Na novela, pôde trabalhar com atrizes de quem gosta, como Taís Araújo. No papel de Cida, era mãe das personagens de Taís e de Luiza Brunet, que escondia sua origem. Depois de uma participação em 'O Clone' (2001), de Gloria Perez, a atriz tem uma nova experiência em outra emissora, a Record, nas novelas 'Cidadão Brasileiro' (2006), de Lauro César Muniz; 'Luz do Sol' (2007), de Ana Maria Moretzsohn; e 'A Lei e o Crime' (2009), escrita por uma série de roteiristas.
O retorno à Globo ocorre em 2016, em 'Êta Mundo Bom!', de Walcyr Carrasco, dirigida por Jorge Fernando, com quem ainda não havia trabalhado. Logo depois, fez 'Sol Nascente' (2016), de Walther Negrão, Júlio Fischer e Suzana Pires. Esteve também na terceira temporada de 'Mister Brau', de Jorge Furtado, em 2017. "Eu me diverti muito com o Lázaro Ramos e estive outra vez junto da Taís. O Lázaro deu várias entrevistas dizendo que o sonho dele era contracenar comigo. Mister Brau é um produto que chega muito bem junto a todo o segmento negro e esse casal está muito bem, uma referência muito boa para todos nós" destaca.
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Léa marcou presença em outras séries. Fez participações nas séries 'Assédio' (2018), 'Sob Pressão' (2018), 'Carcereiros' (2019), 'Arcanjo Renegado' (2020), todas da Globoplay. Em 2022, esteve em 'Independências', da TV Cultura.
Teatro
No teatro, atuou em mais de 20 peças, entre as quais 'Perdoa-me por me traíres', de Nelson Rodrigues, em 1959; 'Piaf', com Bibi Ferreira, em 1983; e 'Romanceiro da Inconfidência', dirigido por Vilma Dulcetti, em 2000. “Aquele texto maravilhoso de Cecília Meireles, o texto mais lindo e brasileiro que nós temos é o Romanceiro da Inconfidência. Ele é atualíssimo, nós dizíamos com uma vontade, com uma garra”, avalia. Em 2020, fez sucesso no elenco de 'A Vida Não é Justa', peça inspirada no livro da juíza Andréa Pachá.
Cinema
Entre os filmes dos quais Léa Garcia participou ao longo de sua trajetória, está 'As Filhas do Vento' (2005), vencedor de diversos prêmios no Festival de Gramado. Realizado por um diretor negro, Joel Zito Araújo, com um elenco de atores negros, a produção tem temática racial e conta uma história de redenção amorosa entre irmãs. Com o curta-metragem 'Acalanto' (2012), de Arturo Saboia, baseado num conto de Mia Couto, ela ganhou o segundo Kikito, em 2013. Em 2017, gravou outro curta-metragem, Acúmulo, de Gilson Junior, no qual é protagonista. Léa Garcia é também roteirista e tem escrito, para cinema, adaptações de textos de autores negros, como Cidinha da Silva, Luiz Silva Cuti e Muniz Sodré.
Foi justamente no Festival de Gramado, onde recebeu tantos Kikitos, que Léa Garcia teve um infarto e morreu em 15 de agosto de 2023, dia em que receberia o Troféu Oscarito, pelo conjunto da obra.
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