Por Memória Globo

Globo

Gianfrancesco Sigfrido Benedetto Martinenghi de Guarnieri nasceu em 6 de agosto de 1934, em Milão, na Itália. Com dois anos, emigrou para o Brasil e foi para o Rio de Janeiro com os pais, que fugiam do regime fascista de Benito Mussolini. Filho do maestro Edoardo Guarnieri e da harpista Elza Guarnieri, manteve contato com as artes desde cedo, mas também herdou do pai, antifascista ferrenho, o apreço pela política. Assim, aos 13 anos, escrevia para o jornal da Juventude Comunista.

Gianfrancesco Guarnieri em O Mapa da Mina, 1993. — Foto: Globo

Teatro: ator e autor premiado

Aos 18 anos, morando em São Paulo, começou a militar no movimento estudantil, enquanto iniciava sua carreira no teatro. Com Oduvaldo Vianna Filho, o Vianinha, e um grupo de estudantes de São Paulo, criou, em 1955, o Teatro Paulista do Estudante. No ano seguinte, o grupo se uniria ao Teatro de Arena de São Paulo, fundado e dirigido por José Renato, criando assim o Teatro de Arena. O grupo se tornaria um marco no teatro brasileiro por seu comprometimento com o teatro político e social e pela disseminação da dramaturgia nacional. No Teatro de Arena, Gianfrancesco Guarnieri destacou-se inicialmente como ator, em peças dirigidas por José Renato e Augusto Boal.

Subvertendo a praxe dos textos escritos no país, que retratavam apenas a burguesia, o ator levou ao palco Eles Não Usam Black-Tie, em 1958. A peça, estreia de Gianfrancesco Guarnieri na dramaturgia, tratava de uma greve operária e colocava em cena moradores de uma favela e seus problemas socioeconômicos. O sucesso de bilheteria rendeu diversos prêmios, no Brasil e no exterior, salvando as finanças do Teatro de Arena, que estava prestes a falir, e inaugurando a fase nacionalista da companhia.

Depois, no Teatro de Arena ou em outras companhias teatrais, vieram outras das 20 peças que escreveria – invariavelmente com cunho social ou político, como Gimba, Presidente dos Valentes (1959), que retratava o morro carioca e as duras condições de sobrevivência das populações marginalizadas; A Semente (1961), que abordava a militância comunista; e O Filho do Cão (1964), que misturava misticismo religioso e reforma agrária. Duas peças escritas com Augusto Boal nos anos 1960 foram marcantes: Arena Conta Zumbi (1965) e Arena Conta Tiradentes (1967). As duas últimas foram uma resposta criativa à proibição pela censura das obras que retratavam a realidade brasileira.

Na década de 1970, Guarnieri escreveu mais peças politizadas, como Castro Alves Pede Passagem (1971), Um Grito Parado no Ar (1972) e Ponto de Partida (1976). Depois de um período de produção esparsa, nos anos 1980 e 1990, fez A Luta Secreta de Maria da Encarnação (2001), na qual retomava o tom engajado: a peça abordava fatos que mobilizaram politicamente o país no século XX. Paralelamente, atuava em outras peças, muitas vezes clássicas, como A Mandrágora, de Nicolau Maquiavel, em 1962, e O Inspetor Geral, de Nikolai Gogol, em 1966.

Devido ao cunho político de seus textos, Gianfrancesco Guarnieri enfrentou problemas com a censura do regime militar. A peça Animália chegou a ser proibida em 1968. A partir daquele ano, Guarnieri sentiu-se obrigado a adotar a linguagem metafórica para falar da realidade do país – Um Grito Parado no Ar, por exemplo, é centrado nas frustradas tentativas de um grupo teatral de executar sua peça, oferecendo um retrato da situação de isolamento a que fora confinada a sociedade brasileira.

Seu trabalho com o teatro revelou uma nova faceta: a de compositor. A canção Upa Neguinho, por exemplo, feita para o espetáculo Arena Conta Zumbi, é uma parceria de Gianfrancesco Guarnieri com Edu Lobo. Em Marta Saré, repetiu a parceria com o Edu Lobo, e compôs com Toquinho em Castro Alves Pede Passagem. Apesar da ligação de suas músicas com a dramaturgia, muitas delas ganharam vida própria fora do teatro – Upa Neguinho tornou-se um clássico na voz da cantora Elis Regina.

Cinema e televisão

Em 1958, mesmo ano de sua estreia como dramaturgo, Gianfrancesco Guarnieri estreou também no cinema, no filme O Grande Momento, de Roberto Santos, um dos primeiros do movimento do Cinema Novo. Em 1965, fez o roteiro de outro filme do mesmo diretor, A Hora e a Vez de Augusto Matraga. Depois, atuou em filmes como Diário da Província (1977), de Roberto Palmari, pelo qual recebeu o Kikito de melhor ator coadjuvante no Festival de Gramado; Gaijin, Caminhos da Liberdade (1980), de Tizuka Yamasaki, e O Quatrilho (1995), de Fábio Barreto, entre outros. Sua mais lembrada atuação no cinema, porém, foi na versão para as telas de sua própria peça Eles Não Usam Black-Tie (1981), que rendeu ao diretor Leon Hirszman o Grande Prêmio do Júri no Festival de Veneza.

A estreia na televisão foi em 1967, na novela A Hora Marcada, de Ciro Bassini, exibida pela extinta TV Tupi. A partir daí, Guarnieri se tornaria uma presença recorrente na televisão. Na TV Excelsior, participou de novelas como O Tempo e o Vento (1967), adaptação de Teixeira Filho para a obra de Erico Verissimo; O Terceiro Pecado (1968), de Ivani Ribeiro, entre outras. Em 1973, na TV Tupi, atuaria em outra trama de Ivani Ribeiro, a primeira versão de Mulheres de Areia, no papel de Tonho da Lua. Eva Wilma, que viveu as irmãs gêmeas Ruth e Raquel na década de 1970, relembrou em entrevista ao Memória Globo: “Nós tínhamos um Tonho da Lua absolutamente inesquecível. O Guarnieri esculpindo na areia aquela estátua, que hoje em dia existe em homenagem à novela Mulheres de Areia, em Itanhaém, onde nós gravávamos, foi inesquecível”. Em 1977, na TV Excelsior, participou de Éramos Seis, adaptação do romance homônimo de Maria José Dupré, por Silvio de Abreu e Rubens Ewald Filho. Nos anos 1980, 1990 e 2000, integraria, ainda, o elenco de novelas em várias emissoras: na TV Bandeirantes, Manchete, SBT e Record.

Trabalhos na Globo

Gianfrancesco Guarnieri fez seus primeiros trabalhos na Globo ainda na década de 1970. Em 1974, atuou em Turma, Doce Turma, episódio de Caso Especial escrito por Oduvaldo Vianna Filho – no que seria o último trabalho de Vianninha para a TV. A história era uma homenagem aos seus companheiros de Teatro de Arena. No ano seguinte, escreveu e atuou em outro episódio do programa, Solidão. Em 1979, teve sua peça Um Grito Parado no Ar adaptada pelo poeta Ferreira Gullar para um teleteatro da série Aplauso. Também participou de seriados: em 1979, escreveu episódios para Carga Pesada e, no ano seguinte, atuou em Malu Mulher – que ficou conhecido por abordar os dilemas femininos com ousadia para a época. Em 1989, escreveria a minissérie Sampa, a convite do diretor Daniel Filho.

Em 1981, atuou em sua primeira novela na Globo: Jogo da Vida, de Silvio de Abreu. Nela, a personagem de Glória Menezes, Jordana, lutava para encontrar quatro cupidos de bronze que herdara, dentro dos quais havia um milhão de dólares. Era o personagem de Gianfrancesco Guarnieri, o padeiro Vieira, quem a ajudava a recuperar as esculturas, no fim da novela. Silvio de Abreu contou em entrevista ao Memória Globo que lutou para escalar o ator: “Eu briguei para escalar o Gianfrancesco Guarnieri, porque eu queria um homem muito humano”. Em 1982, atuou em Sol de Verão, em papel criado pelo autor Manoel Carlos especialmente para ele: Caetano, pai de Abel (Tony Ramos), um personagem que ganhou projeção ao longo da trama. Após a morte inesperada do ator Jardel Filho, que vivia o protagonista Heitor, durante as gravações, o autor Manoel Carlos, muito amigo do ator, sentiu-se impossibilitado de continuar escrevendo, e foi substituído por Lauro César Muniz, assessorado por Gianfrancesco Guarnieri.

Já em 1984, atuou na primeira novela do autor Carlos Lombardi, Vereda Tropical, que fez grande sucesso. Naquele ano, para conseguir gravar, passou meses na ponte-aérea: convidado pelo então prefeito de São Paulo, Mário Covas, ele assumira, em janeiro, a secretaria de Cultura do município, cargo que ocupou até 1986.

Gianfrancesco Guarnieri e Fernanda Montenegro em Cambalacho, 1986. — Foto: Globo

O primeiro personagem de destaque na Globo veio na novela Cambalacho, de 1986, escrita por Silvio de Abreu. Na produção, viveu o trambiqueiro Jerônimo Machado, o Gegê, um dos protagonistas da trama ao lado de Leonarda Furtado, a Naná (Fernanda Montenegro). A dupla era parceira nos cambalachos que Naná fazia para sobreviver e manter a filha, que estudava no exterior. O entrosamento dos protagonistas, que se casavam no final da história, foi um dos destaques na novela.

Em 1987, reviveu os tempos em que foi censurado no teatro: a novela Mandala, de Dias Gomes e Marcílio Moraes, na qual interpretava o militante comunista Túlio, chegou a ter sua sinopse vetada pela Censura Federal, que alegava que a novela tratava de temas impróprios para o horário, como incesto, uso de drogas e bissexualismo. A Globo comprometeu-se a fazer modificações necessárias e a novela pôde entrar no ar. Além disso, a forte conotação política da fase inicial da trama também precisou ser atenuada. Cinco anos depois, em 1992, viveu outro militante comunista, Dr. Salviano, desta vez na minissérie Anos Rebeldes, de Gilberto Braga. A produção, que fez grande sucesso, se passava durante o período da ditadura militar no Brasil.

Gianfrancesco Guarnieri em Que Rei Sou Eu?, 1989. — Foto: Globo

Gianfrancesco Guarnieri participou também de outras novelas de sucesso da Globo, como Que Rei Sou Eu? (1989), de Cassiano Gabus Mendes; Rainha da Sucata (1990), de Silvio de Abreu, A Próxima Vítima (1995), de Silvio de Abreu, e Terra Nostra (1999), de Benedito Ruy Barbosa. Sua última novela foi Belíssima (2005), de Silvio de Abreu. Na época, ele já se tratava havia quatro anos de uma insuficiência renal crônica. Quando a doença se agravou, precisou deixar a novela, e acabou falecendo no dia 22 de julho de 2006.

Aracy Balabanian e Gianfrancesco Guarnieri em A Próxima Vítima, 1995. — Foto: Globo

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