Renato Velasco/Memória Globo

Ana Lucia Torre Rodrigues estudou Ciências Sociais na PUC de São Paulo, onde havia um movimento artístico que a levou a viver sua primeira experiência no teatro amador, com a montagem de 'Morte e Vida Severina', de João Cabral de Melo Neto. A peça inaugurou o Tuca e contou com a participação de Chico Buarque, autor da trilha sonora, e programação visual de Claudio Tozzi, ambos alunos da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da universidade. Criada para o mundo pelos pais – Jairo de Almeida Rodrigues, produtor de uma gravadora de discos, e Antonieta Torre Rodrigues, dona de casa –, Ana Lucia Torre não terminou o curso e, antes de seguir a carreira artística, decidiu viajar para a Europa, disposta a adquirir novas vivências. Casada e de volta ao Brasil, em 1975, tornou-se profissionalmente atriz e foi logo convidada para atuar em TV, ganhando seu primeiro papel em 'Dona Xepa', em 1977.

Eu estou falando não é para cem pessoas, é para milhões de pessoas. Esse cuidado que nós que trabalhamos com comunicação temos de ter é fundamental. A nossa cultura televisiva hoje em dia é muito forte, é uma das mais fortes do mundo, em termos de teledramaturgia, e a gente precisa preservar isso

A partir desse momento, alternou trabalhos em teatro e televisão, na Globo e em outras emissoras, em uma rica e prolífica carreira em que teve a oportunidade de interpretar papéis em todos os gêneros – drama, comédia, musical. Seus personagens deixaram marcas em novelas como 'Alma Gêmea' e 'Verdades Secretas', e em peças como 'Rasga Coração' e 'Eles Não Usam Black-Tie'. Mais recentemente, ela passou a fazer também cinema com frequência, como uma atriz completa que domina as diversas linguagens da dramaturgia.

Entrevista exclusiva da atriz Ana Lucia Torre ao Memória Globo em 05/12/2016, sobre seu início na Globo, na novela “Dona Xepa” (1977).

Entrevista exclusiva da atriz Ana Lucia Torre ao Memória Globo em 05/12/2016, sobre seu início na Globo, na novela “Dona Xepa” (1977).

Quando foi para a Europa, no final da década de 1960, Ana Lucia Torre morou um ano e meio em Portugal. Em seguida, mudou-se com o marido, que conheceu lá, para a Noruega, em virtude do curso de Direito Marítimo que ele desejava fazer no país. “Foi uma das melhores experiências da minha vida, fiquei quatro anos na Noruega, convivendo com um povo absolutamente acolhedor, envolvente, eles te abraçam de uma forma incrível. Não é com aquela espontaneidade e abertura dos trópicos, eles são reservados, mas, uma vez aceito, você tem tudo, porque eles são amigos e fiéis, de verdade”, garante. Enquanto morou no país e, em seguida, na Inglaterra, Ana Lucia Torre teve diversos empregos, como camareira, vendedora de suéteres e na embaixada brasileira. Em 1975, com a volta do casal ao Brasil, foi convidada pelo amigo e diretor teatral Celso Nunes para participar da montagem de 'Equus', de Peter Shaffer, no Rio de Janeiro, onde ela tinha se estabelecido.

Estreia Profissional

Assim, aconteceu sua estreia profissional, no Teatro Nelson Rodrigues, que na época se chamava Teatro do BNH. Ao lado de um elenco composto por Rogério Fróes, Ricardo Blat, Antônio Patiño, Monah Delacy e Betina Viana, ficou em cartaz durante um ano, com a casa lotada de terça a domingo. Na televisão, Ana Lucia Torre havia feito uma pequena participação em 'Escrava Isaura' (1976), de Gilberto Braga. O sucesso da temporada levou o diretor Herval Rossano a assistir à peça. Daí surgiu o convite para o primeiro trabalho fixo da atriz em TV, que já tinha feito uma pequena participação em 'Escrava Isaura' (1976), de Gilberto Braga. 'Dona Xepa', do mesmo autor, exibida pela Globo em 1977, foi um divisor de águas na carreira da atriz . Na novela, ganhou o reconhecimento do público, com a personagem Clorita.

O trabalho seguinte foi 'Sinhazinha Flô' (1977), de Lafayette Galvão, também dirigida por Herval Rossano, com quem a atriz aprendeu muito. “Era uma novela de época, havia uma postura de sentar, uma postura de pernas, não se cruzava perna, os homens com os coletes e os botões abotoados, cartolas, bengalas. Tudo isso é enriquecedor, porque você vai aprendendo, você já começa a agir diferente quando põe a roupa, muda sua postura toda”, explica. Ora dedicando-se ao teatro, ora à TV, Ana Lucia Torre fez um trabalho que considera relevante em 'Ciranda de Pedra' (1981), de Teixeira Filho, como a Celina, esposa do personagem do ator Castro Gonzaga. Mesmo quando não estava escalada, ela acompanhava as gravações de cenas da atriz Eva Wilma realizadas em Santa Teresa, pois a locação ficava ao lado de sua casa. Após participar de produções como 'O Homem Proibido' (1982), de Teixeira Filho, e 'Corpo a Corpo' (1984), de Gilberto Braga, Ana Lucia Torre transferiu-se para a Rede Manchete, para atuar em 'Corpo Santo' (1987), de José Louzeiro, no papel de uma professora.

Hipocondríaca

De volta à Globo, viveu uma hipocondríaca em 'Tieta' (1989), de Aguinaldo Silva, Ana Maria Moretzsohn e Ricardo Linhares. “Foi outro personagem que até hoje faz o pessoal brincar comigo na rua. Na casa da Juraci Pitombo, para servir a comida, ela limpava os pratos com álcool, porque podia ter micróbio. Eu era casada com o personagem do Otávio Augusto, meu parceiro também no teatro. Nós fazíamos 'Suburbano Coração', de Naum Alves de Souza, com Fernanda Montenegro e Ivone Hoffmann. As músicas eram do Chico, voltei para o Chico outra vez”, brinca.

Como não era então contratada da Globo, ainda, a atriz emendou na sequência a novela 'Brasileiras e Brasileiros', no SBT, em 1990. O trabalho foi considerado confuso por ela, em função de divergências entre o diretor Walter Avancini e o autor Carlos Alberto Soffredini. Na emissora, voltaria a atuar em 'As Pupilas do Senhor Reitor' (1994), de Lauro César Muniz.

Nessa fase, integrou também o elenco de 'Renascer' (1993), de Benedito Ruy Barbosa, na Globo. “Foi uma experiência incrível. Contracenava com Cacá Carvalho. A gente era da roça, andava meio descalço, com roupas bem rústicas, morávamos numa casinha quase tapera. Cacá era um rude, um bronco, aquele homem que é quase um bicho, tudo ele resolve no cinto, na porrada. Então, a relação da mulher com ele era de puro medo”, relembra.

Ana Lucia Torre mudou-se em 1990 para São Paulo, onde entrou para o Grupo TAPA, referência em dramaturgia no país, e participou de uma série de montagens teatrais da companhia, como as cinco peças encenadas ao longo da semana no Panorama do Teatro Brasileiro. Ao fim da temporada, foi convidada pelo diretor Marcos Paulo para fazer a personagem Cleonice Mackenzie em 'A Indomada' (1997), de Aguinaldo Silva e Ricardo Linhares, primeira novela em que trabalhou nos Estúdios Globo, inaugurados dois anos antes.

Depois de uma passagem pela TV Bandeirantes, em 1998, quando atuou em 'Serras Azuis', de Ana Maria Moretzsohn, Ana Lucia Torre foi a Neca de 'O Cravo e a Rosa' (2000), de Walcyr Carrasco e Mário Teixeira, contracenando com Eduardo Moscovis, Pedro Paulo Rangel, Taumaturgo Ferreira, Vanessa Gerbelli, Adriana Esteves e Suely Franco.

O Cravo e a Rosa foi uma adaptação brilhante de A Megera Domada para os anos 1920. Nossa preparação foi muito interessante. Nós ficamos 15 dias num lugar tipo uma fazendinha e aprendemos a lidar com galinha, que vivia no cenário, a cercar porco no chiqueiro, a fazer queijo de Minas

Alma Gêmea

A atriz atuou quatro anos depois na minissérie 'Um Só Coração' (2004), de Maria Adelaide Amaral e Alcides Nogueira, em que viveu a Sálua, descendente de árabes, e teve no trabalho seguinte um de seus papéis de maior destaque na TV: Débora, mãe de Cristina, personagem de Flávia Alessandra em 'Alma Gêmea' (2005), de Walcyr Carrasco. Como uma vilã no estilo Bette Davis, fez um intenso trabalho de preparação, do início ao fim da novela, que começava antes das gravações. O resultado não poderia ser melhor: a dupla foi um dos grandes destaques da trama, que atingia audiência de novela das 20h mesmo sendo exibida no horário das 18h, tamanho sucesso.

Eu e a Flávia tínhamos uma brincadeira assim: ‘Agora eu vou dominar a cena e você vai ficar submissa’. Aí a gente invertia, ela fazia dominando a cena e eu, submissa. Quando a gente entrava no estúdio e ia gravar, para o que quer que o Jorge Fernando pedisse a gente já tinha algum caminho trabalhado

Ana Lúcia Torre e Flávia Alessandra em 'Alma Gêmea', 2005 — Foto: João Miguel Júnor/Globo

Em 2009, na novela 'Caras & Bocas', de Walcyr Carrasco, Ana Lucia Torre foi Ester, uma mãe muito próxima novamente, desta vez uma mulher judia que se incomoda com o romance entre o filho e uma gói (pessoa que não é de origem judaica). Na trama, sua personagem participa de um momento marcante, quando raspa a cabeça de Tatiana, vivida pela atriz Rachel Ripani. O trabalho posterior foi 'Insensato Coração' (2011), de Gilberto Braga e Ricardo Linhares. Sua personagem, a Neném, uma tia chata que bebia escondida, ficaria apenas até a metade da novela, mas acabou caindo no gosto do público e ficou até o final.

Amor Eterno Amor

A viúva Verdana, mãe do protagonista interpretado por Gabriel Braga Nunes em 'Amor Eterno Amor' (2012), de Elizabeth Jhin, foi outro papel considerado importante por Ana Lucia Torre. Ela teve um filho raptado com três anos de idade e, 20 anos depois, continuava procurando o menino, como tantas mães brasileiras. “A cena da morte da Verdana é a coisa mais linda do mundo, porque ela teve alegria na hora de morrer, o filho estava em casa e ela sabia que ela ia encontrar com o marido, que foi seu grande parceiro”, recorda.

No horário das 23h, a atriz fez em 2015 'Verdades Secretas', de Walcyr Carrasco, que abordou um tema polêmico, a prostituição no mundo das modelos. Como Hilda, avó de Angel, a protagonista vivida pela estreante Camila Queiroz, soube que a neta fazia sexo por dinheiro e se viu obrigada a esconder o segredo, por considerar que sua filha não aguentaria a notícia. Dirigida pela primeira vez por Mauro Mendonça Filho, elogia a sensibilidade do autor e do diretor na abordagem de uma questão tão delicada. Em 2017 atuou em 'O Outro Lado do Paraíso', de Walcyr Carrasco. Sua personagem, Adnéia, tem o sonho de ser avó, acreditando que seu filho Samuel (Eriberto Leão) e Suzi (Ellen Roche) serão pais. Samuel, no entanto, é gay e ganha o acolhimento de sua mãe quando a verdade vem à tona.

No ano seguinte, participou de mais uma trama de Elisabeth Jhin para o horário das 18h, 'Espelho da Vida', onde interpretou Gentil, a dona da pensão onde a novela se passa. Assim como outros personagens, surge no passado como outra personagem, dessa vez uma Madre. A trama de Elisabeth Jhin se passava em tempos distintos, passado e presente.

Em 'A Dona do Pedaço' (2019), voltou a trabalhar sob o texto de Walcyr Carrasco, atuando como Berta, do núcleo de Vivi Guedes (Paolla Oliveira). No mesmo ano, fez uma participação especial em 'Bom Sucesso', de Rosane Svartman. Dois anos depois, viveu a mãe superprotetora Celina em 'Quanto mais vida, melhor!', escrita por Mauro Wilson, onde contracenou com Mateus Solano e Tato Gabus Mendes.

Em mais um trabalho de Walcyr Carrasco e mais uma vez como avó, interpretou a dona de pensão Camélia em 'Êta Mundo Bom!' (2016), uma novela bem-humorada que abordava o universo caipira. “Foi um sucesso absoluto. O povo gosta dessa coisa naïve, ingênua. Muito bem escrita, bem orientada, baseada no Candinho, feito pelo Mazzaropi, foi bem legal, bem popular”, diz.

Cinema e Teatro

A atuação no cinema veio muitos anos após o início da carreira. Apesar de rápidos trabalhos anteriores, Ana Lucia Torre considera que sua estreia nas telas se deu, de fato, no filme 'Através da Janela', de Tata Amaral, lançado no ano 2000. Dessa participação, como amiga da Selma, personagem de Laura Cardoso, surgiram novos convites. Com Sérgio Bianchi, fez 'Quanto Vale ou É Por Quilo', em 2005; com Walter Lima Jr., em 2015, 'Através da Sombra', filme baseado em um conto de suspense; em 2017, foi a mãe do palhaço Bozo, vivido por Vladimir Brichta em Bingo: 'O Rei das Manhãs'; e, também em 2017, foi outra vez uma mãe em 'Um Tio Quase Perfeito', de Pedro Antonio, estrelado pelo ator Marcus Majella.

Com muitas peças em sua trajetória, o teatro mostrou-se a expressão artística mais presente na carreira de Ana Lucia Torre. Nos palcos, teve a oportunidade de fazer comédia, drama, musical, passando por todos os gêneros em personagens que abarcavam diversos aspectos do comportamento humano. “Rasga Coração, do Vianinha, foi de um prazer indescritível. Tive enorme respeito por meu papel em Eles Não Usam Black-Tie, já interpretado por Lélia Abramo, no teatro, e por Fernanda Montenegro, no cinema. Para meu grande prazer e minha grande emoção, ambas foram me ver. Foi realmente muito tocante, uma coisa que eu jamais esqueço. Fiz trabalhos bem bonitos no Grupo TAPA, como Rasto Atrás, em que vivi um dos grandes personagens da literatura teatral, a Dona Mariana”, enumera.

Fonte

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