Por Memória Globo

Frame de vídeo / Globo

Em março de 1997, o Jornal Nacional exibiu uma reportagem de denúncia em relação aos direitos humanos, que pelo seu impacto e repercussão entraria para a história da Globo e do jornalismo brasileiro. A matéria começava mostrando um grupo de policiais militares extorquindo dinheiro, humilhando, espancando e executando pessoas numa blitz na Favela Naval, em Diadema, na Grande São Paulo. As imagens, gravadas por um cinegrafista amador nos dias 3, 5 e 7 de março, foram entregues ao repórter Marcelo Rezende e revelavam a extrema crueldade com que os PMs tratavam cidadãos indefesos no que, oficialmente, seria uma operação de combate ao tráfico de drogas. 

Reportagem de Marcelo Rezende sobre a violência policial na Favela Naval, em Diadema (SP), com imagens obtidas com exclusividade. Jornal Nacional, 31/03/1997.

Reportagem de Marcelo Rezende sobre a violência policial na Favela Naval, em Diadema (SP), com imagens obtidas com exclusividade. Jornal Nacional, 31/03/1997.

DESTAQUES

Cenas repugnantes

William Bonner lê editorial sobre a violência praticada por policiais no caso conhecido como Favela Naval e cobra atitude do governo e da justiça do estado de São Paulo, Jornal Nacional, 31/03/1997.

William Bonner lê editorial sobre a violência praticada por policiais no caso conhecido como Favela Naval e cobra atitude do governo e da justiça do estado de São Paulo, Jornal Nacional, 31/03/1997.

A reportagem que denunciou a violência policial na Favela Naval, em Diadema (SP), foi ao ar em 31 de março de 1997. Antes de exibir as imagens, o apresentador William Bonner advertiu que elas eram fortes, mas que o Jornal Nacional tinha o dever de denunciar. Já na primeira cena, os PMs param os carros e agridem com violência os ocupantes, que não oferecem qualquer resistência. O motorista de um dos automóveis é esbofeteado e levado para trás de uma parede por um dos policiais. Os outros conversam tranquilamente enquanto se ouvem os gritos de súplica do rapaz que é espancado. O cinegrafista consegue pegar parte da cena em que o policial espancador chama o parceiro e, segundos depois, dispara um tiro. Os dois PMs então se afastam. Um deles guarda a arma e ri. 

As imagens também mostram que o pelotão, de volta ao mesmo local dois dias depois, passa a cobrar pedágio para liberar as pessoas paradas no bloqueio. Não tendo como incriminar o dono de um Fusca, um soldado se vinga furando os pneus do carro. Em outra cena, depois de muitas agressões, um policial aparece assassinando um passageiro dentro de um carro. Logo após a exibição das imagens, o apresentador William Bonner leu o editorial.

No dia seguinte à denúncia da violência da PM paulista, o repórter Ernesto Paglia foi até a Favela Naval e mostrou os moradores assustados. O repórter identificou seis dos dez policiais do 24° Batalhão da Polícia Militar envolvidos na barbárie: o sargento Reginaldo José dos Santos, o cabo João Batista de Queiroz e os soldados Nelson Soares da Silva Júnior, Paulo Rogério Garcia Barreto, Rogério Neri Bonfim e Otávio Lourenço Gambra (conhecido como Rambo). 

Um trabalho de investigação

Entre o recebimento da fita e a exibição da primeira reportagem, o repórter Marcelo Rezende levou cinco dias confirmando a veracidade da história. Montou uma equipe com 13 profissionais, que o ajudaram nas investigações. Eles localizaram Gerson Capucci, que dirigia o carro no qual foi assassinado o mecânico Mário José Josino, que estava de férias e tinha ido visitar um amigo. Também foram localizadas várias outras testemunhas das violências policiais. A equipe de reportagem descobriu que, nos meses que antecederam o episódio, dezenas de denúncias haviam sido encaminhadas às autoridades, que não tomaram qualquer providência. 

Os repórteres descobriram também que o rapaz que levou o tiro atrás do muro, Sílvio Calixto, havia sobrevivido. Conseguiram localizá-lo e o convenceram a dar o seu testemunho. No Jornal Nacional do dia 2 de abril, os repórteres da Globo identificaram o tenente Wilson Góis Júnior, que estava na operação em Diadema mas que, até aquele momento, sequer tinha sido citado nas investigações. Localizaram também Ricardo Luis Buzeto, que estava foragido. Numa entrevista exclusiva ao repórter Carlos Tramontina, o cabo afirmou não ter participado das agressões. Disse que tinha apenas observado. 

A impunidade em foco

Num editorial lido por Cid Moreira em 2 de abril, o Jornal Nacional apontou a impunidade como uma das principais causas dos abusos praticados pela PM.Essa questão também foi tratada por Caco Barcellos. O repórter informou que mais de 200 inquéritos contra PMs – a maior parte por homicídio e por agressão – ficavam parados no cartório da 1a Auditoria, alguns por mais de 20 anos, até muitos deles prescreverem. As irregularidades foram descobertas pelo promotor Antônio Ferreira Pinto. Dois desses inquéritos, que haviam estado parados irregularmente, por seis e 11 anos, envolviam um oficial bastante conhecido, o segundo-tenente Ariovaldo Sérgio Salgado, comandante do COI, unidade de elite da Polícia Militar de São Paulo envolvida no massacre do Carandiru.

Cid Moreira lê editorial sobre o episódio de violência policial ocorrido na Favela Naval, Jornal Nacional, 02/04/1997.

Cid Moreira lê editorial sobre o episódio de violência policial ocorrido na Favela Naval, Jornal Nacional, 02/04/1997.

Revolta e indignação

O caso da Favela Naval foi assunto do Jornal Nacional durante toda a semana. Naquele período, o país viveu sob o impacto das imagens que exibiram a truculência da polícia militar. As reportagens chocaram o país. A Globo recebeu inúmeros telefonemas, faxes e mensagens via Internet, que manifestavam a indignação da população. O próprio presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, por meio do seu porta-voz, tornou pública sua revolta. A Assembléia Legislativa de São Paulo logo anunciou a criação de uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) para apurar o caso, e o governador de São Paulo, Mário Covas, assinou a exoneração dos oficiais da PM responsáveis pela região. Os policiais envolvidos no episódio foram presos. 

No dia 3, foi aprovado pelo Congresso o projeto de lei que transformava a tortura em crime punível com pena de até 21 anos de prisão. A lei 9.455 foi sancionada no dia 7 de abril de 1997, sete dias após a denúncia das torturas em Diadema pelo Jornal Nacional. Também no dia 3, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara aprovou a proposta de emenda constitucional que federalizava os crimes contra os direitos humanos. Em setembro daquele ano, o jornalista Marcelo Rezende recebeu o Prêmio Líbero Badaró de jornalismo.

FONTES

MEMÓRIA GLOBO. Jornal Nacional – a notícia faz história. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2004.
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