Tiago Marin’s review published on Letterboxd:
48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo
Gabriela Carneiro da Cunha e Eryk Rocha fizeram a escolha mais difícil, mas também a melhor: filmar A Queda do Céu sem ser sobre A Queda do Céu. Resumidamente, sem a antropologia ocidental a explicar o que estava sendo mostrado em cena, mas no lançando diretamente à experiência de imersão.
O resultado é arrebatador. Logo no início, a mitopoética se anuncia: os espíritos Xapiri pë reergueram o céu após sua primeira queda, e o manterão erguido até que exista o último xamã. Davi Kopenawa, assim como no livro, é a presença condutora do filme, e a obra original é talvez um de seus maiores atos xamânicos.
Em seguida, o filme dedica quase metade de sua duração ao ritual Reahu, mostrando seus diversos momentos e não explicando, narrando ou metaforizando. Quem leu algo sobre a cultura yanomami consegue se localizar em seus inúmeros momentos que ultrapassam largamente a ideia de um “rito funerário” e se torna experiência única para os laços sociais dos yanomamis, mas não duvido que a experiência se torne inacessível para parte significativa do público.
A narrativa visual é excepcional para que o filme se torne uma experiência: quase sem distanciamento algum que traga a ideia de sujeito/objeto, a câmera é uma observadora participante: sempre próxima, quase sempre em movimento, na maior parte das vezes estando dentro, e atraindo um ou outro olhar de estranhamento. Escolhas visuais que nos remetem a uma experiência subjetiva: o fogo visto pela fumaça, o céu que dança, o chão, os espíritos no invisível. Talvez o mais ocidentalizado aqui seja a tentativa de representar o transe com sobreposições, mas mesmo ela reflete a imagem tal qual entendida como uma das muitas partes espirituais do corpo yanomami.
Iramari Yanomami ao apresentar o filme pediu que não parássemos apenas na ideia de achar bonito, compartilhar em redes sociais. “Não é bonito, é sobre a nossa morte e a nossa destruição pelo homem branco, também”. A destruição doentia da qual são vítimas está presente o filme todo, mas os minutos finais são arrebatadores. Ele mantém seu apelo: é preciso cantar como os yanomamis, estudar como os yanomamis e sonhar como os yanomamis. O filme seria então para sonharmos, neste sentido xamânico de podermos construir nosso conhecimento.
Maravilhoso.
(Obs: para quem se interessar pelo tema, recomendo também o belíssimo livro O Desejo dos Outros, de Hanna Limulja, sobre o sentido de sonhos para os yanomamis).