Pictures of Ghosts

Pictures of Ghosts

É estranho dizer que "Retratos Fantasmas", novo filme de Kleber Mendonça Filho, é sobre a história de apogeu e decadência dos cinemas de rua da cidade do Recife. O filme é também sobre isso, e talvez este tenha sido o jeito mais fácil e acessível de divulgá-lo para o mercado internacional - de partida, é justo afirmar que o filme traz parte da história do cinema como um todo. Mas há algo que se finca como o fio condutor narrativo: trata-se de um filme sobre o afeto e afetar-se, para além do óbvio amor do cineasta pelo cinema, pela cidade e seus cinemas de rua.

Sua primeira parte, até agora pouco divulgada e comentada (atenção: spoilers), escolhe trilhar trechos de uma narrativa íntima de vida. O apartamento onde o cineasta construiu sua história não apenas o localiza geograficamente na narrativa, mas nos mergulha em uma síntese de afetos pelos quais podemos redesenhar sua carreira até ali. O cachorro latindo e o cupim da casa vizinha, antes mesmo de terem sublinhadas suas participações em seus filmes futuros, rapidamente nos evocam "O Som ao Redor" e "Aquarius", mas se deslocam do estranhamento incômodo de Bia (Maeve Jinkings) ou da raiva de Clara (Sonia Braga) e nos colocam em um lugar extremamente afetivo de uma criança e um jovem conhecendo o mundo, um filho que conhece a potência da história oral para aqueles que são esquecidos a partir do trabalho de sua mãe historiadora (e não é sobre método, é sobre o amor). A partir deste vínculo estabelecido, não há retorno.

Há memória, histórias que só existem quando lembradas - de alguma forma, este maravilhoso filme de Júlia Murat me ocorreu em diversos momentos de Retratos Fantasmas. Há Alexandre nos contando sobre o calor infernal, sobre O Poderoso Chefão e sobre a ditadura; há a relação do Art Palácio (o de São Paulo, inclusive) com a Ufa e o nazismo; há o centro da cidade que padece de falta de estacionamento e ar-condicionado; há o cheiro de maré, fruta e mijo. Ainda assim, acima disso tudo, o tema pulsante do filme é o afeto, que não só permite uma crônica cotidiana das mais belas, como foi capaz de me fazer chorar diversas vezes, fosse pela chave de lágrimas que encerra uma história ou pela beleza gratuita dos letreiros de filmes anunciando a vida urbana.

E, com essa chave, há ainda tempo para uma terceira parte que também me pegou de surpresa: a existência sempre política da vida pública e do urbanismo. Kleber Mendonça Filho busca novas imagens para a tese de que os espaços urbanos revelam quem somos como cultura, se fincando fortemente em qual lugar do espectro deseja ocupar no Brasil pós-2018 e retratando uma crítica certeira que muitos de nós já havíamos levantado suspeita, mas enfim alguém registrou: o que ocupa nossas urbanidades atualmente? O que isso tem a dizer sobre nós? O desfecho agridoce conta com humor não só por alguma leveza, mas também porque o cinema diverte, e isso pode ser uma esperança. E lá estava eu quase chorando enquanto ria e enquanto pensava como é que temos vivido.

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