The Other Side of Hope

The Other Side of Hope

"Aki Kaurismäki dedicou Toivon Tuolla Puolen / “O Outro Lado da Esperança”, a sua última longa-metragem, a Peter von Bagh (1943-2014), grande cinéfilo, programador, escritor, cineasta, mas também amigo muito próximo, com quem em 2005 desenhou uma “carta branca” para um programa que então pensaram em conjunto para a Cinemateca e que uns anos antes tão bem caracterizou o seu cinema em dois textos convocados para um catálogo que lhe foi dedicado. Kaurismäki volta hoje sozinho para um Ciclo cuja abertura cabe a “O Outro Lado da Esperança”, uma justa homenagem a von Bagh, que nesses ensaios referia a frequência com que a crítica apontava as influências de Kaurismäki, que encontramos espelhadas em mais este filme, mas também neste programa, que Kaurismäki ajudou a compor, em que encontramos Robert Bresson, “o grando ídolo de Aki” (palavras de von Bagh), mas também Murnau ou John Huston.

“O Outro Lado da Esperança” é mais um grande exemplo do realismo estilizado que marca o cinema de Kaurismäki, revelando-se simultaneamente como uma tragicomédia e um documento sobre os tempos conturbados em que vivemos, em que o burlesco passa mais uma vez por inspirados e lacónicos diálogos e pelo carácter inusitado de muitas situações encenadas para a câmara. Segundo capítulo da chamada “trilogia portuária” de Kaurismäki, trata-se de um filme em que o cineasta prossegue a sua “luta” bem consciente contra os estereótipos da xenofobia e o racismo, mas também contra a burocracia do Estado, sempre sem perder o humor e uma imensa dose de melancolia e ironia.

Se Le Havre abordava a história de uma criança refugiada de origem africana na cidade com o mesmo nome, “O Outro Lado da Esperança” desenvolve-se em duas linhas narrativas paralelas, que (naturalmente) acabam por se intersectar. A primeira concentra- se na figura de Khaled, jovem sírio que acaba de chegar ao porto de Helsínquia, vindo das trevas (numa imagem assumidamente literal) e procura exílio na Finlândia, depois de ter ficado sem a família, morta numa explosão em Alepo, e de ter perdido a irmã pelo caminho na sua longa travessia, vivendo obcecado com a tentativa de a resgatar. A segunda linha acompanha Wikström, o fabuloso Sakari Kuosmanenn – que lembramos em Juha (1999) ao lado de Kati Outinen –, um (ex)vendedor em crise existencial, que resolve mudar de vida e de profissão, deixando a mulher e investindo tudo o que ganhou no poker e num novo negócio, um restaurante decrépito e retro à beira da falência, para o qual contratará Khaled. Encontramos facilmente nesta personagem muitos dos traços que caracterizam os protagonistas dos anteriores filmes de Kaurismäki, assim como na da sua mulher alcoólica, cuja relação é magnificamente representada numa sequência inaugural, sequência muda em que sem dizerem uma palavra ficamos com plena consciência da situação. Wikström é, na verdade, um homem de parcas palavras, mas também um homem de grandes gestos, e é ele o grande responsável pela dimensão mais fantasiosa de um filme ancorado na mais dura das realidades.

A notável fotografia de Timo Salminen, colaborador habitual de Kaurismäki, e os minimalistas e depurados décors criam um conjunto de ambientes antinaturalistas que nos fazem recuar muitos anos para um tempo e um espaço indefinidos, sensação que é acentuada pela presença de inesperados objectos (a máquina de escrever, o carro antigo, etc.). As sequências no restaurante são a este propósito exemplares, remetendo para um espaço anacrónico e inusitado em que se desenvolve a relação de amizade e confiança entre os dois protagonistas, acentuando-se assim o carácter excêntrico de tal relação. Wikström procura salvar o restaurante (nas suas muitas e geniais mutações) ao mesmo tempo que procura salvar Khaled e a sua irmã, que, no fundo, representam todos aqueles imigrantes sem documentos que vivem numa zona cinzenta de invisibilidade e que, como diz Khaled a dada altura, “ninguém vê, porque ninguém nos quer ver”. Em “O Outro Lado da Esperança”, não há apenas um, mas “outros lados”. Uns mais felizes que outros. Final feliz? Não há aqui o “milagre final” de vários outros filmes de Kaurismäki, mas o desfecho possível. Pelo meio, há várias vidas que ficam pelo caminho. E sob a capa de um cinema de fundo eminentemente político e social, redescobrimos outra das grandes preocupações do cineasta, a da possibilidade do amor e da solidariedade num mundo adverso, em que a dureza da realidade se confronta com o romantismo da fantasia. Como diz Miriam, a irmã de Khaled, “Eu acredito na vida!”."

Joana Ascensão

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