7 de setembro de 2024. Debaixo de chuva, a Stock Car realizou a classificação para a etapa do Velopark, em Nova Santa Rita, no Rio Grande do Sul. Desde então, uma enorme polêmica dominou os bastidores da maior categoria do automobilismo brasileiro. O chamado "pneugate" gerou discórdia por quase três meses. Até que, no dia 5 de novembro, as equipes TMG e Crown Racing foram avisadas da desclassificação de seus quatro carros da etapa em questão, a oitava de 2024, por uma suposta infração ao artigo 15.5 do regulamento técnico. Segundo a Confederação Brasileira de Automobilismo (CBA), as equipes teriam usado "pneus de chuva adulterados" na classificação. Punições que vão virar a tabela de pontos do avesso.
Importante: nem CBA e tampouco a Vicar, empresa organizadora da Stock Car, deram publicidade às punições. A confederação informou apenas às equipes envolvidas na polêmica, na última terça-feira. Já a Vicar soltou um comunicado interno endereçado a todos os times da categoria e extremamente sucinto também na última semana. Com exclusividade, o Voando Baixo teve acesso aos dois documentos e ao laudo enviado no dia 31 de outubro pela Hankook, fornecedora oficial de pneus da categoria. Importante: os pneus de chuva dos carros de Felipe Massa, Rafael Suzuki, Felipe Baptista e Enzo Elias foram enviados à Coreia do Sul para análise na fábrica da empresa.
Li com muito cuidado o regulamento técnico da Stock Car, principalmente o artigo 15.5, além dos documentos recebidos elaborados por CBA, Hankook e Vicar. Escutei com atenção os vários lados envolvidos na polêmica do "pneugate". E trarei aqui alguns pontos importantes - esses pontos me fazem crer que essa história tem enorme potencial para se arrastar até o fim da temporada 2024 - com risco, inclusive, de podermos ter mudanças de resultados na tabela de pilotos após a decisão, marcada para 14 e 15 de dezembro no Autódromo José Carlos Pace, em Interlagos.
O que diz o artigo 15.5 do regulamento?
O artigo 15.5 do regulamento técnico reza sobre o "uso de aditivos em pneus". Ele é bem específico sobre o tema, inclusive, citando a proibição expressa do "uso de substâncias":
"Proibido o uso de qualquer tipo de substância que altere as características físicas, químicas e/ou mecânicas dos pneus. Proibido o uso de válvulas de controle de pressão de pneus. A critério dos Comissários quaisquer pneus novos, lacrados na etapa, poderão ser mantidos em parque fechado a qualquer momento do evento."
As equipes TMG e Crown foram punidas, de acordo com o documento emitido pela CBA, por uma suposta infração a esse artigo. Nos documentos enviados aos times, um para cada carro, o item 5 diz:
"O artigo 15.5 do Regulamento Técnico da Categoria é expresso ao proibir a adoção de procedimentos que importem na alteração de características físicas, químicas e/ou mecânicas destes."
Só que o texto original fala em proibição do "uso de substâncias". Entretanto, o comunicado que anuncia a punição aos carros fala sobre "adoção de procedimentos". O problema é que o regulamento não fala em procedimentos; ele é bem claro, inclusive, ao proibir apenas o uso de substâncias. Claramente, estamos diante de uma zona cinzenta do regulamento técnico.
O que fizeram as equipes TMG e Crown?
Realmente, as equipes TMG e Crown fizeram experimentos com os pneus de chuva da Hankook, visando a tentativa de um ganho de aderência e de desempenho. A questão é que nenhum procedimento adotado pelas equipes envolveu o uso de substâncias - aditivos químicos. Como já vimos, o regulamento proíbe expressamente isso. Inclusive, o relatório da empresa sul-coreana não cita, em momento algum, uma possível confirmação do uso de aditivos. A Hankook apenas cita alterações nas propriedades dos compostos, como dureza e características viscoelásticas, além da composição química do pneu. Mas isso não significa o uso de substâncias. O comunicado da CBA, inclusive, é claro nesse sentido ao citar na decisão a palavra "procedimentos".
Quais foram os experimentos, então? As equipes, que trabalham em uma mesma sede, na cidade de Americana, interior de São Paulo, contrataram um engenheiro especializado em borracha. Ele teve a ideia de aquecer os pneus de chuva em um forno industrial, para tentar ter algum ganho de aderência e de elasticidade. Foram feitos vários testes e chegou-se a uma temperatura e ao tempo ideal de "cozimento" para isso. Lembram da zona cinzenta? O calor é uma forma de energia térmica, não uma substância. De acordo com o texto do artigo 15.5 do regulamento técnico, não há proibição ao procedimento idealizado por TMG e Crown.
Sobre aquecimento de pneus, o regulamento técnico da Stock Car traz mais uma pegadinha. E justamente no artigo anterior, o 15.4, que fala justamente sobre "aquecimento dos pneus". Só que ele é bem claro nas situações em que esse procedimento é proibido. Vamos ao texto:
"Proibido o uso de qualquer equipamento que resulte no aquecimento artificial de pneus durante todo transcorrer do evento, excetuando quando previsto no regulamento particular da prova. Se autorizado o equipamento será padrão, disponibilizado pelo fornecedor oficial e com uso restrito somente aos pneus para condição de pista seca (“slicks”)."
Viram a pegadinha? O regulamento técnico proíbe apenas aquecer os pneus durante um evento - que significa uma etapa do campeonato, de acordo com a nomenclatura adotada nas regras. Não fala do período entre as corridas ou entre as temporadas.
Outro ponto importante: TMG e Crown entregaram à CBA todo o estudo feito com o aquecimento dos pneus no forno industrial. Além disso, voluntariamente, deixaram todos os pneus slicks (para pista seca) a disposição da confederação para que uma inspeção fosse feita. Ela foi realizada na quinta-feira passada, mas o resultado ainda não foi divulgado às equipes pela CBA. Por tudo isso, as equipes vão recorrer da desclassificação da etapa do Velopark, que impacta diretamente nas chances de título dos times e de seus pilotos.
O que é feito no exterior pela FIA?
A Fórmula 1, categoria máxima do automobilismo internacional, é a campeã em pesquisas de zonas cinzentas nos regulamentos técnico e esportivo. É a essência do esporte a motor competitivo. Só neste ano tivemos dois casos: o "DRS duplo" da McLaren, que ficou explícito no GP do Azerbaijão, em Baku, e o mecanismo de regulagem de altura da RBR, exposto durante o GP da Cidade do México. E o que a Federação Internacional de Automobilismo (FIA) faz nesses casos? Quando ela considera que é algo que fere o espírito da regra, ela bane a novidade posteriormente após mudar o texto da regra. Antes da mudança do regulamento, explorar essa zona cinzenta específica era algo legal. Logo, não há como punir em corridas anteriores.
Posições de CBA e Vicar sobre as punições
CBA e Vicar ainda não deram publicidade às desclassificações, apenas fizeram comunicações internas às equipes. A única posição oficial - e pública - até agora sobre o caso veio das equipes punidas. TMG e Crown publicaram uma nota conjunta na semana passada em suas mídias sociais reiterando que já estão recorrendo das desclassificações no STJD do automobilismo. E é aí que mora o risco para o campeonato: como são duas instâncias, o julgamento pode terminar após a data marcada para a decisão da temporada 2024, marcada para Interlagos.
Já a CBA se manifestou apenas nos documentos enviados às equipes com o anúncio das punições. No documento em que a Vicar, organizadora da categoria, mandou para os times, um trecho se destaca:
"Reiteramos que a integridade das competições e a segurança de todos os envolvidos são prioridades absolutas para o campeonato. Contamos com a colaboração de todas as equipes para o cumprimento rigoroso do regulamento técnico e desportivo."
Sobre a polêmica, a Vicar enviou a seguinte nota ao Voando Baixo:
"A Vicar reafirma seu compromisso com a integridade do esporte e respeita a autonomia da CBA em suas deliberações técnicas e disciplinares. Seguimos confiantes no trabalho desenvolvido por todas as partes envolvidas - autoridades, equipes, pilotos e patrocinadores - para garantir a excelência e a credibilidade da competição."
E a nota da Confederação Brasileira de Automobilismo (CBA):
"A CBA entende que cumpriu seu papel ao identificar a irregularidade, enviar para análise e desclassificar os envolvidos. Acredita, também, que o caso não acabou, pois os desclassificados podem recorrer. Então, sob o ponto de vista prático, é um caso de desclassificação como tantos outros que acontecem durante o ano."
Como ficou o campeonato?
Classificação da Stock Car após as desclassificações
Posição | Piloto | Equipe | Pontos | Variação de posições |
1 | Gabriel Casagrande | A.Mattheis Vogel | 766 | + 1 |
2 | Ricardo Zonta | RCM | 742 | + 2 |
3 | Felipe Massa | TMG | 738 | - 2 |
4 | Dudu Barrichello | Full Time Sports | 734 | + 1 |
5 | Bruno Baptista | RCM | 716 | + 2 |
6 | Julio Campos | Pole Motorsport | 715 | 0 |
7 | Daniel Serra | RC | 628 | + 2 |
8 | Felipe Baptista | Crown Racing | 627 | - 5 |
9 | Rafael Suzuki | TMG | 614 | - 1 |
10 | Rubens Barrichello | Full Time Sports | 608 | + 1 |
11 | Felipe Fraga | BFM/R.Mattheis | 605 | + 1 |
12 | Enzo Elias | Crown Racing | 602 | - 2 |
Opinião do Voando Baixo
Independente do mérito da desclassificação e dos recursos que estão sendo apresentados para tentar uma mudança, toda essa confusão é muito nociva para o automobilismo, para o fã de automobilismo e também para a Stock Car como categoria. Já temos problemas de mudanças de resultados em quase todas as etapas por causa dos julgamentos dos comissários esportivos da CBA. Uma bomba como essas pode jogar a imagem da categoria, construída ao longo de tantos e tantos anos, na lixeira. Fora que pode afugentar patrocinadores importantes para as equipes e também para a organização da Stock Car.
Agora, entrando no mérito em si da punição, é um enorme castigo para a CBA. Há anos muita gente fala (eu sou um dos que faz mais barulho quanto a isso) que os regulamentos das categorias regidas pela entidade são extremamente mal-escritos, às vezes dando brechas, às vezes criando zonas cinzentas e interpretações inversas à intenção inicial. Enquanto o automobilismo não profissionalizar esses processos aqui no Brasil, seguiremos imersos nesta bagunça. Uma pena para todo mundo que depende do esporte para trabalhar, viver e, no caso do fã, se divertir.
Que o STJD faça justiça nesse caso, seja qual decisão for. E que a decisão seja muito rápida, para não terminar de afetar a imagem de um dos campeonatos mais equilibrados nos últimos anos da Stock Car. Ainda assim, vejo tudo isso com extremo lamento.
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