Blog da Yvonne Maggie

Por Yvonne Maggie

Antropóloga. Professora emérita da UFRJ. Autora dos livros 'Guerra de orixá' e 'Medo do feitiço'


Vestimentas rituais no Museu da Polícia Civil do Rio de Janeiro, apreendidas em batidas policiais — Foto: Luiz Alphonsus, 1979

1979 entrei pela primeira vez no Museu da Polícia Civil do Rio de Janeiro (MPC) com uma dupla missão. De um lado havia sido incumbida pelo Grupo de Trabalho André Rebouças, um movimento de estudantes negros da UFF, de fazer o levantamento da coleção de objetos rituais sob a guarda do MPC, pois o grupo tinha o objetivo de reivindicar que os itens sagrados fossem devolvidos aos seus legítimos donos. De outro, havia meu interesse pela história da repressão às religiões afro-brasileiras sobre a qual estudava desde o início da década de 1970.

Cumpri as duas tarefas com muito zelo. Ao final de um ano pude entregar um relatório inicial do levantamento das peças rituais às lideranças do GTAR, Beatriz Nascimento e Marlene Cunha. Porém, foram necessários quase dez anos para realmente entender a lógica da repressão e o modo como os terreiros foram perseguidos e seus objetos rituais destruídos ou então preservados na delegacia especializada e tombados pelo SPHAN hoje IPHAN , em 1938. A pesquisa deu origem à minha tese de doutorado "Medo do feitiço: relações entre magia e poder no Brasil", que em 1992 recebeu o prêmio Arquivo Nacional e foi publicada sob o mesmo título.

A coleção deixou de ser exposta por muitos motivos logo depois do ano em que a observei, descrevendo e fotografando as peças e, infelizmente, há muito não pode mais ser vista pelo público porque o prédio que abriga o MPC está passando por uma profunda reforma. É triste o fato de que a coleção, muito bem organizada e preservada no MPC, esteja fechada tanto tempo na reserva técnica.

Em 2017, um grupo de lideranças religiosas e estudiosos iniciou a campanha #LiberteNossoSagrado para retirar os objetos “sagrados” ou “mágicos” do MPC e passar à guarda ao Museu da República, o que já é consenso até da diretoria do MPC para que a transferência seja feita sob a supervisão do IPHAN. A principal liderança religiosa da campanha é a iyalorixá Mãe Meninazinha de Oxum e tem o apoio de entidades como as comissões de direitos humanos da Assembleia Legislativa do Rio, a OAB-RJ, o gabinete do deputado estadual Flavio Serafini (PSOL-RJ), as lideranças dos movimentos negros contra a intolerância religiosa e os membros de comunidades-terreiros.

O filme Nosso Sagrado de Fernando Sousa, Gabriel Barbosa e Jorge Santana é um documento importante, realizado no contexto da Campanha #LiberteNossoSagrado, cujo principal objetivo é o debate sobre a coleção. Assista ao trailer abaixo.

Espero que quarenta anos depois da primeira intenção no sentido de devolver os objetos apreendidos e sob a guarda do MPC possamos, em breve, ver a belíssima coleção com imagens, atabaques, roupas e outros itens rituais exposta ao público.

Temo, porém que ao retirar a coleção de “Magia Negra”, como foi definida pelo SPHAN em 1938, se apague, de fato, a verdadeira história da repressão inclusive dos muitos atores que se envolveram nas acusações que provocaram invasões policias, inquéritos e processos judiciais no Rio de Janeiro. Será triste, em nome da luta contra a intolerância religiosa hoje perpetrada, eliminar a forma e a lógica que levaram tantas pessoas a acusar e outras tantas a serem acusadas de “Praticar o espiritismo, a magia e seus sortilégios, usar de talismãs e cartomancias para despertar sentimentos de ódio e amor, inculcar cura de moléstias curáveis ou incuráveis, enfim para fascinar e subjugar a credulidade pública” como reza o artigo 157 do Código Penal que vigorou no Brasil de 1890 a 1942.

A campanha “#LiberteNossoSagrado” e as autoridades envolvidas na transferência dos “objetos da feitiçaria”, como eram chamados então, devem se preocupar também com a preservação da história intrincada e complexa que fez com que a chamada “Coleção Magia Negra”, uma coleção de objetos rituais das religiões afro-brasileiras, ficasse por tanto tempo sob a guarda do museu da Polícia Civil do Rio de Janeiro.

Os autos de apreensão e as sentenças dos juízes mostram como a crença na feitiçaria, na magia e seus sortilégios afetava pessoas de todas as classes, inclusive policiais e autoridades, sem falar na elite dirigente do Rio de Janeiro da Belle Époque como se pode ler no processo depositado no Arquivo Nacional e analisado por mim no livro Medo do feitiço:

"Na sala em que havia a sessão de magia foram encontrados os seguintes objetos: diversas imagens, diversos pratos com amendoins e pipocas de milhos em frente às imagens de Santo Onofre São Cosme, grande quantidade de figas de madeira da Guiné, búzios e favas de Santo Inácio; duas figuras de madeira escura e um crucifixo de metal branco em cruz de madeira pintada de preto, tendo nas extremidades pequenos tornos de osso; em um quarto, duas galinhas pretas, diversos cascos de boi, rabos de arraia e diversas peles de cabras diferentes; em outro quarto, chifres diferentes; e grande quantidade de ervas desconhecidas e duas peles de cabrito, um par de meias de algodão brancas amarradas em três nós, bem como lenços, tudo servido, encontrado mais um baralho de cartas e um bode preto de grandes chifres."

E o juiz condena o acusado com o seguinte “despacho”: “... como se vê no auto de informação, o réu efetivamente praticava a magia e seus sortilégios.

Exú Tiriri, uma imagem feita com a terra de cemitérios, no Museu da Polícia Civil do Rio de Janeiro, apreendido em batidas policiais — Foto: Luiz Alphonsus, 1979

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