Capa do livro "Factfulness – O hábito libertador de só ter opiniões baseadas em fatos", de Hans Rosling — Foto: Divulgação
Elogiado por Bill Gates, "Factfulness – O hábito libertador de só ter opiniões baseadas em fatos" (Record, 360 pgs. R$ 59), de Hans Rosling, é um livro sobre a ignorância a respeito das coisas do mundo. Essa ignorância prevalece na maioria dos assuntos, mesmo entre elites intelectuais e acadêmicas e mesmo entre jornalistas – cuja missão, supostamente, é apurar e divulgar a verdade. Mas, se percebemos o mundo de forma equivocada, esta não é uma questão de inteligência, mas de hábitos decorrentes de uma visão dramática e distorcida da realidade.
Rosling não é um curioso. Médico especializado em saúde pública, ele passou boa parte de sua carreira combatendo epidemias em países pobres da África. Em seu livro, ele demonstra por A + B que, contrariando o senso comum, o mundo está ficando menos pobre, menos doente e menos perigoso do que jamais esteve, nos mais variados critérios: níveis de renda, acesso à educação, expectativa de vida etc. Mais meninas do que nunca terminam o ensino fundamental; a maior parte da população vive em países de renda média (e não de baixa renda); nos últimos 20 anos, a proporção da população mundial vivendo em extrema pobreza caiu pela metade; a expectativa de vida média nunca foi tão elevada; nos últimos 100 anos, o número de mortes decorrentes de desastres naturais caiu a menos da metade; 80% da população do mundo têm acesso a eletricidade; quase todas as crianças do planeta estão vacinadas; somente 20 anos atrás, 29% da população mundial viviam em extrema pobreza: hoje são 9%.
Por que, então, existe tanto alarmismo e pessimismo?
O autor apresenta e mapeia os dez fatores que levam a maioria das pessoas a ter um desempenho pior que o de chimpanzés ao responder questionários sobre os temas acima e a situação do planeta. São, na verdade, dez instintos, que nos fazem responder no modo automático a questões e situações cotidianas. Parte desses instintos foi herdada de nossos ancestrais, ou seja, é natural – mas nem sempre é racional – tomar decisões com base, por exemplo, no instinto do medo. Os dez instintos são:
- O instinto de separação: a tendência ao pensamento binário, a dividir dramaticamente as coisas e pessoas em dois grupos distintos e opostos;
- O instinto de negatividade: a tendência, reforçada pela mídia, a prestar mais atenção nas coisas ruins do que nas coisas boas;
- O instinto de linha reta: a tendência a acreditar que aquilo que vem acontecendo no passado continuará a acontecer no futuro;
- O instinto de medo: a tendência a exagerar os riscos e ameaças, superestimando perigos imaginários e avaliando mal os perigos reais;
- O instinto de tamanho: a tendência a se deixar impressionar por grandes números isolados e fora de contexto, sem senso de proporção;
- O instinto de generalização: a tendência a ignorar diferenças dentro de grupos e entre grupos, e a tomar a maioria pelo todo;
- O instinto de destino: a tendência a acreditar que características inatas determinam o destino de pessoas e nações;
- O instinto de perspectiva única: a tendência a aplicar a todos os problemas a mesma solução, ou a reduzir todos os problemas a uma única causa, como a desigualdade social;
- O instinto de culpar: a tendência a procurar vilões, e não causas, e a procurar heróis, e não sistemas;
- O instinto de urgência: a tendência a se precipitar e tomar decisões drásticas sem necessidade.
Rosling demonstra, por exemplo, a falácia de continuarmos a dividir o mundo entre ricos e pobres, entre países desenvolvidos e em desenvolvimento. Em todos os países, ele argumenta, a maioria da população está no meio, não nos extremos, sendo muito mais útil que uma divisão binária uma divisão por quatro faixas de renda: estas sinalizam que existe uma surpreendente zona de interseção, nas rendas intermediárias, entre países como a Suécia e o Brasil, por exemplo. “Países pobres” não existem mais como um grupo distinto, na visão do autor. Hoje apenas 9% da população mundial vive em países de baixa renda, alias; 75% vivem em países de renda média. “A ideia de um mundo dividido com uma maioria presa ao sofrimento e à privação é uma ilusão”, afirma Rosling, que cita o Brasil como “um dos países mais desiguais do mundo”, mas onde a concentração de renda vem decrescendo consistentemente ao longo das últimas décadas.
“Factfulness” foi criticado pelo seu otimismo e pelo excesso de fé no crescimento econômico e no desenvolvimento tecnológico, bem como por ignorar crises específicas contemporâneas, como a tragédia dos refugiados ou os desastres ambientais. Também houve quem se detivesse em filigranas sobre as projeções de crescimento da população (atualmente de 7,6 bilhões, ela deverá se estabilizar em 11 bilhões por volta de 2100, segundo Rosling, o que é questionável) e da qualidade de vida e sua viabilidade diante do esgotamento dos recursos do planeta. Sem dúvida, a perspectiva do autor é otimista e seletiva em relação ao futuro, mas é preciso levar em conta que ele se baseia em estatísticas, isto é, em médias, e não em episódios isolados.
Ironicamente, o próprio Rosling é um triste exemplo de caso isolado, de ponto fora da curva: ele morreu de câncer no ano passado, aos 69 anos, quando a expectativa de vida no seu país, a Suécia, é superior a 80 anos. “Factfulness” foi publicado postumamente, por iniciativa do filho e da nora de Rosling, que assinam um comovente epílogo, relatando os últimos meses de vida do autor.