Por Reynaldo Turollo Jr, g1 — Brasília


  • O Superior Tribunal de Justiça (STJ) anulou as provas e absolveu um homem condenado por tráfico de drogas após analisar vídeos das câmeras corporais de dois policiais militares de São Paulo

  • Os ministros da Quinta Turma do STJ concluíram que o homem foi abordado sem motivo válido e sofreu violência policial, incluindo murros, enforcamento e chicotadas

  • O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) havia mantido a condenação, mas a Defensoria Pública recorreu ao STJ

  • O relator do caso no STJ, ministro Ribeiro Dantas, destacou que a abordagem sem fundada suspeita e com violência viola os direitos humanos e invalida as provas obtidas

  • Com base nisso, o STJ decidiu pela soltura do homem

STJ usa análise das câmeras corporais de policiais para anular provas contra condenado

STJ usa análise das câmeras corporais de policiais para anular provas contra condenado

A análise das câmeras corporais de dois policiais militares de São Paulo levou o Superior Tribunal de Justiça (STJ) a anular as provas e absolver um homem condenado a 7 anos e 6 meses de prisão por tráfico de drogas.

Por unanimidade, os ministros da Quinta Turma do STJ entenderam que os vídeos gravados pelas câmeras dos PMs mostraram que o homem havia sido abordado sem um motivo válido – tecnicamente chamado pelos agentes de "fundada suspeita" — e sofrido violência policial, que incluiu murros, enforcamento e chicotadas nas costas.

O julgamento foi no último dia 29. O caso chegou ao STJ depois que o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) manteve a condenação do réu, em segunda instância, e a Defensoria Pública recorreu.

Os vídeos das câmeras dos PMs havia sido divulgado inicialmente em março, pelo site Ponte Jornalismo, quando a defesa questionou a prisão.

Dois desembargadores paulistas, da 13ª Câmara Criminal, consideraram que não houve violência policial. Já um terceiro fez uma análise detalhada dos vídeos e votou por anular as provas, mas acabou vencido.

O caso foi revertido no STJ. "A abordagem policial sem fundada suspeita e com emprego de violência configura violação aos direitos humanos e invalida as provas obtidas", decidiu o tribunal, na linha do voto do relator, ministro Ribeiro Dantas.

O caso

O homem de 26 anos foi revistado pelos PMs em uma área de mata próxima à rua de um conjunto habitacional de Itapevi (SP), em março de 2023.

Ele não estava armado, não resistiu à ação da polícia e inicialmente não carregava drogas. Após a abordagem, contudo, ele mostrou aos policiais uma árvore onde havia uma sacola com porções de maconha, cocaína e crack (265 gramas, no total).

Levado para a rua, fora da mata, o homem disse que estava vendendo drogas, confissão que foi filmada pela câmera de um dos PMs. Posteriormente, durante o processo, ele alegou que confessou porque tinha sido torturado.

👮‍♂️Os dois policiais que tiveram suas câmeras analisadas prestaram depoimento à Justiça. Eles disseram que chegaram ao suspeito porque o viram correr com uma sacola para dentro da mata, depois que um outro grupo de pessoas, que estava na rua, foi abordado por outros PMs.

"Nessa contextura, em que o acusado restou flagrado, em local conhecido como ponto de venda de drogas, portando uma sacola e, ao notar a presença policial, empreendeu fuga, evidencia-se a presença de fundadas suspeitas a legitimar a abordagem policial", afirmou o relator no TJ-SP, desembargador Adilson Simoni.

Para ele, a alegação de que o réu sofreu violência policial não ficou comprovada.

Análise dos vídeos

🎥No voto divergente no TJ-SP, o desembargador Marcelo Semer analisou os vídeos das câmeras corporais e apontou que:

  • diferentemente do que disseram em juízo, os dois PMs não participaram do início da abordagem, o que torna impossível que tenham visto o homem correr com uma sacola para dentro da mata. Portanto, não teria havido a chamada "fundada suspeita" para a revista pessoal
  • um dos policiais deu murros na cabeça do suspeito e o enforcou antes de ele mostrar onde a sacola com as drogas estava
  • no escuro da mata, o homem aparece em um trecho das gravações "com a camisa levantada e as costas à mostra", quando é chicoteado com um galho. Laudo do Instituto Médico Legal (IML) confirmou as agressões nas costas;
  • um dos policiais tampa sua câmera em momentos importantes da abordagem;
  • o homem entregou aos PMs um maço de dinheiro que levava no bolso, mas a quantia não foi formalmente apreendida — o que o magistrado classificou como "indício de furto" por parte dos policiais;
  • todos os vídeos da abordagem foram enviados à Justiça sem áudio, exceto o que continha a confissão do acusado — o que levanta a suspeita de que os policiais tenham tentado dificultar a apuração do caso.

Com base nesses pontos, o STJ anulou as provas e mandou soltar o homem.

"Considerando que foi detalhado no voto vencido que as provas da materialidade delitiva do crime [de tráfico] pelo qual foi condenado o paciente foram obtidas mediante o emprego de violência física assemelhada à tortura, é medida que se impõe a declaração de sua nulidade, com a consequente absolvição do réu", decidiu o tribunal.

Mudança de postura

Câmera corporal em uniforme de policial militar do Estado de São Paulo. — Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

Para o advogado criminalista e professor da USP Pierpaolo Bottini, casos como esse devem levar a polícia a rever sua conduta para evitar novas anulações no futuro, sobretudo em um cenário em que o uso de câmeras corporais tem se expandido.

"A posição firme [da Justiça] sobre a nulidade de qualquer produto obtido mediante tortura contribui para a mudança de postura, sempre que aliada à responsabilização penal daqueles que praticaram o ato", disse Bottini.

"O Estado não pode compactuar com nada obtido mediante tortura, sob pena de incentivar abusos e cancelar garantias individuais. O grau de civilidade de uma sociedade é proporcional ao rechaço à tortura", completou o criminalista.

A Polícia Militar de São Paulo informou ao g1 que abriu inquérito sobre o caso e "identificou indícios de crime militar na conduta de um policial e de infração disciplinar em outro".

"O caso foi enviado à Justiça Militar, onde o Ministério Público solicitou o arquivamento do crime, classificando-o como infração disciplinar. A Justiça acatou o pedido, e, no âmbito administrativo, o policial foi punido de acordo com o Regulamento Disciplinar da corporação", acrescentou a PM.

A reportagem perguntou qual foi a punição aplicada ao policial, mas não recebeu informações detalhadas.

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