UM LABIRINTO ENTRE A SELVA E O OCEANO
Rios sinuosos de águas misturadas. Ora salgada, ora doce. O mar impõe a sua força e invade os leitos que serpenteiam a paisagem. A mesma paisagem que se deixa alterar por um ritmo da natureza que até parece brincadeira de empurra-empurra. Quando a maré enche, o sabor do mar pode ser provado a cerca de 60 quilômertros continente adentro. Quando esvazia, os rios, com força mais modesta, conseguem desaguar revelando praias únicas, belíssimas, um mundo cheio de vida.
Quando fui escalado pela Editora-chefe do Globo Repórter, Silvia Sayão, para integrar a equipe da expedição às Reentrâncias Maranhenses, não nego, comemorei. Que jornalista não gostaria de se aventurar por um Brasil tão surpreendente? E foi com um sorriso de orelha a orelha que pegamos o rumo de uma região do Nordeste que mais parece o Norte. E não deixa de ser. Embora o Maranhão, geograficamente, esteja no nordeste, a área da nossa aventura, costa oeste do estado, fica em um dos pontos onde a floresta amazônica alcança o oceano atlântico.
O cenário é tão grandioso quanto a própria selva e o mar. Pra começo de conversa, são 340 quilômetros de um manguezal exuberante. Não por acaso, ostenta o título de maior faixa contínua de mangue do planeta. O imenso emaranhado de árvores retorcidas, recortado por diversos rios, enseadas e baías, é o paraíso de uma infinidade de espécies da fauna: crustáceos, peixes, aves, pra citar apenas os mais abundantes, vivem em permanente harmonia com o lugar. A oferta de alimentos é um banquete onde o homem também se serve. E Como se trata de uma reserva extrativista, as famílias que vivem lá extraem da natureza o próprio sustento com o compromisso de ajudar a preservar e fiscalizar. E isso eles fazem muito bem.
DA COR DO FOGO
Uma das aves símbolo do Brasil, na lista das mais belas do mundo, escolheu a região das reentrâncias como sua principal morada. É o guará-vermelho. Mas um vermelho tão intenso, tão vistoso, que ganhou o apelido, dado pelos nativos, de ave do fogo. É típica da amazônia costeira e hoje em dia os maiores grupos são vistos apenas entre o Amapá e o Maranhão. Nos outros estados já está praticamente extinta.
Ao norte da cidade de Apicum-Açu, quatro horas de barco rio abaixo, fomos conhecer o maior ninhal dos guarás. Fica numa ilha fluvial que encolhe drasticamente na maré cheia e cresce bastante quando o mar recua. Chegamos no fim da tarde, maré enchendo, mas ainda a tempo de caminhar um pouco pelo território da ilha. Vimos filhotes de todas as idades. Dos recém-nascidos aos que passam o dia treinando para o primeiro voo, na tentativa de se libertar dos ninhos que ficam na copa das árvores mais altas do mangue.
É curiosa a plumagem dos jovens guarás: escura. Digamos que seja um cinza beirando o preto. Dá até pra confundir com o socó, que também fez morada no mesmo local. A cor avermelhada só começa a aparecer mesmo a partir de um ano de vida. O segredo? Acredite, é a comida, um caranguejo, dos menores que há, encontrado em grande quantidade na lama do grande manguezal. Os pais passam o dia comendo, e quando voltam para o ninho trazem no papo a ração dos filhos.
Quando o sol começa a descer no horizonte eles surgem no céu. Em bandos, aos milhares, voltando pra casa. Era o momento mais aguardado. É tão impressionante a revoada que chega a emocionar. Não só pela quantidade, mas, principalmente, pelo vermelho cor de fogo que, de repente, paira diante dos olhos, contrastando com o branco das nuvens, o azul do céu e o verde da floresta. Um espetáculo único que sempre vem acompanhado de coreografias.
E para o nosso deleite eles demoraram dando voltas no ninhal antes de pousar nas árvores. Parecia que estavam se exibindo para a câmera do Globo Repórter. Foi um presente que vai ficar guardado para sempre na memória.
LENÇÓIS EM MINIATURA
Imagine uma ilha cercada pelo mar, de um lado, e do outro, um rio. No meio, montanhas de areia e um vilarejo onde moram 100 famílias, cerca de 500 pessoas. Esse paraíso, bem no centro da reserva extrativista, se chama Ilha dos Lençóis. E o nome se deve mesmo à semelhança com os Lençóis Maranhenses. Claro, apenas no formato, porque no tamanho é infinitamente menor: 5 quilômetros de comprimento e pouco mais de 2 de largura. É uma ilha diferente das que estamos acostumados a ver Brasil afora.
Em todos os sentidos é um pequeno território extraordinário. Para se ter uma idéia, a vila é obrigada, de tempos em tempos, a mudar de lugar. É que o vento, soprando dia e noite, não chega a provocar tempestades de areia como nos desertos, mas vai empurrando as dunas pra cima das casas. E quantas já foram engolidas! Só este ano foram sete. Mas quem disse que os moradores ficam muito incomodados? Já se acostumaram, apesar da necessidade das constantes mudanças de endereço. O velho prédio da única escola, construído com alvenaria, está praticamente submerso no mar de areia. Alguns pequenos pedaços dos pilares ainda podem ser vistos, por enquanto.
Embora seja pequena e bucólica, a vida na vila dos Lençóis está longe de ser rotineira. Os moradores, com excessão das crianças, são pescadores. E trabalham quase todos os dias da semana em diferentes expedientes. A pescaria pode começar ao meio dia ou à meia noite, a depender da maré. E não é tarefa pra quem não tem disposição.
Primeiro é preciso atravessar toda a ilha, caminhando na areia fofa, subindo e descendo dunas com redes nas costas para chegar ao mar. Redes de malha compatível com as leis de preservação. Geralmente saem em pequenos grupos e precisam chegar com a maré seca. Instalam as redes e voltam pra casa. Maré enche, e quando seca novamente é hora de voltar pra colher o resultado da pescaria.
E são raros os dias em que a maré não está pra peixe. Almoçamos um delicioso ensopado de pescada-amarela com arroz de cuxá.
Quem assistiu ao programa percebeu, óbvio, que as reportagens do Globo Repórter são feitas por muitas mãos. A equipe do programa, competente e solidária, não economiza dedicação para produzir o melhor resultado. Desde a preparação e dicussão da pauta ao acabamento.
Evidentemente, os profissionais que vão a campo e os que ficam na redação cuidando de suas matérias específicas contribuem de forma mais direta.
Eu tive a honra, mais uma vez, de contar, além com os companheiros de aventura, o repórter cinematográfico Alex Carvalho, o produtor Luiz Costa Jr e o operador de áudio Renan Ferreira. Na redação, com a edição de imagens irretocável de Lilian Cavalheiro e a brilhante edição de texto de Meg Cunha. E como é bom trabalhar com eles! Um presente para este velho repórter que não se cansa de agradecer.
Um abraço e até a próxima aventura.
Zé Raimundo