Pescadores em Araruama, lagoa hipersalina que banha seis municípios do RJ: Saquarema, Araruama, Iguaba Grande, Cabo Frio, Arraial do Cabo e São Pedro da Aldeia. — Foto: Prolagos
Quando o Chico Pescador sai pela Lagoa de Araruama, no Rio de Janeiro, ele já sabe como e onde vai encontrar os peixes pela fase da lua, direção do vento, luz do sol ou falta dele.
"Nas luas cheia e nova, há uma renovação mais forte das águas, então os peixes ficam mais perto do canal, da nossa comunidade. Quando a lua está fraca, no quarto crescente ou minguante, eles ficam mais para baixo", conta.
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Este, no entanto, é só o início da jornada. Como o Chico gosta de pescar à noite, uma escuta aguçada faz toda a diferença na hora de ler os movimentos debaixo d'água: "A tainha faz um barulho quando salta...outro diferente quando fica parada, e outro quando está andando".
A integração com a natureza é uma das características das comunidades de pesca artesanal, que são um dos 28 povos tradicionais oficialmente reconhecidos no Brasil. "A gente tem que pensar como o peixe na hora da pescaria. A gente come ele e vive dele", diz Chico.
Francisco da Rocha Guimarães Neto, conhecido como Chico Pescador, lidera lutas contra pesca predatória. — Foto: Conservação Internacional/Átila Ximenes
No registro de identidade, ele é Francisco da Rocha Guimarães Neto, descendente de uma linhagem centenária de pescadores que vive de Araruama, lagoa hipersalina que banha seis municípios do RJ: Saquarema, Araruama, Iguaba Grande, Cabo Frio, Arraial do Cabo e São Pedro da Aldeia, onde Chico mora.
Ele explica que cada comunidade de pesca artesanal tem a sua arte (veja mais abaixo na reportagem). Na sua, cujo principal pescado é a tainha, predomina a de gancho de peixe, técnica que teve os seus primeiros registros há 400 anos, mas que já era praticada por comunidades indígenas da região bem antes disso, diz Chico.
Da infância à luta na lagoa
A pesca está na família de Chico há centenas de anos. Seu bisavô, por exemplo, fundou a primeira colônia de pescadores na região, em 1822. E, dali para a frente, a atividade passou de avô para pai e de pai para filho.
E nunca saiu. Até mesmo o seu avô Francisco da Rocha Guimarães, de 106 anos, pesca de vez em quando.
Para Chico, a brincadeira de infância na lagoa ficou séria aos 8 anos, quando ele pediu ao seu pai para participar de uma pescaria, em um dia em que faltou gente. "Minha mãe disse: 'ele não vai não...e se ele cair na água'? Meu pai respondeu: 'se ele cair, eu pego'", conta Chico.
Chico com seu pai e seu avô. Pesca está em sua família há centenas de anos. — Foto: Reprodução TV Globo
Desde aquele dia, são 42 anos de lagoa. Além de ser conhecido por entender as artimanhas das águas e dos peixes, Chico se tornou uma liderança quando se trata da luta por melhores condições de pescaria e preservação ambiental.
Nos anos 2000, ele foi um dos protagonistas na mobilização contra a despoluição e pesca predatória na lagoa, movimento que levou à construção de oito estações de tratamento de esgoto no entorno de Araruama e o estabelecimento de um período de defeso: época em que a pesca é proibida ou controlada.
Uma reportagem de 2017 do programa Como Será? contou essa história em detalhes. Veja no vídeo abaixo:
Heróis possíveis para causas impossíveis: Chico Pescador
Neste momento, a sua comunidade, a Associação de Pescadores Artesanais e Amigos da Praia da Pitória, se prepara para o segundo ciclo de um projeto de rastreabilidade, em parceria com a ONG Conservação Internacional do Brasil (CI-Brasil), que permitirá ao consumidor ter acesso sobre detalhes do peixe que vai comer.
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O que é pesca artesanal
No Brasil, a pesca artesanal é uma atividade exercida em regime de economia familiar ou individual, nas proximidades de costas, lagos e rios, explica a CI-Brasil. Ela pode ser praticada apenas para a subsistência de uma família ou pode ter objetivos comerciais.
Em Araruama, a pesca é feita tanto para consumo próprio, como para o comércio.
Pesca artesanal é atividade exercida em regime de economia familiar ou individual, em pequenas embarcações — Foto: Conservação Internacional/Átila Ximenes
A pesca ocorre em embarcações de pequeno porte, diferente da pesca industrial, onde é feita em grandes navios, com equipamentos de alta tecnologia.
Segundo Chico, é difícil informar com precisão quantos pescadores artesanais existem hoje no país pela falta de estatísticas oficiais recentes, fator que, para ele, dificulta a formulação de políticas públicas mais assertivas para o setor.
O Ministério da Agricultura informou ao g1 que o sistema que informatiza esses dados entrou em funcionamento em julho de 2021 e que os números ainda não contemplam todo o cenário de pescadores profissionais do país, já que o cadastro ainda está em andamento.
Até o momento, o sistema contabiliza cerca de 166 mil pescadores artesanais, contra 422 industriais.
Chico diz que a quantidade de pescados difere entre um tipo de pesca e outro. "As 100 toneladas de peixe que a nossa comunidade faz em um ano, a pesca industrial consegue tirar em um mês", exemplifica.
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Arte de gancho de peixe
Pesca de gancho de peixe: é uma arte onde armadilhas feitas com estacas e redes conseguem capturar o peixe. — Foto: Conservação Internacional/Átila Ximenes
Outra característica da atividade artesanal é a arte de pesca. E cada comunidade tem a sua.
No entorno da Lagoa de Araruama, são dois tipos de arte: uma fixa e outra móvel. A fixa é conhecida como gancho de peixe, enquanto a móvel é chamada de rede de cerco.
"Na pesca de gancho de peixe, usamos armadilhas com estacas de madeira [presas no fundo da lagoa] e redes, onde a gente pega o peixe no salto. Eles entram dentro dos currais [formados pelas estacas e redes] e não conseguem sair. Então, ele salta e cai em cima da rede e nós vamos com o barco retirar", explica Chico.
Já na rede de cerco, as embarcações cercam os peixes para que eles fiquem agarrados às redes e, assim, conseguir capturá-los. Quando é noite, é preciso ter uma escuta bem ativa para tentar localizar os animais.
Tainha diferenciada
Tainha da Lagoa Araruama é diferenciada pela alta salinidade da água. — Foto: Conservação Internacional/Átila Ximenes
A tainha é um dos principais pescados das cerca de 600 famílias que vivem no entorno da Lagoa de Araruama.
"A tainha da nossa lagoa é diferenciada e a gente acredita que deve ser por causa do teor de sal. Para você ter uma ideia, no mar, em um litro de água, há 34% de sal. Na lagoa, tem 60%. É o dobro de sal. Estamos até buscando uma identidade geográfica para a nossa tainha", conta Chico.
Na lagoa, os pescadores capturam ainda a carapeba, o carapicu, a sardinha, perumbeba, camarão, entre outros.
Saindo da mão de atravessadores
Atualmente, a principal forma que a comunidade tem de colocar os peixes no mercado é por meio da intermediação de atravessadores, o que, segundo Chico, acaba não sendo favorável para a renda dos pescadores.
"A tainha que a gente vende a R$ 10, poderíamos vender a R$ 23 colocando direto no mercado", diz.
Pescadores de Araruama em época de pesca da Carapeba e Perumbeba. — Foto: Prolagos
Por isso, comunidades dos seis municípios no entorno da lagoa estão mobilizadas, neste momento, na construção de um centro de beneficiamento – local onde o peixe será tratado para ser comercializado – e na organização de transportes para fazer as entregas.
Rastreabilidade
Rastreabilidade — Foto: Reprodução/TV Globo
Além disso, no segundo semestre deste ano, os pescadores darão início à segunda fase de uma ação de rastreabilidade do pescado, que faz parte do projeto Pesca Mais Sustentável, que eles possuem em parceria com a CI-Brasil.
"São colocadas etiquetas com números na boca dos peixes e a pessoa que compra pode entrar no site da CI, colocar o número e ter todas as informações do peixe, quem pescou, como pescou, tamanho", conta Chico.
Segundo a CI-Brasil, o objetivo da etiqueta é ter segurança sobre a espécie que está sendo consumida e se ela foi capturada em período e local permitidos por lei.