Divone Ferreira chora durante o enterro da filha, Gabrielle Ferreira da Cunha, morta durante operação policial na Vila Cruzeiro, no Rio de Janeiro — Foto: Lucas Landau/Reuters
Desde criança, me tomavam horas ficar pensando sobre as vidas e realidade das pessoas que via nas ruas, nos ônibus, nos carros, por trás das janelas acesas das casas, dos prédios formando um horizonte de possibilidades. Estavam felizes, haviam recebido uma boa notícia, será que algum familiar enfrentava uma doença, sentiam dor, esperança?
Essa semana voltei a esse déjá vù infantil quando conheci Eduardo da Silva Guilherme. Um jovem de 21 anos, morto na quarta-feira, após ser atropelado. Um garoto que estava tão apaixonado que comprou para a namorada uma bicicleta para ela não precisar ir até o ponto de ônibus caminhando. Fez isso pensando que a deixaria mais protegida, também. Queria estudar e, quem sabe, viver em outro bairro (mais seguro) da cidade do Rio de Janeiro.
Mas um carro entrou por engano na comunidade da Vila Aliança, onde foi recebido por tiros de traficantes. Desgovernado, atingiu o futuro de Eduardo, uma família inteira despedaçou. É o país onde o GPS pode te levar para o terror. Horas antes, na Chatuba - outra região vulnerável da capital - uma operação policial resultou em vinte e três mortos, um deles era Gabrielle Ferreira da Cunha. “Por que fizeram isso com a minha filha querida? ” perguntava a mãe num país onde se morre com um tiro de longo alcance dentro de casa.
No dia do enterro de Eduardo e o da Gabrielle, o sergipano Genivaldo de Jesus andava sem capacete na cidade de Umbaúba, quando foi abordado por uma blitz da Polícia Rodoviária Federal e morreu naquele mesmo dia por asfixia. Foi submetido a uma câmera de gás improvisado no camburão policial. Ali dentro respirava gás de pimenta e lacrimogêneo. Em nota, a corporação disse que os agentes usaram da “tecnologia” disponível para conter o “indivíduo” que resistia (já algemado, àquela altura). No país das tecnologias (de segurança pública) que matam.
Naquele mesmo dia, o assassinato de George Floyd completava dois anos, sem qualquer avanço numa reforma policial nos EUA. No país onde o lobby das armas continua vencendo e sendo cúmplice de massacres de crianças dentro de escolas como aconteceu, mais uma vez, no Texas.
Numa semana de brutalidades sequenciais, a tortura também é nossa, para não desistir de resistir com alguma lucidez, coragem para falar o que tem que ser dito, como tem que ser dito. Volto a olhar as ruas, as pessoas, as janelas, me conecto com a fragilidade que nos une, e desejo que todos estejam bem e seguros. E com alguma esperança.