Paciente é transportado em Manaus, uma das cidades mais atingidas pelo coronavírus — Foto: Bruno Kelly/Reuters
Cientistas brasileiros estimaram, em um estudo ainda não publicado em revista científica, que Manaus pode ter alcançado a imunidade de rebanho contra o novo coronavírus (Sars-CoV-2), com até 66% da população manauara tendo desenvolvido anticorpos para o vírus. Os cientistas alertam, entretanto, que chegaram à conclusão depois de analisar amostras de um banco de doadores de sangue, que não necessariamente representa toda a população da cidade.
A pesquisa, que ainda precisa passar por revisão de outros cientistas, é de 34 autores de várias faculdades da USP, incluindo a Faculdade de Medicina, da Universidade de Oxford, no Reino Unido, e da Escola de Saúde Pública de Harvard, nos Estados Unidos, além de outras instituições no Amazonas, em São Paulo e nos EUA. A versão prévia do estudo foi divulgada em um repositório on-line na segunda-feira (21).
O percentual de 66% é o máximo considerado pelos cientistas; o mínimo da população que desenvolveu anticorpos é calculada por eles em 44%. A estimativa inferior não considera as pessoas que podem tê-los desenvolvido, mas que tiveram resultados de testes negativos (os falsos negativos) ou em quem os anticorpos foram detectados, mas, depois, não mais. (Já se sabe que os anticorpos para o Sars-CoV-2 podem desaparecer depois de um tempo).
Para os pesquisadores, a elevada taxa de mortalidade em Manaus e a rápida queda no número de novos casos sugere que a capital do Amazonas pode ter alcançado a imunidade de rebanho – situação na qual um número suficiente de pessoas em um determinado lugar já foi infectado ou imunizado contra uma doença e consegue evitar a circulação dela.
No caso do sarampo, por exemplo, é necessário que 95% da população esteja vacinada para se alcançar a imunidade de rebanho para a doença. Na pesquisa da Covid em Manaus, os autores alertam que não há consenso sobre qual deve ser o percentual mínimo de pessoas infectadas para que a imunidade de rebanho seja alcançada para a Covid-19.
"Imunidade de rebanho é o valor em que você tem um número de pessoas que já pegaram a doença que faz com que o número de casos caia – não quer dizer que as outras pessoas não vão pegar a infecção", explica a pesquisadora Ester Sabino, autora sênior do estudo e professora da Faculdade de Medicina da USP.
Quando a imunidade de rebanho acontece, mesmo aquelas pessoas que não podem ser vacinadas – no caso de doenças para as quais existe uma vacina – ficam protegidas.
No caso de Manaus, lembra Sabino, a percentagem encontrada ainda deixa, teoricamente, 30% da população manauara vulnerável ao vírus.
"As pessoas podem se infectar? Podem, mas provavelmente vai ser em formato menor. Mas isso depende de quanto tempo dura essa imunidade. Hoje, a chance de ter uma grande epidemia como a que teve no começo do ano é pouco provável", avalia a cientista.
Sabino explica, ainda, que o percentual estimado na pesquisa é compatível com modelos iniciais da pandemia – que apontavam que, para que começasse a haver queda nas contaminações, era necessário que entre 60% e 70% de uma população tivesse contato com o vírus.
Cautela
26 de junho - Funcionário do cemitério Parque Tarumã, em Manaus, em meio ao surto de Covid-19. — Foto: Bruno Kelly/Reuters
Mas Sabino também lembra que, se houvesse uma tentativa de alcançar a imunidade de rebanho de forma geral e os números de Manaus fossem vistos em São Paulo, por exemplo, a capital paulista possivelmente teria três vezes mais mortes do que tem hoje.
"Se em São Paulo tivesse acontecido a mesma coisa, e se corrigisse pela faixa etária [dos moradores], teriam morrido três vezes mais pessoas", afirma a cientista da USP. A população de São Paulo é mais velha do que a de Manaus.
O consórcio de veículos de imprensa – do qual o G1 faz parte –, que levanta os dados sobre mortes e casos de coronavírus no Brasil, aponta que a cidade de São Paulo tinha, até segunda-feira (21), 12,3 mil mortes causadas pela Covid-19. Já Manaus registrava 2,46 mil mortes.
A população paulistana é, entretanto, quase 7 vezes maior que a manauara, mas o número de mortes em São Paulo não chega a ser 7 vezes maior que em Manaus – e, sim, 5.
O epidemiologista Fernando Barros, professor da Universidade Federal de Pelotas, no Rio Grande do Sul (UFPel), que não participou do estudo, avalia que o índice encontrado em Manaus não indica imunidade coletiva na cidade.
"Se Manaus tivesse imunidade de população, não ia ter um recrudescimento de infecções sérias, que estão aumentando a utilização de leitos de UTI, como alguns dados de hospitais estão indicando", pondera. "Pode ser 66% [porcentagem com os anticorpos], mas continua havendo gente suscetível e indo para o hospital", afirma Fernando Barros.
"Por enquanto, não tem nenhum lugar, nem no Brasil nem no mundo, em que se possa dizer que a população tenha ficado imune", diz Barros. Quanto maior a prevalência [de anticorpos], menos o vírus circula, a infecção diminui, mas a gente não sabe se ela vai parar", pondera.
"Se as pessoas que estavam em distanciamento saírem para a rua, não dá para dizer se não vão se contaminar. É um jogo difícil – a circulação diminui, as pessoas se sentem seguras, saem para a rua, a infecção aumenta. É isso o que está acontecendo na Europa", lembra.
Limitações
Os pesquisadores avaliaram 6.316 amostras de sangue da Fundação Hospitalar de Hematologia e Hemoterapia do Amazonas, colhidas entre os dias 7 de fevereiro e 19 de agosto.
Na prévia do artigo, os cientistas ponderam que os doadores de sangue representam uma amostra limitada da população de Manaus: em primeiro lugar, crianças e idosos não podem doar.
Essa dúvida, sobre o nível de representatividade do estudo, é levantada também pelo professor Fernando Barros, da UFPel.
"A dúvida sempre é: esses doares representam a população de Manaus? Doadores de sangue são pessoas jovens, tem muito doador de sangue de serviço público – bombeiro, policial, trabalhadores de saúde. Não se sabe se essa população não tem uma prevalência maior [de anticorpos] que a população geral de Manaus", lembra.
Doação de sangue em hospital do Amazonas — Foto: Girlene Medeiros / G1 AM
Na pesquisa, os cientistas avaliaram a presença de anticorpos do tipo IgG para o coronavírus. Ig é a sigla para imunoglobulina, um tipo de anticorpo produzido pelo sistema imunológico contra um agente invasor. Nesse caso, de classe G – que identifica se um paciente teve infecção anterior, pelo menos 3 semanas antes do exame, e está possivelmente imunizado.
Medidas para conter disseminação
A queda dos novos casos em Manaus não está relacionada, apenas, à possível imunidade coletiva, ponderam os pesquisadores. Eles reforçam que "medidas não farmacológicas", como o distanciamento social e o uso de máscaras, podem também ter contribuído para o controle da epidemia no Amazonas.
Mas Ester Sabino avalia que as medidas para conter a disseminação do vírus, que foram semelhantes em Manaus e em São Paulo, não foram tão eficazes na capital amazonense.
"Aparentemente, no papel, pelo menos, foram muito parecidas, mas depende de como a população compreende", avalia. "Não consegue entender só pelas medidas por que não funcionou. No papel, é muito parecida com São Paulo, é muito difícil saber. As pessoas provavelmente ficaram em casa, mas circularam próximo de casa", diz.